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O sítio de Lisboa desenha-se pelo encontro do Tejo com o Oceano, a via fluvial e o caminho marítimo. O alargamento do espaço de junção, o Mar da Palha, um pequeníssimo mediterrâneo na costa atlântica, atrai os homens e permite-lhes a riqueza, em sucessivas actualizações que a História e as Geografias vão, a um tempo, determinando e possibilitando.
Após um percurso longo, de um milhar de quilómetros, e variado de terras e de gentes, o Tejo finda-se numa espécie de delta, entre ilhotas, conhecidas localmente por mouchões, para se encontrar num estreito gargalo, que faz a comunicação entre o grande oceano e o Mar da Palha.
As margens deste regolfo-mar são assimétricas na geomorfologia e, em parte por isso e muito pela acção dos homens, são-no também na paisagem social e económica.
Na margem norte, menos recortada, os afluentes, Ribeira de Alcântara, a jusante, e Rio Trancão, a montante, definem pelo encontro das suas bacias, o quadro onde caberia a escolha para o sítio original de Lisboa, que viria a ter lugar entre os vales de Alcântara e Xabregas. A partir daí, a urbe crescerá linearmente ao longo da margem, projectando novos estabelecimentos humanos nas duas margens do seu mediterrâneo, prolongando-se por ribeiros e esteiros, até onde a navegação (e a maré...) o permitem.
A margem esquerda, mais recortada, irá organizar-se segundo um rosário de sítios, sempre aproveitando as vantagens que conferem a relação terra-água e a proximidade de um mercado, cidade e porto, que por essa qualidade alarga as redes de contactos, as oportunidades.
Na margem esquerda, ao longo de dois milénios, sucedem-se as
indústrias - extracção de ouro, vidro, sal, cerâmicas,
pesca e conservas, moagens, cortiças, matadouros, estaleiros navais,
químicas, siderurgia, electrónicas, automóveis e muitas
outras, aproveitando janelas e postigos de oportunidade.
Em breve unidas por duas pontes, as duas margens sempre estiveram ligadas pelas relações dos homens, materiais e espirituais. Se os empresários o perceberam e praticaram, os poetas souberam assinalá-lo. As religiões imprimiram-lhe as marcas mais fortes e duradouras: o Cabo Espichel foi destino de grande peregrinação muçulmana, dos mouros que habitavam a envolvente ocidental (até Sintra) e setentrional (até Lumiar) de Lisboa, e essa peregrinação foi "cristianizada", mantendo-se com os seus círios até aos nossos dias; a Senhora da Atalaia, nas antigas terras de Ribatejo e que hoje são do concelho do Montijo - mesmo à saída da nova ponte - era até há pouco tempo local de romaria para as gentes de Lisboa oriental, de Alfama a Marvila, como nos descreveu Fialho de Almeida, à sua maneira. Ora, como rezam os documentos, D. Afonso Henriques doou à Mitra de Lisboa "todas as rendas e terras de Marvila que possuíam as mesquitas dos Mouros"! e, talvez não só por mera coincidência, a Herdade da Mitra, até ao século XV na posse dos Arcebispos de Lisboa, no século seguinte é património do Morgado de Pancas e Atalaia!...
Na cidade e alfoz imediato, nos primeiros tempos, de Roma a Portugal, a banda ocidental, orientada para o lado do Oceano, teve os maiores favores na valorização económica e monumental, mas a simetria acabaria por se impor ainda na Idade Média: de Alcântara (Calvário) a Marvila, sucedem-se, em contraposição equilibrada a partir do núcleo central, os conventos, os palácios e as quintas senhoriais peri-urbanas. O Rio Trancão, navegável, "prolonga" a urbanidade até aos Tojais e a Loures, onde grandes dignatários da Nobreza e do Clero constróem palácios, como o da Mitra, do Monteiro-Mor, do Correio-Mor.
A recorrência da vocação de plataforma logística
As duas penínsulas, de Lisboa e de Setúbal, que formam hoje uma área metropolitana, constituem um valor de localização para a afirmação oceânica da União Europeia. No finisterra da Europa, uma importante infra-estrutura portuária, com tradição e vocação oceânica, pode desempenhar o papel de uma grande plataforma logística não só para Portugal e para a Península Ibérica, mas também para o conjunto da Europa.
O desenvolvimento dos meios de transporte terrestres e em particular das ligações ferroviárias, potencializados pelas inovações no domínio das telecomunicações, podem conferir à fachada atlântica da Península Ibérica, onde existem recursos humanos significativos, potencialidades para, por um lado, desconcentrar indústrias e outras actividades localizadas nas regiões mais congestionadas da Europa e, por outro lado, abrir portas a investimentos de terceiros, que tenham necessidade de um apoio do transporte marítimo.
No fundo é actualizar a permanência, trazer para os nossos
dias o que foi uma vocação de Lisboa no seu período
de maior afirmação no conspecto das cidades europeias: do
século XV ao século XVII Lisboa foi uma plataforma logística
avançada da Europa, na sua relação com as Américas,
a África e o Oriente e em complementaridade e sinergia com outras
cidades europeias, do Mediterrâneo ao Báltico, mas com maior
ênfase no que volta a ser o miolo da Europa: Londres, Paris, Randstad...
hoje, Londres, Amsterdão, Antuérpia, no passado.
Uma toponomia que permanece
O Mar da Palha, mais que um regolfo por onde entra o Tejo, devagarinho, por entre ilhas (mouchões), no vai e vem das marés, é realmente um Mar, por isso tem toponímia adequada. Entre todos emerge o Cabo Ruivo, que ficou assinalado com força na industrialização tardia, monumentalmente marcado pela torre da refinaria e pelos tubos da petroquímica. Cabo Ruivo continuará por muito tempo associado a SACOR/PETROGAL...
Pela terra, ao longo da Ribeira, outros topónimos sonantes e cuja explicação original vai ficando cada vez mais longínqua: o Braço de Prata, um dos heróis do mar que, como outros, poderia ter passado os seus últimos dias nas calmas das doces encostas de Chelas ou Marvila, voltadas para o mar, ainda que um pequeno mar, exactamente como o fez o Fernão Mendes Pinto, que da sua quinta do Pragal (Almada) deveria sonhar, nos sonidos das brisas e das ondas da Caparica, com os terríveis mares do sul e do nascente. Mas D. António de Sousa Meneses que perdeu o braço em 1635, a defender as costas do Brasil contra os ataques dos holandeses, voltou e depois da prótese que o haveria de "eternizar" dando nome à quinta que herdou de seu pai, embarcou de novo, primeiro para a Índia, depois para o Brasil, onde acabaria os seus dias já no último quartel do século XVII.
Olivais eram presença forte, como as vinhas, na envolvente rural imediata de Lisboa - curiosamente as oliveiras impuseram-se mais na toponímia que as vides: Olival Basto, Olival do Santíssimo, Rua da Oliveira, Largo da Oliveirinha...
Por último a Igreja, fortemente implantada desde o início da nacionalidade, com destaque para o Convento de Chelas; mas o mais interessante é o apreço em que os bispos de Lisboa têm estas bandas orientais, Tejo acima, acessíveis por barco... Por isso melhoraram sucessivamente a "residência" de Marvila, até que D. Tomás de Almeida mandou edificar, no século XVIII, o actual Palácio da Mitra; já no século XVI um Poço do Bispo ganhou tal nome no fornecimento de água às populações que até veio a dar nome à maior concentração de armazenistas de vinho de Lisboa - e o Poço do Bispo é mais conhecido pelo vinho que pela água... Também a Mitra terá um desvio significativo, quando um dos ministros (Interior) de Salazar, o Coronel Lopes Mateus, mandou, nos anos 30, construir nos terrenos livres um albergue para alojar ou simplesmente esconder (quando Lisboa tinha visitantes ilustres) os vagabundos e outros pobres da cidade. Para muita gente o topónimo Mitra não é assimilado ao elegante palacete episcopal, hoje propriedade do Município, mas sim aquela memória triste de albergue-presídio.
Nobilitação vs industrialização
À "nobilitação" das antigas "terras das mesquitas dos mouros", e de toda a Lisboa Oriental, seguir-se-á um processo de inversão, resultado da introdução do caminho-de-ferro e das vagas da industrialização - desde os alvores da introdução da máquina a vapor, até à refinaria e petroquímica de após guerra.
À introdução de novas infra-estruturas, estradas,
comboios, expansão das instalações portuárias
e à implantação de unidades industriais, correspondem,
por um lado, movimentos demográficos, das gentes da Beira Tejo,
aos imigrantes das Beiras, Trás-os-Montes e Alentejo e, por outro
lado, o progressivo abandono residencial dos estratos sociais mais abastados.
Ordenamento e ocupação espontânea cruzam-se na Lisboa Oriental
Após as primeiras vagas de indústria, desinseridas de qualquer plano de ordenamento, apenas "ordenadas" pelo caminho-de-ferro e pelo acesso ao transporte fluvial e marítimo, vão seguir-se, no processo de planeamento que o município enceta em finais dos anos 20 e que atinge a maturidade duas décadas depois, intervenções planeadas, a diferentes escalas, que consolidam a vocação industrial da faixa ribeirinha a nascente de Santa Apolónia e que se prolonga para lá dos limites do concelho.
A esta "vocação" junta-se o destino residencial do hinterland, que originará desde o início dos anos 40 até à actualidade, vários bairros de iniciativa pública: Encarnação, Olivais-Norte, Olivais-Sul, Chelas, que, sucessivamente, vão obedecendo aos paradigmas urbanísticos vigentes em distintos momentos. Para promover aqueles conjuntos residenciais o Município fez, inicialmente, grandes aquisições de solo, que lhe permitiriam uma acção eficaz.
Todavia, a antecedência das implantações industriais,
o abandono prematuro de muitas explorações agrícolas
e a progressiva degradação da paisagem e do ambiente, vão
favorecer a invasão por ocupações espontâneas,
sobretudo em terrenos públicos, mas também nalguns privados,
que originarão bairros de lata, de que o famoso Bairro Chinês,
na Quinta do Marquês de Abrantes (que continuava a antiga herdade
do Arcebispo...), constitui exemplo típico e duradouro.
O declínio industrial e portuário acentua a degradação paisagística e aprofunda o processo de marginalização social
As novas infra-estruturas portuárias e a implantação de indústrias, da refinaria e petroquímica às unidades de pequena e média dimensão, "limpas", muitas vezes deslocadas da área portuária contígua ao centro da cidade, criaram uma nova paisagem, viva e moderna, contrastando com as "traseiras" de barracas, casas e anexos de antigas quintas, transformados em residências operárias.
O insucesso portuário e o declínio das actividades industriais originaram uma degradação da paisagem. Ao mesmo tempo, desde o início dos anos 70, constrói-se o maior núcleo de habitação social do País, Chelas - que se estende da faixa industrial ribeirinha até ao Aeroporto - que cada vez tem menos a ver com a envolvente produtiva. Chelas nuca será o grande bairro operário, inserido num contexto urbano-portuário-industrial, conceito que esteve na decisão que originou o seu planeamento, mas configurar-se-á rapidamente como um enorme ghetto social, que a estruturação "celular" e certos conceitos arquitectónicos, contribuirão para acentuar, quer enquanto espaço vivido, quer enquanto espaço percepcionado - de fora para dentro e de dentro para fora.
Mais a montante, a degradação acentua-se com a desorganização de implantações portuárias ou industriais precárias, com o fecho de unidades activas, até com a implantação de um gigantesco vazadouro camarário!
A Expo 98 como pretexto e instrumento de regeneração urbana
As grandes manifestações urbanas são oportunidades para a requalificação total ou parcial das cidades. A Exposição do Mundo Português, em 1940, serviu para valorizar a zona ocidental, de Santo Amaro a Pedrouços/Restelo. Então, a fábrica de gás de Belém é transferida para a Quinta da Matinha, prefigurando o que viria a ser o grande complexo da SACOR.
A Expo 98, para muitos, foi vista não só como um factor de promoção do País e da sua capital, mas sobretudo como um catalisador do processo de regeneração funcional e urbanística da Lisboa Oriental.
Neste contexto poderia assim repor-se o normal desenvolvimento urbano ribeirinho, que prevaleceu ao longo de 19 dos 20 séculos de história da cidade de Lisboa. Poderia ser a recuperação da simetria poente-nascente. O desafio foi aceite e a obra está em curso. Aguardemos o futuro, com um voto, que é desejo e esperança: que a Expo 98 contribua para recuperar a centralidade, a grandeza e a simetria de Lisboa.
1149 - O primeiro rei de Portugal doa à Mitra "todas as rendas e terras de Marvila que possuíam as mesquitas dos mouros".
Séc. XVI - O Poço do Bispo está aberto ao público.
1602 - No convento de S. Bento de Xabregas faleceu Frei António da Conceição, o Beato António.
1635 - D. António de Sousa Meneses, perdeu um braço na luta naval contra os holandeses, próximo da Ilha de Itamaracá. Viria a herdar de seu pai a Quinta, em Marvila, que se passaria a chamar do Braço de Prata.
Séc. XVIII - D. Tomás de Almeida, arcebispo de Lisboa, deixou de pagar foro à "Quinta de Marvila dos Marqueses de Abrantes".
1852 - Foi criado o concelho de Olivais, que seria extinto em 1886.
1864 - O Palácio da Mitra, do património dos Bens Nacionais,
é adquirido pelo Marquês de Salamanca.