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Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. VII, núm. 146(131), 1 de agosto de 2003 |
SONHOS URBANOS E PESADELOS METROPOLITANOS: VIOLÊNCIA E SEGREGAÇÃO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Sonhos urbanos e pesadelos metropolitanos: violência e segregação na cidade do Rio de Janeiro (Resumo)
O trabalho discute os espaços residenciais no Rio de Janeiro privilegiando a violência urbana como categoria fundamental para o entendimento do aprofundamento do processo de segregação sócio-espacial nas grandes metrópoles.
Partimos da hipótese que a violência relacionada ao tráfico de drogas na cidade carioca mudou substancialmente no contexto da globalização, contribuindo para aprofundar a fragmentação do espaço urbano. A questão da violência coloca-nos cada vez mais distante da utopia urbana e nos aproxima do pesadelo da cidade infernal que tem crescido em proporções gigantescas. Nossa pesquisa fundamenta-se em uma análise da literatura sobre o tema, na recuperação dos dados estatísticos e mapas referentes à cidade e aos seus espaços residenciais e em uma pesquisa de campo realizada em condomínios fechados e favelas.
Urban dreams and nightmares in the metropolis: violence and segregation in the city of Rio de Janeiro (Abstract)
This work makes an analysis of the residential areas in the city of Rio de Janeiro. We think that the urban violence is fundamental to understand the deepen of social spatial segregration in this metropolis. In the context of globalization the violence related to the drug dealing has substantially changed and it has contributed to deepen the fragmentation process in urban areas. The violence issues in the city places us far way of the urban utopia and much closer to the dystopian nightmares of a Hell Town which has developed into gigantic proportions. The research is based on the literature about the theme, statistics data, maps of the city and its residential areas, as well as field research in the gated communities and favelas.
Esse trabalho discute os espaços residenciais no Rio de Janeiro privilegiando a violência urbana como categoria fundamental para o entendimento do aprofundamento do processo de segregação sócio-espacial nas grandes metrópoles.
Partimos da hipótese que a violência relacionada ao tráfico de drogas na cidade carioca mudou substancialmente no contexto da globalização contribuindo para aprofundar as clivagens entre os espaços residenciais. No entanto, trata-se de uma dinâmica complexa na medida em que compreende simultaneamente um processo de segregação/isolamento e de integração através de relações estabelecidas a partir de espaços compartilhados (de consumo, de serviços, e de lazer) da realização de certos percursos entre estes lugares, e sobretudo através das relações que se estabelecem no espaço de trabalho. A partir dessa suposição, o objetivo do trabalho consistiu em indagar o modo como essa dinâmica se desenvolve recriando o espaço urbano da cidade analisando as condições de segregação e integração entre os diferentes espaços estudados no contexto carioca.
Nossa pesquisa consistiu em uma análise da literatura sobre o tema, recuperação dos dados estatísticos e mapas referentes à cidade e aos seus espaços residenciais, levantamento de matérias publicadas em jornais e uma pesquisa de campo. O trabalho de campo foi realizado tentando cobrir os principais polos desses espaços e sua diversidade, isto é condomínios fechados e favelas. Nesse sentido, foram tomados como objeto de investigação: condomínios horizontais, verticais, mistos, localizados em diferentes bairros próximos às favelas ou não, condomínios, os mais modernos e sofisticados e os mais antigos ou tradicionais[1]. Considerando a heterogeneidade que o termo favela compreende no que diz respeito à infra-estrutura e composição social dos moradores tomamos como objeto de estudo: a) Rocinha enquanto uma das favelas cariocas mais antigas e mais consolidadas e das mais heterogêneas, com estrutura de um bairro[2]; b) Praia da Rosa e Sapucaia enquanto favelas homogêneas que sofreram um processo de urbanização planejada, e c) Apocalipse e Monte Sinais no bairro de Costa Barros, zona norte da cidade, de formação mais recente, bastante homogêneas, na medida em que abrigam as frações mais empobrecidas da classe trabalhadora sem nenhuma infra-estrutura. Na pesquisa de campo foram realizadas 60 entrevistas acompanhadas das técnicas de observação e levantamento fotográfico.
Violência e segregação residencial no Rio de Janeiro
No contexto da globalização a violência assumiu grandes dimensões estando particularmente associada às mudanças observadas no mundo do trabalho, ao declínio e à orientação neoliberal do Estado. (Wieviorka 1997). É evidente, que esses fenômenos de caráter mais geral têm seus impactos diferenciados em cada sociedade em razão do legado histórico de cada formação social.
No Rio de Janeiro esses impactos se tornam bastante visíveis através da segregação socio-espacial no espaço urbano. Trata-se, no entanto, de um processo histórico que tem se acentuado com os novos arranjos dos espaços residenciais. No Rio de Janeiro, encontramos situações urbanas próximas à barbárie, decorrentes da fragmentação econômica, sócio-espacial, cultural e política, que atinge níveis elevados de deterioração humana. Assim, as transformações urbanas recentes, implicam numa reatualização e aprofundamento do processo de segregação sócio-espacial agravado pela violência urbana.
A emergência de um novo padrão de segregação residencial é marcada pelos enclaves fortificados que se fazem acompanhar pela criação de novas favelas e pelo adensamento das já existentes, dada a crise econômica que levou inclusive muitos moradores de áreas centrais e suburbanas a se deslocarem para essas áreas (RIBEIRO,2000)[3].
Caldeira (2000) considera enclaves fortificados os condomínios fechados residenciais, conjuntos de escritórios ou shopping centers. Esses enclaves incluem cada vez mais outros espaços que têm sido adaptados para se conformar a esse modelo, como escolas, hospitais, centros de lazer e parques temáticos. Os enclaves fortificados cariocas representam a incorporação de um novo estilo de vida, relacionado a novos comportamentos de consumo, inspirado nas metrópoles americanas. O consumo não se refere apenas às características internas do imóvel (tamanho, qualidade da construção equipamentos etc), mas pelas acesso de bens, serviços e valores simbólicos tais como: o verde, a privacidade, o status, a segurança. Com a escalada da violência, a segurança tem se tornado o maior atrativo dentre objetos de consumo oferecidos nos condomínios.
“Moramos em condomínios desde os anos 70. Nossa idéia era poder dar aos nossos filhos uma vida mais tranqüila, que eles pudessem ter a liberdade de descer, de confraternizar com outras crianças etc, sem a preocupação que tem um ônibus passando na esquina, que tem ...., enfim aquela confusão da grande metrópole, você desce do prédio e tem tudo em baixo, inclusive o perigo, né, não o perigo do sentido do assalto, mas o perigo do atravessar uma rua, de ir para uma pracinha e na pracinha você tem todo o tipo de gente, então. Mas agora a opção é muito mais em função da violência”. (moradora do Golden Green)
Os agentes imobiliários continuam a investir na produção de novos objetos de consumo dentro desses condomínios[4]. Esses comportamentos de consumo, segundo Cocco (op. cit), não são apenas individualistas, mas constituem esforços de comunicação e de socialização que determinam um sistemático détounenement d’usage das mensagens da propaganda comercial.
A segregação urbana nas metrópoles se revela pela concentração das camadas superiores nos espaços privilegiados dotados de infra-estrutura básica de gestão de fluxos materiais e imateriais ligados pelos níveis de renda, pela multiplicidade das conexões telemáticas, e pelas formas de consumo ao mercado mundial, embora do ponto de vista do espaço integrem sua realidade metropolitana. Po outro lado, os espaços das favelas ocupados pelas camadas populares são caracterizados pela carência ou inexistência de serviços de públicos.
Se de uma lado esse novo padrão configura espaços residenciais mais homogêneos, por outro lado observa-se uma processo de heterogeneização na cidade. A zona oeste do Rio, especialmente na região da Barra da Tijuca tem se diversificado com a construção dos enclaves fortificados. O surgimento dessas novas formas de segregação sócio-espacial no Rio de Janeiro e em São Paulo reflete a mudança no padrão de desenvolvimento centro-periferia que dominou o crescimento das cidades até os anos 80. O padrão policêntrico, já consolidado em Los Angeles, é uma tendência a ser sinalizada no espaço urbano do Rio de Janeiro e São Paulo.
Vale ressaltar, que a heterogeneidade que comporta diferentes segmentos sociais em uma mesma área geográfica se verifica no próprio processo de ocupação da cidade que em suas regiões mais nobres abrigou suas favelas mais importantes. A Rocinha, por exemplo situa-se na mesma região do condomínio Village, em São Conrado, combinado distância social com proximidade física. Essas contradições configuram a particularidade do modelo de segregação carioca que diferencia a sociabilidade dessa cidade em relação a outras cidades nas quais a pobreza foi totalmente isolada, territorial e simbolicamente.
Na Região da Barra[5], o bairro da Barra da Tijuca[6], cujo processo de ocupação é iniciado nos anos 70, é que concentra a maioria dos condomínios fechados, deslocando populações ricas moradoras de áreas nobres tradicionais, localizadas mais próximas ao centro urbano[7]. Seu processo de urbanização recente sofreu a influência dos processos observados na cidade de Los Angeles: grandes avenidas; praças ou espaços públicos de sociabilidade quase inexistentes; presença de serviços comerciais e financeiros em espaços fechados; denominações estrangeiras, principalmente americana para shoppings e centros comerciais; residências construídas em condomínios horizontais e verticais[8]. Na sua arquitetura, observa-se como tendência, uma crítica ao modernismo, numa mistura de traços que predominaram no passado, caracterizando a passagem para a pós-modernidade.
O padrão de segregação sócio-espacial que emergiu com os enclaves fortificados se consolidou, nos anos de 1990. Na sua configuração, esses enclaves contam com infra-estrutura urbana básica (equipamentos e serviços públicos, mesmo que em grade parte privados) e redes de gestão de fluxos materiais e imateriais[9] . Nesses espaços, grupos sociais oriundos de classes sociais diferenciadas, mesmo que localizados de forma contígua, encontram-se separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou interagir em áreas comuns.
Os condomínios fechados não contêm diversidade social. Os moradores integram um grupo social homogêneo, com o mesmo perfil sócio-econômico, padrão de consumo, gostos e hábitos. Verifica-se que uma parte importante dos moradores dessa região é classificada de “emergentes”, isto é pessoas que experimentam ascensão social rápida a partir da inserção recente no setor financeiro e no de serviços. As gerações mais novas criadas nesses condomínios não experimentam o convívio com o outro, isto é com o diferente, elemento fundamental para a construção de um espaço público. Nos condomínios mais sofisticados como é o caso do Golden Green, a despeito dos espaços comuns, mesmo as relações entre os moradores são tênues, enquanto que no Riviera dei Fiori, Novo Leblon e Village a vida comunitária é animada por cursos, festas e muitos eventos.
Luchiari ressalta o fato de países que mantêm seus espaços públicos, como por Japão e países europeus, apresentarem os índices mais baixos de criminalidade, enquanto os Estados Unidos, onde se originou esse modelo urbanístico, têm os maiores índices. Nos condomínios já começam a aparecer as primeiras gangues.(hhttp:///www.com ciencia.br/reportagens/cidad). É curioso que a despeito de todo o sistema de segurança a violência é reproduzida pelos próprios moradores. Na pesquisa de campo surgiram queixas do problema de drogas e de furtos nos condomínios implicando os próprios condôminos.
“...inclusive é uma ilusão achar que dentro de um condomínio não existe risco, porque não é porque você mora em condomínio que você pode soltar o seu filho. No Novo Leblon tem um problema seríssimo de drogas, as crianças pequenas envolvidas com drogas e, isso a gente sabia já quando a gente morou lá, meus pais moraram lá até seis meses atrás, mudaram de condomínio até porque quiseram, mas não por causa do condomínio em si, mas os condomínios, o Mandala, que foi o último que nós moramos, moramos doze anos antes de vir para cá, era um condomínio que tinha um centro comercial dentro, tinha problema de drogas nesse centro comercial, entendeu? Tinha problemas de drogas na rua atrás da nossa casa, que a gente via do nosso terreno, que a gente tinha um muro de arrima alto ....” (Moradora do Golden Green)
Paralelamente às mudanças registradas acima, constatam-se também alterações na dinâmica e a distribuição de atividades econômicas, com o crescimento das atividades terciárias. Por exemplo, a Barra da Tijuca, passa a ser um região que abriga cada vez mais escritórios e um novo tipo de comércio realizado no interior dos shopping centers, atraindo altos investimentos, principalmente imobiliários, acarretando com isso um crescimento populacional acentuado em direção à zona oeste da cidade. Na segunda metade da década de 90, grandes investimentos infra-estruturais foram realizados nessa região. Além da duplicação da avenida das Américas (quatro vias) até o Recreio dos Bandeirantes, a Linha Amarela ligando a Zona Norte à Zona Oeste possibilitou, de um lado, o acesso mais rápido da população da Barra ao Aeroporto Internacional do Galeão, localizado na Ilha do Governador, como de outro, democratizou o espaço das praias da Barra, do Recreio e de Grumari.
Contíguas a essa mesma região se encontra a favela Caminho do Bicho, a qual, no conjunto das favelas cariocas, detém o mais baixo nível de qualidade de vida, caracterizando a heterogeneização sócio-econômica desse mesmo território. A proximidade de determinadas favelas aos condomínios em nada melhora a infra-estrutura disponível para os vizinhos pobres. Isso porque a territorialidade é seletiva, ou seja, os condomínios têm sua própria infra-estrutura e serviços, disponíveis ao grupo social que pode arcar com o valor do investimento, o que reforça a segregação social.
Essa segregação é atenuada pelas práticas e relações sociais e especialmente pelas relações de trabalho que se estabelecem entre moradores de condomínios e de favelas. Embora os condomínios sejam uma unidade independente, os moradores precisam contratar serviços profissionais (por exemplo, pedreiro, pintor, empregada doméstica, eletricista e encanador), que habitam os núcleos residenciais em seu entorno. Mas essa população carente que serve os condomínios é mais prejudicada, pois tem o seu acesso ao interior do condomínio dificultado pelos esquemas de segurança e pela ausência de transporte público.
“Agora, uma coisa interessante do meio do nosso condomínio é a nossa integração com a Rocinha, essa integração se faz através dos nossos funcionários, que acredito que 95% são moradores da Rocinha, estão trabalhando aqui e trazem toda uma situação de confiança, porque a gente tem as empregadas domésticas também de lá e tudo isso, então, eu acho que há uma cumplicidade, integra e quebra um pouco o preconceito existente”. (moradora do condomínio Village)
É fato ainda que a escalada da violência tem contribuído ainda para isolar ainda mais as favelas do conjunto da cidade, dado que são consideradas como espaços perigosos. Dessa forma, a segregação sócio-espacial adquire agora uma nova complexidade e polarizações novas: as diferenças de classe são visualizadas, de um lado, através de muros que buscam esconder e proteger grupos sociais conferindo-lhes segurança social e status a partir da adoção de um novo estilo de vida, produzido em enclaves fortificados; e, de outro, mediante muros de estigmas, separando as favelas do restante da cidade. Esse processo de estigmatização, acirrado no Rio de Janeiro, com o crescimento da violência urbana, verifica-se também nos guetos norte-americanos e nas periferias urbanas inglesas e francesas, a partir dos processos de desassalariamento e desfiliação do sistema de proteção social. (Wacquant, 2001). No entanto, as favelas não apresentam o mesmo grau de isolamento social que os moradores dos guetos norte-americanos. Os moradores de favelas estão inseridos na divisão social do trabalho, embora em posições marginais. A sua grande maioria trabalha fora da favela e consome fora delas. A despeito da violência é possível identificar no conjunto de práticas sociais e na mobilidade elementos que atenuam a segregação e possibilitam espaços de integração na cidade.
O crescimento dos índices de violência e a dramática transformação do crime manifestados nas grandes metrópoles são alarmantes, sobretudo, na cidade do Rio de Janeiro, sendo as favelas as mais afetadas nesse processo.
“A violência está o cúmulo do absurdo. É geral, não é? É geral, não tem, não está distinguindo raça, cor, dinheiro, com dinheiro, sem dinheiro, tá de pessoa para pessoa, não interessa se eu te conheço ou se eu não te conheço. Me irritou na rua eu te dou um tiro. É assim mesmo que está, e é irritante, o ser humano está em um estado de nervos que ele não está mais se controlando, aí junta a falta de dinheiro, junta falta de tudo, e quem tem mais tá querendo mais, e quem tem menos tá querendo alguma coisa e vai descontar em cima de quem tem mais, e tá uma rivalidade, uma violência que não tem mais tamanho, tá uma coisa insuportável.” (moradora da Rocinha)
A recente escalada da violência no país está relacionada ao processo de globalização que se verifica, inclusive, ao nível das redes de criminalidade[10]. A comunicação entre as redes internacionais ligadas ao crime organizado são realizadas para negociar armas e drogas[11] Por outro lado, verifica-se hoje, com as CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) instaladas, ligações entre atores presentes em instituições estatais e redes do narcotráfico.
Nesse contexto, as camadas populares e seus bairros/favelas são crescentemente objeto de estigmatização, percebidos como causa da desordem social o que contribui para aprofundar a segregação nesses espaços. No outro polo, verifica-se um crescimento da auto-segregação, especialmente por parte das elites que se encastelam nos enclaves fortificados na tentativa de se proteger da violência.
Em estudo realizado em 1996 BASTOS, GOMES & FERNANDES apontam que o poder dos traficantes nas favelas mantinha-se através da força e da persuasão, induzida através de um assistencialismo paternalista dirigido à população dessas áreas. Hoje essa estratégia tem dado lugar à tirania[12]. Por outro lado, o recrudescimento da violência dos traficantes nas favelas tem dividido os moradores e abolido o consenso. (Jornal O Globo 08/09/2002)
Evidentemente que a violência relacionada ao tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, não data de hoje, mas remonta a histórica inserção dessa população na dinâmica econômica brasileira em que se destaca o desemprego em massa persistente e crônico fonte de aguda privação material; escassez de recursos públicos para aplicação nas favelas o que foi apenas agravado no contexto da globalização. Essa realidade vivenciada pelos favelas se faz acompanhar pela crescente estigmatização dos seus moradores.
“Eu acho que o pessoal do São Conrado critica um pouco a gente aqui da favela (risos), porque (...) Eu já ouvi nas ruas: “Ah, eu não entro na Rocinha de jeito nenhum, porque a Rocinha, isso, a Rocinha aquilo”. É chato, mas cada um tem sua opinião; tem que respeitar a opinião dos outros. Então, eu acho que é a única coisa, que o pessoal está sendo um pouco preconceituoso; que a gente mora no Morro, que a gente é isso, que a gente é aquilo. Até têm vândalos mesmo, têm meninos que são revoltados mesmo; sai daqui do Morro pra roubar, ali na praia, eu acho uma pouca vergonha; ninguém pode está na praia tranqüilamente... Mas nem todo mundo é igual a todo mundo, entendeu?.” (moradora da Rocinha)
Em decorrência da violência os habitantes das favelas são agora ainda mais estigmatizados pelos moradores da cidade: seus habitantes, no imaginário das camadas médias altas, são tidos como bandidos. Isto se reflete nas representações sociais de seus moradores e particularmente, se materializa no desejo de mudar de local de residência:
“Acho que se eu pudesse sair daqui eu sairia, se eu pudesse morar numa coisa melhor, que tivesse acesso para qualquer coisa que você vai fazer, hoje nem tanto, mas já teve época que sim, ainda mais eu que trabalhava muito com essas madames, eu já avisava antes: olha eu mora na Rocinha, hein. Quando me ligava perguntando: Ah, você pode vir me atender? Eu já avisava: olha eu moro no rocinha. Porque tinha só um preconceituzinho.” (morador da Rocinha)
Nesse quadro, as favelas passam a ser conhecidas como áreas perigosas, territórios de privação e abandono, lugares de violência e criminalidade que devem ser evitados pelo risco que comportam, contribuindo para aprofundar a segregação desses espaços. Instala-se o receio de que estamos no caminho da guetização, ou melhor, de um processo de segregação em suas formas mais duras, comparável ao da cidade de Chicago, sendo a violência a principal responsável por esse processo.
De toda forma, a questão da violência por sua magnitude e importância tem se colocado como categoria central para apreender a vida social. Através da violência são recriadas hierarquias, privilégios, espaços exclusivos, e rituais de segregação.
Hoje a valorização dos imóveis está estreitamente relacionada ao grau de violência do local. Nesse sentido, a região da Barra local onde se concentram os enclaves fortificados, por ser supostamente a região mais segura torna-se o espaço mais cobiçado pelas frações da burguesia e camadas médias altas.
Pesquisa da UFRJ IPPUR/ IPP que analisa o mercado imobiliário nos bairros e favelas do Rio revela quem mora perto das favelas na Tijuca (bairro que concentra algumas favelas mais violentas no Rio) está deixando o bairro. Nas favelas 21% querem viver em outra cidade. O êxodo é mais intenso nas comunidades mais expostas à influência do tráfico de drogas. Em razão da violência os espaços residenciais mais desvalorizados encontram-se na periferia mais empobrecida onde estão situadas as ocupações recentes.
Novas clivagens são criadas entre as favelas na medida em que o tráfico de drogas hoje é organizado a partir de diferentes comandos (Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos) com domínio do território de diferentes favelas.. Monte Sinai, por exemplo está situada entre dois morros (favelas) dominados por diferentes facções do tráfico de drogas: Chapadão dominada pelo Comando Vermelho e Morro da Pedreira dominada pelo Terceiro Comando. A disputa entre essas facções do tráfico envolve tiroteios freqüentes. Seus ocupantes são constantemente ameaçados pelas balas perdidas decorrentes das disputas entre essas facções.
“a gente tem um medo horrível de ir lá fora,daqui pra fora as coisas tudo surge quando dá a volta de seis horas da tarde é barulho de fuzil a noite toda. Eu chamei um companheiro pra trabalhar a noite e ele não pode ir porque foi um tiroteio nesse asfalto aí, uma gritaria total, isso aqui é horrível porque esses morro aqui é o Chapadão, conhecido Chapadão e o do outro lado é a facção do Terceiro Comando que é rival do Comando Vermelho então eles ficam mandando traçante de um lado pro outro” (MORADOR de Monte Sinai)
A violência é um elemento tão forte na realidade das favelas que vai redefinindo as práticas cotidianas dos seus moradores, inclusive práticas políticas pensadas no sentido de modificar a essa mesma realidade:
“(...) ele [o tráfico] cumpre o papel de repressão também, da mesma forma que a polícia faz, porque não deixa a comunidade fazer uma reivindicação. Exemplo: a comunidade vai reivindicar uma melhor educação, resolve fechar o túnel... aí vem a pessoa: “você não vai fazer nada disso!” Fazer aqui dentro da comunidade uma passeata contra a violência... Então... já sabe que você pode até fazer, mas, quanto tempo que você vai continuar vivendo?)”. (morador da Rocinha)
A segregação se agrava para os moradores das ocupações recentes que sem recursos para freqüentar espaços de consumo e lazer, tolhidos pela intensificação da violência na condição de desempregados ficam destituídos de qualquer vínculo com o mercado de trabalho.
Na realidade, os moradores de favelas estão do ponto de vista econômico constrangidos em sua mobilidade uma vez que os gastos referentes aos deslocamentos são elevados:
“É porque para sair você tem que ter dinheiro, porque se você sai sem dinheiro, você não bebe ou você não come, ou não paga a passagem. Então para mim sair para gastar muito ou para não gastar, ficar olhando os outros bebe ou comer e não ter, eu prefiro não ir.” (moradora da Rocinha)
Essa mobilidade é ainda mais restrita pela violência que assola a cidade.
“Nós temos um problema aqui que não podemos atravessar pro lado de lá, comprar um pão, nada porque a facção não aceita que um atravessa pro lado do outro e nós somos praticamente vigiado, somo vigiado dentro disso tudo e somos praticamente prisioneiro deles é que o nosso mundo é legal, é paz aqui dentro faz uma paz enorme, mas lá fora... é difícil”(morador de Monte Sinai)
É importante ressaltar que o tráfico gradativamente tem expandido seus limites para além das favelas. Em episódio recente, o jornal O Globo (15/09/2002) mostrou que a rebelião no presídio Bangú I provocou reflexos em regiões que juntas somam 20 mil metros quadrados, quase a metade da cidade. Os traficantes fizeram um bloqueio comercial e social muito além de seus domínios territoriais. Fecharam o comércio e as pessoas perderam por algumas horas o direito de ir e vir. Segundo o depoimento dos moradores, em Madureira (bairro popular da zona oeste que tem sido muito afetado pela violência) você não flana. As pessoas não saem mais sem ter um itinerário certo. O bairro está muito controlado, as ruas estão todas divididas entre os comandos.
Em matéria recente sobre os moradores de bairros nobres da cidade, jornal O Globo (08/09/2002) aponta a tendência ao neobairrismo caracterizada pela a valorização da vida de bairro. Os moradores entrevistados afirmam que desde que o Rio começou a encolher, absorvendo os limites impostos pela violência, pelo transito caótico e pelo corre diários que preferem permanecer nos limites do bairro. Se, de um lado esse novo estilo de vida leva a uma convivência mais estreita com a vizinhança, por outro lado, é a dinâmica e as relações com a cidade como um todo que têm sido esvaziadas. Para esses moradores o bairro em que moram se tornou a própria cidade.
O fato é que os moradores da cidade têm mudado seus trajetos para se proteger da violência provocada principalmente pelo tráfico de drogas na cidade.
Em muitos casos a segurança de estabelecimentos comerciais como lojas de conveniência e empresas instaladas na vizinhança de favelas se deve a um pedágio pago pelo tráfico. Esse esquema tem sido utilizado também pelos condomínios fechados próximos a favelas como é o caso do Village.
As segmentações entre as favelas produzidas pelo tráfico de drogas têm sido reduzidas pelos movimentos culturais, por ações sociais dos moradores mais privilegiados dirigidas aos mais empobrecidos e por alguns espaços públicos compartilhados. Parada de Lucas e Vigário Geral, favelas localizadas na mesma área geográfica são dominadas por comandos rivais. A fronteira que separa as duas favelas é também conhecida como faixa de gaza, pois não pode ser cruzada pelos moradores dessas favelas. O Grupo Cultural Afro Reggae tem desenvolvido um trabalho que procura resgatar o laço social entre os moradores dessas favelas vizinhas.
Empresas e condomínios têm adotado uma política de boa vizinhança com as favelas. A Escola Americana vizinha à Rocinha, na Gávea, desenvolve um trabalho social na favela, assim como cerca de 40 outros colégios particulares do Rio.
Os shopping centers de São Conrado e da Barra da Tijuca, enquanto espaços de consumo e lazer e as praias da região, em menor medida já que os moradores de condomínios não costumam freqüenta-las, são compartilhados por moradores da Rocinha e dos condomínios mais sofisticados da Região. Isto atenua o processo de segregação,pois esta também implica no modo como a população usufrui da cidade, isto é como vivem enquanto seus cidadãos.
Por outro lado, no âmbito do trabalho e do comércio se observam também relações e práticas capazes de reestabelecer o elo entre os moradores da cidade. Embora a Rocinha já possua uma economia capaz de absorver parte de seus habitantes, a maior parte deles trabalha nos bairros privilegiados da região fazendo com que seus moradores estabeleçam relações de trabalho nos condomínios residencias, shoppings centers etc. Além disso, o comércio tem sido também um espaço de integração:
“A gente faz muitas compras na Rocinha, você sabe que a gente vai lá fazer compras naquelas ruas de supermercado, porque os preços são muito melhores(moradora do condomínio Village)
A despeito do aumento da violência, a proximidade entre bairros nobres e favelas levou a um convívio cotidiano entre as classes unificando a cidade. Assim, por mais que os dois mundos permaneçam apartados, asfalto e favela compartilham alguns espaços e, sobretudo, os efeitos da violência.
Com a escalada da violência os mais atingidos são os moradores de favelas, já vulnerabilizados e cada vez mais estigmatizados e colocados à parte da “cidade formal”.
Nas favelas, onde o tráfico de drogas domina o território, a discriminação, a violência e a pobreza levam a uma situação próxima ao isolamento social. No entanto, entendemos que apesar das favelas caminharem rumo a guetização, os favelados não apresentam o mesmo grau de isolamento social que os moradores dos guetos norte-americanos. Estão inseridos na divisão social do trabalho, embora em posições marginais, mantendo relações de troca com o mundo social exterior. A sua grande maioria trabalha fora da favela e consome fora delas, revelando uma certa incorporação da favela pela sociedade, ainda que de forma subordinada.
Notas
[1] Fazem parte do universo estudado: Grenwoodpark no Itanhangá (condomínio horizontal), Village em São Conrado próximo à favela da Rocinha; Riviera dei Fiori, Golden Green na Barra da Tijuca (condomínio vertical), Novo Leblon na Barra da Tijuca (condomínio misto).
[2] De acordo com ao Associação Comercial da Rocinha, esta favela possui 200 mil habitantes. Conta com uma variedade de serviços que incluem: 2.500 estabelecimentos comerciais, 2 Bancos (CAIXA e BANERJ), 2 Rádios, 3 jornais, 3 Casas de Show, 2 pontos de táxi, diversos pontos de moto-taxi e duas linhas regulares de kombis (Rocinha-Botafogo e Rocinha –Copacabana), há também as Kombis que fazem o circuito interno, dentre outros serviços. Ademais, a Rocinha possui 4 escolas públicas, 1 posto de saúde da prefeitura, 1 agência de Correios, 1 posto telefônico, além de um número não preciso de creches (aproximadamente 10) particulares e conveniadas à Prefeitura.
[3] Nos últimos dez anos as regiões metropolitanas brasileiras mais importantes, inclusive no Rio de Janeiro, têm apresentado uma elevada taxa de crescimento das periferias: enquanto sua população cresceu em 30%, nas áreas nobres foi observado apenas um aumento de 5%. Enquanto, nas cidades médias brasileiras, houve crescimento da renda per capita em torno de 3% nas periferias das grandes cidades, o movimento foi inverso, sua renda caiu em 3%. (Revista VEJA, 24 de janeiro de 2001 pg 86) Isso demonstra que as periferias estão cada vez mais populosas e mais pobres.
[4] No Rio, o condomínio mais sofisticado – Golden Green possui até um minicampo de golfe. Em São Paulo a sofisticação ainda é maior, justificada pelo nível de renda de seus habitantes. Os últimos lançamentos incluem: home theater, sala vip, tenda de massagem, espaço gourmet, child care, campanheria, pet care. (Revista VEJA, 6/11/2002)
[5] A Região da Barra da Tijuca - XXIV Região Administrativa, que é composta, além da Barra, dos bairros de Joá, Itanhangá, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande, Recreio dos Bandeirantes e Grumari. A população da região é 129.632 habitantes, com densidade demográfica de 7,4 hab/há (96). Dentre o total de 27.582 domicílios, 30,8% dos chefes desses domicílios apresenta um rendimento mensal maior que 20 salários mínimos.
[6] A Barra da Tijuca possui uma população de 82.702 habitantes e densidade demográfica de 23,0 hab/há (96). Trata-se de uma população com perfil de renda bastante singular em relação ao conjunto da cidade, já que cerca de 40% possuem renda superior a 20 salários mínimos, quando este segmento representa apenas 9% em relação à população total da cidade.
[7] Este deslocamento pode ser comprovado quando analisamos o número de habitantes de alguns bairros da zona sul, especialmente Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, Jardim Botânico que tiveram, no período compreendido entre 1991 e 1996, um decréscimo em relação a sua população. Na zona norte foi também observado um decréscimo do número de habitantes, no período já mencionado, na Tijuca, bairro tradicional de camadas médias. O aumento da violência urbana tem contribuído para a expansão de enclaves fortificados.
[8] Os condomínios fechados podem ser classificados em dois tipos: os constituídos na forma de conjuntos de edifício (tipo vertical), com equipamentos coletivos, e aqueles onde estão inseridas as unidades residenciais unifamiliares (tipo horizontal). Os condomínios horizontais contam com serviço de segurança coletiva e são compostos de casas construídas a partir de diferentes projetos arquitetônicos, inseridas em terrenos de grandes áreas, existindo, em cada uma delas, ou em cada uma das áreas de residência, estruturas sofisticadas de equipamentos, como piscina, quadra de tênis, salão de jogos. Nos condomínios verticais a mobilidade de seus moradores é facilitada por um sistema de transporte próprio – ônibus contratados para realizar o deslocamento dos residentes até o centro da cidade, passando em seu trajeto por toda zona sul. Alguns condomínios mais sofisticados e construídos mais recentemente possuem helipontos, facilitando a circulação de seus habitantes, dado os engarrafamentos de trânsito, acidentes e seqüestros, comuns hoje no Brasil. Esses condomínios oferecem, na totalidade dos casos, serviços básicos no seu próprio espaço, incluindo entre outros, professores de ginástica, atividades de recreação, aulas de todos os tipos para distintas idades, esportes organizados, biblioteca, médicos, psicólogos, centro de mensagens, pessoal de limpeza, lava-auto, transporte, lanchonete etc.
[9] Trabalhamos com a hipótese de que na Barra e nos demais bairros da zona sul se concentram a infra-estrutura para gestão de fluxos imateriais que dão suporte às redes de cooperação produtiva, que se servem das instalações telemáticas. Por outro lado, observamos que nas favelas há a presença de uso da rede de internet (inclusive, na Rocinha – considerada a maior da América Latina, a constituição de página e uso de e-mail), tv a cabo, que podem ser considerados como indícios de integração societal (dados sujeitos a retificação a partir de novas informações que estão sendo buscadas nas pesquisas).
[10] Recentemente, no Rio de Janeiro na Penitenciária de Segurança Máxima - Bangu I, onde estão presos os líderes das maiores quadrilhas brasileiras foram encontrados telefones celulares e aparelhos de fax que serviam aos criminosos. Segundo o jornal O Globo (15/09/2002) após a recuperação dos celulares os traficantes passaram a se comunicar pela internet. Foram identificadas na internet sites das facções criminosas Comando Vermelho e do Terceiro Comando.
[11] Uma das principais conexões do tráfico no Brasil são as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
[12] O recente episódio do assassinato do jornalista Tim Lopes com requintes de crueldades pelos traficantes demonstra as vitimas não são apenas bandidos e polícia, mas podem ser todos aqueles que se colocam como obstáculo a realização das atividades criminosas.
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