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POLÍTICA PÚBLICA, GESTÃO MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA DE DIREITOS À CIDADE
Política pública, gestão municipal e participação social na construção de uma agenda de direitos à cidade (Resumo)
A descentralização da gestão pública possui enlaces com a mudança na escala territorial de formulação e execução de políticas sociais. As possibilidades e os limites do poder local para garantir direitos sociais é o tema em análise em nosso artigo, tendo em vista a participação cidadã na esfera pública e a necessária construção de uma agenda democrática de direito à cidade.
Palavras chave: território, descentralização, políticas públicas, participação democrática.Public policy, municipal governance and social participation of a rigths agenda to the city (Abstract)
Decentralization of public governance has links with the change in the territorial scale formulation and implementation of social policies. The possibilities and limits for local government to guarantee the rights is the subject of our article, take into consideration the citizen participation in public life and the necessary development of a democratic agenda of right to the city.
Key words: territory, decentralization, public policies, democratic participation.O trabalho que ora apresentamos é parte integrante de um projeto mais amplo –Rio Democracia– desenvolvido pelo Observatório de Favelas do Rio de Janeiro[1] com o objetivo de constituir um inventário de políticas públicas em favelas e periferias urbanas da metrópole do Rio de Janeiro e, a partir de suas conclusões, contribuir para a elaboração de uma agenda propositiva de superação de desigualdades sociais e da distinção territorial de direitos[2].
Os estudos foram desenvolvidos no período de outubro de 2007 a agosto de 2009, cobrindo experiências selecionadas em nove municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, a saber: Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, e São João de Meriti. Os municípios aludidos possuem uma dinâmica de interações, conflitos e contradições reveladoras da complexidade da metrópole do Rio de Janeiro, constituindo assim um mosaico valioso para colocar em causa a política pública no âmbito de uma Agenda de Direitos à Cidade.
A escolha da esfera municipal de gestão deve-se ao fato que, desde 1988, com a promulgação da Constituição, os municípios brasileiros foram outorgados como novas centralidades de execução de políticas sociais, tendo em vista a consideração estratégica da “proximidade do cidadão com o governo local”. Ou seja, desde o período citado, a descentralização da gestão de políticas sociais se tornou um marco institucional no país.
Buscamos colocar em causa o papel do município como esfera de garantia e promoção de direitos - principalmente no que diz respeito aos grupos sociais e indivíduos em situação de vulnerabilidade social – e, em especial, como lugar da participação da população na formulação, no controle e na avaliação das políticas públicas sociais. Trata-se, sobretudo, de colocar em questão o tema do Direito à Cidade como propósito maior das políticas públicas, tendo em vista a justiça territorial como prática de superação de desigualdades sócio-espaciais.
Premissas e contextos do debate da descentralização dos papéis do Estado
A descentralização das funções estatais é, na verdade, um debate sobre a natureza política e o sentido do Estado como instituição social. Tocqueville teria sido um dos primeiros pensadores a colocar em destaque o governo local (local self-government) como aspiração de igualdade entre os homens. A outorga de maiores poderes para esfera local também representou um princípio amplamente defendido na teoria política liberal, sobretudo ao enfatizar a liberdade do indivíduo - ou dos agentes individuais - como condição do exercício da política. Socialdemocratas e socialistas de distintas vertentes defenderam a descentralização em seus programas partidários, destacando os coletivos e as comunidades políticas como modelos de participação efetiva e de gestão social do Estado. Há, portanto, diferentes linhagens de questionamento e de proposições políticas em relação à descentralização do Estado, cujas experiências concretas merecem análises mais detalhadas que fugiriam ao escopo do presente artigo.
O debate mais contemporâneo a respeito da descentralização recebeu um forte viés econômico, sobretudo por parte dos críticos mais contundentes do Estado keynesiano. Essa posição pode ser atribuída aos teóricos do chamado neoliberalismo, cujas premissas de análise enfatizam a excessiva “burocratização” e “ineficiência” do Estado que, em última instância, seriam inibidoras da livre iniciativa dos “agentes sociais”. A ênfase atribuída ao mercado como referencial da vida em sociedade - e do próprio papel do Estado - transformou a crítica dos novos liberais ao poder centralizado em uma ideologia do anti-estatismo. Em linhas gerais, a descentralização recebia um tratamento mais diretamente relacionado à redução do papel regulador e social do Estado, principalmente em relação às premissas do mercado e das exigências de reengenharia da acumulação globalizada de capitais por parte das corporações empresarias.
O cardápio de reformas estabelecido pelos organismos multilaterais - Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento – seguiu as linhas defendidas pelos novos liberais e estabeleceu um consenso global do significado da descentralização da gestão estatal. A partir da década de 1980 foram implementadas, sob a guarda de governos de matriz neoliberal, diversas reformas no âmbito das funções do Estado, em especial em países latino-americanos. Com a titulação ambígua de ajustes fiscais de redução do déficit público, as reformas traduziram, em seus resultados mais contundentes, a privatização de empresas estatais e a redução de políticas sociais universais.
As críticas ao Estado keynesiano centralizado não é um patrimônio exclusivo dos novos liberais. Vertentes socialistas e socialdemocratas também colocaram em pauta o esgotamento do Estado burocratizado e hierarquizado, incluso o Estado Soviético, como formas incompatíveis com a democracia direta e a valorização da cidadania participativa. Portanto, os termos e os objetivos do debate a respeito da descentralização mudam substancialmente quando comparados aos novos liberais, pois convergem para construção de um processo de democratização do Estado como instância de poder social. Não é ocioso lembrar que experiências de descentralização da gestão estatal foram promovidas por governos de perfil socialista e socialdemocrata na Itália, na França e na Espanha, antes e durante a crise do modelo keynesiano centralizado (Borja, 1988 e 2005; Ramirez, 1992; Corral, 1999).
A descentralização como principio de ordenança da gestão pública possui um forte enlace com a mudança na escala territorial de decisão e de ação governamental. Portanto, estamos diante de um tema relevante para os estudos geográficos, em especialmente nos termos de uma nova geografia política dos lugares. O debate sobre o poder local assume uma posição destacada, uma vez que se inscreve no plano da política da gestão do Estado e da qualidade da participação cidadã na esfera pública.
O breve panorama do debate da descentralização da gestão do Estado se circunscreve ao objetivo de revisitar a cena complexa (ideológica e política, sobretudo) da questão e, de modo mais específico, introduzir o tema no que concerne à experiência brasileira.
Descentralização do Estado e municipalização da gestão de políticas públicas no Brasil
A defesa da descentralização no Brasil fez parte das bandeiras mais significativas dos movimentos sociais. O enfrentamento ao regime militar imposto em 1964 escreveu uma página histórica de lutas contra a centralização autoritária e discricionária do Estado. A democracia como valor social era um dos principais temas colocados na agenda de mudanças institucionais em causa na Constituição de 1988, tendo como argumento a participação na gestão pública como exercício de direitos e responsabilidades cidadãs. Portanto, a transformação democrática institucional exigia compromissos formais com representação política dos cidadãos nas esferas de decisão, em especial as concernentes às políticas sociais.
A proposta da descentralização dos movimentos sociais e partidos de oposição ao regime militar significava realizar a democratização em termos práticos e concretos. Ou seja, substancializar a democracia na vida cotidiana e, sobretudo, inventar formas inovadoras de governo das cidades. A cidade era o espaço da política, portanto as proposições de mudança democrática que convergiam para a esfera municipal possuíam dimensões mais amplas. É nesse sentido que se inscreve retomada do município como lócus privilegiado da ação pública e como garantia de atendimento das demandas sociais. Estava em causa nas lutas dos movimentos sociais o governo democrático da cidade.
Apesar dos sensíveis avanços no âmbito da legislação, a descentralização do Estado gerou conflitos e contradições não necessariamente previsíveis, a exemplo das disputas fiscais entre municípios, ou Guerra de Lugares, como definiu com maior precisão Milton Santos (1999). Tratava-se, sobretudo de uma competição aberta entre municípios diante da ampliação das exigências de localização das corporações empresariais que, no final das contas, implicaram compromissos de fundos públicos em infra-estruturas técnicas adequadas e a adoção de normas fiscais flexíveis como mercadorias da cesta de vantagens competitivas. A descentralização se traduzia, na perspectiva da competitividade local, como uma prática empresarial de recursos públicos em favor de interesses privados não locais: uma exteriorização dos lugares.
A descentralização nos campo das políticas públicas, tendo o município como esfera de coordenação e execução, não significava um capítulo distinto das relações mais amplas entre governo e sociedade. As críticas à centralização das políticas sociais por parte do governo federal convergiram para propostas de gestão participativa e da relevância da escala local das decisões.
As diversas Conferências de Saúde, de Assistência Social e de Educação demonstraram, ao longo de duas décadas de redemocratização, um profundo empenho de combinar a responsabilidade do Estado e participação democrática como atributos indispensáveis para o sucesso das políticas públicas. E, conforme essa linha propositiva, os municípios teriam uma posição decisiva como agentes de gestão e execução de políticas públicas, sobretudo em função das horizontalidades possíveis das relações de decisão e articulação política e institucional, como resume Raichellis (1994):
“Dentro deste contexto, o processo de descentralização apontava para uma nova forma de planejamento e gestão. Instituindo uma hierarquia verticalizada, através da articulação das secretarias, conselhos, planos e fundos, imprimindo uma nova lógica que partiria de baixo para cima, ou seja, dos municípios para os estados, destes para a União. Ao mesmo tempo em que permite uma articulação horizontal através da relação usuários, trabalhadores e prestadores de serviços” (Raichellis, 1994, 121).
A proposta da escala local como espaço privilegiado da gestão e execução de políticas públicas sinalizava três questões fundamentais: a necessária superação da distância entre os agentes formuladores das ações e o público beneficiado; a correspondência efetiva entre a qualidade da ação e as demandas de grupos sociais em “situação de vulnerabilidade”; e, em especial, a realização das ações públicas sob controle social dos cidadãos. Carvalho (2007) destaca com propriedade esse conjunto de expectativas em relação à descentralização:
“A municipalização não é apenas expressão de uma reforma do Estado para reduzir custos e desresponsabilizar o Estado na garantia de serviços de direito dos cidadãos. É necessária para criar uma governança pautada na participação e democratização da coisa pública e, sobretudo, pautada na produção de uma gestão territorial de proximidade, integralizando atenções ao cidadão com desenvolvimento local.” (Carvalho, 2006, p.127)
É importante observar que a mudança de escala geográfica preconizada era um indicador de transformações no sentido da política pública, uma vez que colocava a participação social como decisiva no âmbito da formulação, execução e gestão das ações. Portanto, o significado da descentralização assumia um horizonte mais amplo do que uma simples passagem de atribuições entre entes federativos, uma vez que assinalava uma proposta radical na direção do empoderamento cidadão pautado em uma gestão territorial de proximidade.
A criação de Conselhos de Direitos na esfera municipal assumiria, por sua vez, um papel estratégico nesse processo de democratização das políticas públicas. Na condição de instância de mediação entre governo e sociedade civil, estimava-se que os Conselhos se tornassem fóruns qualificados de participação cidadã e novas centralidades das políticas públicas. Desse modo, o desenho da descentralização do Estado estaria completo e resultaria em avanços substanciais das formas e processos de gestão pública e, sobretudo, das políticas públicas como instrumento de igualdade no plano de direitos e da justiça social.
O retorno ao território: políticas públicas, democracia participativa e justiça social
O painel com as principais vertentes e dos significados mais abrangentes da descentralização da gestão estatal nos conduz ao debate das experiências concretas e dos cenários sociopolíticos da atualidade. Para tanto, o retorno ao território se faz imprescindível para contribuir ao debate anunciado, especialmente quando tratamos da política pública como instrumento de garantia (promoção e reparação) de direitos sociais.
Partimos da consideração que há relações diretas entre a prática cidadã e o uso do território como condição da democracia. Afirmar que a cidadania significa o exercício de direitos é reconhecer a busca permanente das condições de sua realização na vida em sociedade. E, quando vivemos em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais e distinções territoriais de direitos, o tema da justiça social assume dimensões amplas e profundas, dialogando com o princípio da igualdade como condição do exercício da cidadania.
O retorno ao território para o debate crítico da igualdade e da justiça nos conduz também à reflexão do sentido da política pública como campo de relações de poder, uma vez que as ações e intenções dos sujeitos e das instituições sociais possuem a sua vivência real em espaços/tempos demarcados.
O território tem centralidade em nosso estudo, uma vez que é nele que se concretiza o mundo da vida, onde se percebe as intencionalidades das instituições e das práticas sociais (Santos, 1994) e, sobretudo, onde se localiza a possibilidade de substancializar os direitos da cidadania. E, em termos mais concretos, é para o território que convergem às possibilidades reais e efetivas da construção de políticas públicas como mediação para o exercício da igualdade cidadã e da realização da justiça social.
Nosso estudo buscou abrigar diferentes ações públicas e instituições diversificadas - secretarias municipais e órgãos executores de políticas sociais, organizações não governamentais, conselhos de direitos da sociedade civil, associações de moradores e entidades associativas - com o objetivo de construir um mapa cognitivo da garantia de direitos e da participação social. Foram realizadas entrevistas estruturadas e semi-estruturadas com dois grupos principais: agentes (secretários e subsecretários municipais, gestores e operadores de programas e projetos) e atores (membros de conselhos de direitos, lideranças de organizações da sociedade civil e dirigentes de organizações não governamentais). A diversidade de agentes e atores foi considerada como um filtro importante para a leitura das ações e das percepções da gestão e execução de políticas sociais, permitindo apreender o universo complexo de sua materialidade no território[3]. Tendo em vista o escopo do trabalho foram privilegiadas as áreas mais explicitamente vinculadas às ações de superação da “exclusão social”: educação, moradia, trabalho, cultura, saúde, segurança e assistência social.
Para tanto, a realização dos inventários contou com a participação ativa de uma equipe de oitenta estudantes universitários, residentes nos municípios selecionados, devidamente orientados por coordenadores temáticos e com apoio de consultores e da coordenação geral do Projeto Rio Democracia. Além da contribuição na formulação e aplicação de entrevistas, o envolvimento dos estudantes em oficinas de vivência e seminários de pesquisa foi decisivo para os resultados gerais e os produtos mais específicos do Projeto, dentre estes, o presente artigo.
Os municípios eleitos em nosso estudo - Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, e São João de Meriti - possuem distinções imensas, tanto no que diz respeito às suas dimensões em áreas territoriais, como em seus aspectos populacionais e de desenvolvimento socioeconômico (Quadro 1). Essas distinções revelam a acumulação de profundas desigualdades em relação aos investimentos públicos e privados, cujas implicações em termos de geração de trabalho e renda, de dotação de estruturas produtivas, das condições de moradia e da oferta de serviços básicos, constroem cenários de graves conseqüências sociais territorializadas.
Município ( ano de fundação) |
População 2007* |
Densidade Demográfica 2007 |
IDH |
Rio de Janeiro (1565) |
6.093.472 |
5.155,2 |
0,842 |
São Gonçalo (1890) |
960.631 |
3.855,8 |
0,782 |
Duque de Caxias (1943) |
842.686 |
1.813,9 |
0,753 |
Nova Iguaçu (1833) |
830.672 |
1.693,6 |
0,762 |
Belford Roxo (1990) |
480.555 |
6.022,7 |
0,742 |
Niterói (1835) |
474.002 |
3.855,8 |
0,886 |
São João de Meriti (1947) |
464.282 |
13.236,8 |
0,774 |
Mesquita (1999) |
182.495 |
5.337,0 |
0,762 |
Nilópolis (1947) |
153.581 |
7.854,8 |
0,788 |
Região Metropolitana |
11.591.216 |
2.511,52 |
--- |
Estado do Rio de Janeiro |
15.757.120 |
352,58 |
--- |
Fonte: IBGE, 2000. |
Todavia, reconhecer a existência de inúmeros desafios historicamente postos às gestões municipais não as isenta de suas opções políticas. Deve-se, portanto, o observar quais são os conflitos e as contradições que estão incluídas na agenda de cada gestão municipal e, evidentemente, as prioridades estabelecidas para o uso de fundos públicos e os compromissos firmados com a democracia participativa. Nesse sentido não é possível fazer do volume da pobreza acumulada uma justificativa absoluta e eterna para precarização de pautas sociais, ou melhor, da precarização das pautas de direito sociais.
Políticas públicas e participação democrática em territórios de morada
O inventário da qualidade da formulação e execução de políticas públicas exigiu um olhar atento e crítico sobre a sua incidência nos territórios de morada, sobretudo dos grupos sociais profundamente marcados pela desigualdade social e pela invisibilidade política de suas demandas legitimas de direitos.
A pesquisa se orientou mais decisivamente para os territórios de morada denominados como “áreas de risco social”[4]. Expressão genérica atribuída às favelas e periferias urbanas que se multiplicaram na metrópole do Rio de Janeiro, em particular, nos municípios que conformaram o recorte geográfico do presente estudo. Essa opção metodológica tem como referencial o desvelamento dos significados mais amplos da política pública para os chamados grupos “em situação de vulnerabilidade social”, público considerado como prioritário de programas e projetos governamentais. E, ao mesmo tempo, aprofundar o debate da descentralização nos marcos da democracia participativa.
A linha de trabalho adotada não invalida uma análise mais abrangente da descentralização e da participação democrática, pois busca a corporificação desses processos sociopolíticos no mundo da vida. Ou seja, buscamos encontrar nas grafias territoriais das políticas públicas as sendas para compreensão da força do local para a mudança e, em especial, para construção de agendas de direitos urbanos. Isto significa abordar tensões sociopolíticas expressas no território.
É importante ressaltar que a proposta de municipalização das políticas públicas representa um enorme desafio à tradição centralizadora e concentradora de poderes do Estado no Brasil. É evidente que a descentralização da gestão e execução das políticas públicas seria permeada por diversos obstáculos de ordem financeira, jurídica e política. Esse não é um pressuposto teórico, mas uma tensão explícita do processo político- institucional e territorial da descentralização, colocando impasses e obstáculos importantes para a realização de políticas públicas. Dentre estes se destacam os conflitos de competências e atribuições dos entes federativos em relação aos usos de recursos e da escala territorial de realização de ações públicas. Tais tensões de ordem político-institucional vêm conduzindo a imprecisão de responsabilidades e a superposição de ações que comprometem a realização de políticas sociais.
Por outro lado, o desenho de políticas públicas não raramente se apóia em percepções de grupos sociais e de seus territórios morada de maneira profundamente equivocada, embora repleto das melhores intenções de combate à pobreza. A dimensão simbólica é uma tensão sociopolítica que se explicita nas definições de grupos sociais como vulneráveis ou como excluídos e, no seu limite mais contundente, na percepção estereotipada das moradas desses mesmos grupos sociais como “áreas de risco”. Essas representações do público da política contribuem para desvalorização de sujeitos como seres da invenção da vida e de seus respectivos capitais sociais presentes no território, implicando a assistencialização recorrente da ação pública quando se trata de determinados indivíduos, coletivos e moradas.
Outro nível de tensão sociopolítica grafada no território está relacionado à descontinuidade de programas e projetos sociais. Tornaram-se evidentes as rupturas na realização de ações públicas, seja em função das mudanças partidárias no âmbito da gestão das instâncias governamentais (federal, estadual e municipal), ou por razões diretamente relacionadas ao aporte de recursos de financiamento e de pessoal. Essa realidade é demonstrativa - independente de uma avaliação criteriosa da qualidade social da ação pública – do não asseguramento de direitos e, de maneira mais preocupante, resultando na baixa expectativa de direitos por parte dos cidadãos, notadamente entre os residentes em favelas e periferias.
Esses três níveis de tensionamentos sociopolíticos no âmbito da ação pública possuem escalas de acontecimento distintas, mas que se cruzam nos territórios de morada e fazem emergir conflitos e contradições que contribuem na reiteração de desigualdades sociais. E, de modo contundente, estão na base constitutiva de formas fragmentadas e processos híbridos de gestão e execução de políticas sociais na escala local.
Políticas sociais e escala local: fragmentação, hibridismos e participação nos territórios de morada
Seria demasiadamente abusivo desconsiderar mudanças importantes e empenhos notáveis de gestões municipais ao longo dos vinte anos de redemocratização das instituições do Estado, em particular no que concerne à ampliação de equipamentos e serviços públicos. Todavia, permanecem limitações extremas em termos da qualidade de suas ofertas e da cobertura integral das legítimas demandas sociais, principalmente em bairros e comunidades populares. Acrescenta-se ao cortejo de limitações a notória distinção territorial da presença qualitativa e quantitativa de bens, equipamentos e serviços públicos, constituindo o que denominamos como fragmentação territorial de direitos. A “vulnerabilidade” de determinados grupos sociais está intimamente associada à extensão territorial da materialidade dos direitos essenciais e da acessibilidade a esses mesmos direitos.
A desigualdade social se revela como hierarquização da cidadania de acordo com os territórios de morada, uma vez que a execução de políticas governamentais tende a se realizar prioritariamente em fixos (estruturas físicas e pessoas fixadas em unidades administrativas). As desigualdades também se reproduzem com a instrumentalização e concentração de recursos, fazendo do uso hierárquico do território mais um componente de contradições sociais e da distinção de direitos estabelecidos há duas décadas pela Constituição Brasileira.
A municipalização da coordenação e execução de políticas públicas ainda não corresponde à inflexão territorial necessária à garantia de direitos. Fato que reflete uma situação paradoxal da descentralização, particularmente identificada nas entrevistas com atores sociais em relação às políticas de saúde e assistência social, uma vez que os recortes geográficos da distribuição de equipamentos e serviços foram considerados, pelos membros de Conselho de Diretos entrevistados, como “condicionantes do acesso aos direitos”. Por outro lado, é preciso alertar que a presença dos equipamentos e dos serviços não é uma garantia absoluta da efetivação dos direitos sociais, pois é indispensável observar a qualidade das relações sociais que se realizam no uso dos espaços tangíveis e nas ações públicas no território.
Por outro lado, proliferam formas e processos híbridos de uso de recursos públicos nos municípios estudados. A descentralização mostra uma face perversa de reprodução de poderes discricionários e de apropriação de fundos públicos por interesses particularizados. Os bairros populares, as favelas e assentamentos de periferias urbanas são os territórios de morada onde tais formas ganham força imanente. Entidades “filantrópicas” e “centros sociais” (não raramente vinculados implícita ou explicitamente a membros do executivo e legislativo municipal, estadual e federal) mobilizam recursos públicos para oferecer serviços sociais para as “famílias carentes”, constituindo redes de beneficiados em relações de clientela e proteção pessoal. Opera-se, portanto, uma inversão absoluta do direito social em favores de privilégio que, por sua vez, estão na base da afirmação de posições de poder personalizadas e do controle territorial de “clientelas eleitorais”.
Outra forma híbrida identificada inclui diretamente a própria gestão pública. É caso da transferência indevida das atribuições do Estado para entidades da sociedade civil, por meio de convênios ou simplesmente de aportes de recursos e cessão de instalações físicas. O relato de um dos gestores entrevistados é ilustrativo de relações híbridas na execução de ações públicas:
“Às creches comunitárias nós damos assistência com leite, o pagamento da coordenação do projeto. Algumas delas são mantidas por ONG´s, algumas são mantidas por Centros Espíritas, por Igrejas Evangélicas, por Igrejas Católicas, varia muito”.
Situações assemelhadas às descritas podem ser encontradas em programas e projetos no âmbito da cultura, do trabalho, da saúde e da educação, construindo uma “galáxia” de hibridismos que fragilizam a percepção e a prática de direitos sociais.
Não queremos invalidar as iniciativas sociais e populares de atenção solidária, sobretudo as que se fazem presentes em espaços populares. Entretanto, é impossível não assumir uma postura crítica diante formas substitutivas e de práticas de transferência de responsabilidades do Estado para entidades e organizações civis, inclusive alienando o papel social e as atribuições originais dessas mesmas instituições.
Os estudos realizados também identificaram importantes avanços em termos da descentralização da gestão e execução de políticas sociais nos municípios selecionados. Dentre estes podem ser destacadas experiências no campo da saúde, da educação e da cultura. Não por coincidência essas experiências exemplares contaram com a participação ativa de conselhos de direitos, movimentos sociais, associações de moradores, em seus diferentes momentos de formulação, execução, acompanhamento e avaliação. Fato que demonstra que participação autônoma, crítica e propositiva de atores sociais é um caminho que deve ser adotado quando se trata da descentralização como recurso do exercício da cidadania e das possibilidades de elaboração de uma agenda propositiva de direitos à Cidade.
Conclusões
Os estudos qualitativos demonstraram que os municípios são recorrentemente instâncias administrativas de execução de políticas federais. O papel na formulação de políticas públicas não é uma escala de poder inteiramente acessível à esfera municipal. Não há uma efetiva descentralização que garanta ao chamado poder local um papel mais abrangente de concepção de escopo, de conceituação de público e de definição de recursos das políticas públicas. Revela-se, portanto, um quadro de reiteração da concentração do Governo Federal no que concerne à proposição, ao financiamento e a regulação das políticas públicas sociais. Na sua dimensão prática, os municípios não conseguem converter políticas, programas e projetos federais em políticas municipais fundamentadas em demandas locais. Por outro lado, permanecem os conflitos de ordem administrativa e jurídica entre os entes federativos em termos de competências e atribuições da gestão e execução de políticas públicas, cujos resultados são a incompletude e a descontinuidade de programas e projetos.
A descontinuidade das políticas sociais continua sendo notória nas experiências estudadas âmbito das gestões municipais. Tal fato corresponde à inconsistência de ações governamentais na atenção aos cidadãos, à pulverização de recursos e aos baixos impactos em termos da efetivação de direitos sociais. A descontinuidade aliada à fragmentação das políticas públicas abre lacunas para promoção de direitos. Lacunas que são preenchidas por práticas de clientelismo, privatização e hibridismo na aplicação de recursos públicos, na seleção de beneficiados e no uso do território como instrumento de reprodução de poderes discricionários.
Consideramos que a esfera municipal ainda não se efetivou como lugar privilegiado de participação democrática e controle social de políticas públicas. Conselhos e Fóruns de Direitos e de Controle Social permanecem, em sua expressiva maioria, com limitações da sua representação política de demandas, reivindicações e valores da sociedade civil diante de executivos e legislativos municipais.
O uso do território pela gestão municipal no tocante à formulação e à execução de políticas públicas continua a ser mobilizado como palco de ações limitadas em termos integração de políticas sociais e da participação democrática, embora sejam notáveis determinadas experiências de participação democrática em ações públicas Portanto, não se observam políticas mais abrangentes que garantam, efetivem e promovam direitos de reconhecimento de sujeitos sociais em suas condições de apropriação e uso do território, fato que conduziria a novas possibilidades de exercício da cidadania e da promoção da justiça territorial como fundamentos de uma agenda propositiva de direitos à Cidade.
Notas
[1] O Observatório de Favelas do Rio de Janeiro é uma organização social de pesquisa e ação pública dedicada à produção de conhecimento e de proposições de políticas de direitos sociais. Criado em 2001, o Observatório de Favelas (www.observatoriodefavelas.org.br) se tornou um organização da sociedade de interesse público (OSCIP) em 2003.
[3] Foram realizadas 110 entrevistas com os agentes, assim distribuídas: secretários e subsecretários municipais (25 entrevistados), gestores e operadores de programas e projetos (85 entrevistados). No grupo atores foram obtidas 105 entrevistas: membros de conselhos de direitos (20 entrevistados), dirigentes de associações de moradores (25 entrevistados), dirigentes de entidades da sociedade civil (30 entrevistados) e dirigentes de organizações não governamentais (25 entrevistados).
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