Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] Nº 69 (90), 1 de agosto de 2000 |
Luiz Cruz Lima
Universidade Estadual do Ceará
Professor Doutor do Mestrado em Geografia
A difusão social e espacial da inovação: o caso do Ceará no Nordeste brasileiro (Resumo)
Este trabalho procura identificar as novas dimensões do interesse do capitalismo na atual fase de reestruturação, com a agregação de novos territórios e a difusão das inovações tecnológicas. Apresenta o caso da inserção dos espaços periféricos do Terceiro Mundo, antes esquecidos pelo sistema, onde são implantadas as inovações tecnológicas com objetivo de aumentar os fluxos de bens, além de criar novos mercados, com interesses externos, olvidando as necessidades das populações locais.
Palavras-chave: reestruturação/ modernidade/ inovações tecnológicas/ racionalidade técnica/ Nordeste Brasileiro
The social and spatial diffusion of innovation: the case of Ceará State in the Northeastern Brazil (Abstract)
The target of this paper is to identify the new dimensions of the interest of capitalism in the present phase of reorganization, with the aggregation of new territories and the diffusion of the technological innovation. It also presents the case of insertion of peripheral spaces in the third world where technological innovations are estabilished with the objetive of increasing the current of goods and also of creating new markets with external interests that do not take care of the necessities of local population.
Key-words: reorganization/ modernity/ technological innovations/ technical rationality/ Northeastern Brazil.
Na história do capitalismo mundial, mais uma vez observa-se a ampliação do sistema em duas vertentes, como saída para sua sobrevivência: agregação de novos territórios e difusão das inovações. Agora, isso se faz dentro de um quadro em que a técnica propicia a velocidade e a simultaneidade dos eventos e encontra-se com a vontade de envolver e criar mercados, diapasão modelar do tempo atual. Lugares antes lembrados, agora se revelam como nichos de consumo e espaço do fazer, compartilhando na organização do novo sistema de produção; regulações pétreas se desmancham com o forte vento das novas regras necessárias ao cenário a construir; refinam-se as redes como condutos basilares da dialética entre os espaços do comando e da obediência; sem demora, difundem-se as inovações brotadas nos centros do pensar, para criação das reluzentes vitrinas dos templos do consumo espalhados por todos os recantos; criam-se novas territorialidades, acompanhadas de resultantes inexoráveis: exclusão social e desterritorialização de muitos homens e mulheres.
Como base das novas condições que se instalam, o espaço geográfico se adequa às exigências das ordens distantes. Os objetos do passado não mais atendem aos interesses do capital hegemônico que rege o mundo hodierno. Há uma premente necessidade de quebra, de desmoronamento da estrutura construída no passado para remontar uma nova ordem espacial., como bem se refere Soja1. O espaço é a expressão mais significativa dessa mudança. Nesse aspecto, a cidade é o lugar de maior demonstração do espaço reconstruído e criador de extensores capazes de vincular diferentes pontos, proporcionando a abertura de novos mercados que oferecem meios para a nova ordem que se constrói.
Laboratórios desses fatos são encontrados em diferentes partes do mundo. No espaço íberoamericano, como periferia do sistema-mundo, isso se realiza com muita nitidez. Aqueles lugares que não se identificavam como inseridos no contexto, portanto "lugares de reserva", entram na combustão do processo
É por demais evidenciado o atual processo de aceleração das mudanças por que tem passado o espaço geográfico nas últimas décadas, tanto nos países centrais, como nos espaços periféricos do sistema. A desestruturação, o desmonte do construído, as profundas metamorfoses das paisagens urbanas e rurais, as determinações condutoras do "novo" devastam as marcas implantadas no tempo para soerguimento das formas exigidas pelas necessidades surgentes, nem sempre conectadas com o evoluir, com o processo de sedimentação cultural, num verdadeiro e nítido divórcio entre o passado e o presente.
O espaço é o pergaminho onde a sociedade inscreve sua marca no tempo. Além de ser a identificação da realidade, do vivenciado no tempo, o espaço aloja o capital criado e recriado ao longo da história de um povo. No entanto, mata-se o existente local em proveito da imposição do desejo distante. Há um marcante conflito, enfim, uma ruptura entre o tradicional e o moderno, de forma radical e acelerada.
Sabemos que a ciência, a técnica e a informação, como as fortes matrizes das forças produtivas, são monopolizadas pelas grandes corporações, cujas tendências se voltam para o controle do trabalho e para o controle do consumo. Para reestruturar o espaço, exigem-se novos objetos, objetos que respondam aos fluxos cada vez mais acelerados pelas contingências necessárias à reprodução de um capital mais ávido e mais faminto. Tão faminto que, numa eterna contradição, necessita destruir para reedificar, numa dança infernal de construção e destruição, o que dera origem a tese da "destruição criativa". É "criativa" por nascer da ciência, mas de uma ciência direcionada, canalizada para um fim predeterminado. É tão direcionada quanto controladas são a informação e a técnica.
Na reestruturação espacial, os objetos novos a serviço do sistema vigente são postos para o controle, muitas vezes exacerbando a exclusão social. Aquilo que era o espaço banal, o espaço de todos, passa a ser o espaço de poucos, um espaço do consumo e para o consumo. De forma consciente, nascem os grandes movimentos de reação contra esse ditame dos que têm e querem tudo...
Que as mudanças no espaço sempre ocorreram, sabemos nós, pois "a história do homem sobre a Terra é a história de uma rotura progressiva entre o homem e o entorno" (Santos, 1994:17). Mas o que nos chama a atenção, hoje, é a contínua e permanente mudança que se faz com uma forte voracidade. Por que e em nome de que isso ocorre? Quais as contradições que surgem nesta devastação do capital social acumulado? Que relações se entrelaçam nesse fazer e refazer da atualidade que vivenciamos? Que forças impulsionadoras comandam esse processo?
Não temos, aqui, a pretensão de responder essas questões, nem tempo haveria para tanto. Desejamos, apenas, abrir um diálogo para melhor escolher uma pista que nos indique a relação da modernidade com a construção e reestruturação do espaço geográfico, o que, talvez, ajudaria compreender mais ainda a realidade sócio-política econômica e cultural, por nós vivenciada nos países do Terceiro Mundo, neste fim de século e milênio.
Essa questão tem apaixonado alguns estudiosos do espaço, em especial na abordagem da intervenção da ciência e das técnicas, resultante naquilo que Milton Santos tem chamado de meio técnico-científico informacional. A geografia tem sido enriquecida, desse modo, com importantes trabalhos que se aprofundam na análise e crítica das tecnologias que provocam mudanças estruturais no espaço.
Em seu Técnica, espaço, tempo, Santos (1994) nos põe frente aos ditames da racionalidade, princípio basilar da modernidade, contribuindo com uma formulação metodológica para melhor analisarmos o papel da nova armadura que reveste nosso objeto de estudo.
Em O Espaço da modernidade, Gomes e Costa (1988) nos oferecem um ensaio que trata do espaço na modernidade, onde afirmam que o tema "não tem sido objeto de muitas preocupações na Geografia". Mais recentemente no entanto, Gomes (1994) nos convida discutir a Geografia e a modernidade: "saber se geografia é uma ciência {diz ele} consiste, em um certo sentido, em meditar sobre o caráter moderno desta disciplina", iniciando com "o debate da modernidade" (cap. 1).
Soja aponta a modernização e reestruturação como o macrorritmo da geografia histórica do capitalismo, falando mesmo, baseado em Ernest Mandel, na "periodicidade da modernização intensificada a uma série de reestruturações geográficas, similarmente caracterizadas pela tentativa de recuperar as condições de sustentação da acumulação capitalista lucrativa e do controle da mão-de-obra"(p. 38). Confirmando o economista, o geógrafo marxista norte-americano relaciona "os traços característicos que moldam essas modernizações periodicamente intensificadas"(p. 38), como nos apresenta Marshall Berman (1986).
Cabe, aqui, lembrar uma relação entre essas diferentes modernidades e esse "macrorritmo", pouco estudada pela maior parte dos espaciólogos, mas bem lembrada pelo geógrafo Armen Mamigonian, aplicada no caso brasileiro pelo economista brasileiro Ignacio Rangel e aprofundada por Mandel (1985:cap.4).
O "macrorritmo", tratado por Soja, corresponde às grandes flutuações da Teoria das Ondas Longas de Kondratieff, identificadas como quebra e descontrole da interação entre o subsistema tecno-econômico e o subsistema sócio-institucional. Como o primeiro tem ritmo de crescimento mais rápido, no correr de um período de aproximadamente três décadas, há o descompasso, o descontrole e a quebra do ajustamento com o comportamento social e as instituições que são retardatárias às grandes mudanças técnico-científicas. A crise emergente é um grito de alerta desse descompasso. Esse período, conhecido como fase "B" das Ondas Longas, caracteriza-se pelo surgimento de um conjunto de inovações tecnológicas que irão alavancar novo ciclo de crescimento do modo de produção capitalista.
Renovado na crise, o sistema é retomado em sua dinâmica com as inovações promovidas pelos capitais ociosos, para uma nova fase, a "A" do Ciclo. Nesse momento, reajustam os dois subsistemas, novas regulações se estabelecem, caracterizando o período de ascensão com novo paradigma tecno-econômico e novos arranjos sociais e institucionais, circunscrevendo-se como uma revolução no sistema produtivo. Uma nova racionalidade se estabelece, com uma maior tecnicidade do espaço. Atualizar-se, acompanhar a modernidade é integrar-se às novas dimensões da racionalidade.
Cremos que se nos aprofundarmos na compreensão desses "períodos prolongados de crise e reestruturação globais", podemos discernir melhor o que impulsiona o binômio da modernidade ordem/caos e apreenderíamos a consciência de nossa época, no dizer de Habermas. Estaria nesse tratamento a chave para compreendermos a "destruição criativa" de Schumpeter, ao tratar da inovação das técnicas, assim como a melhor compreensão das imagens apresentadas por David Harvey em Condição pós-moderna?
A ebulição de um determinado modo de produção refaz, necessariamente, os elementos do espaço: os espaços pré-modernos foram refeitos pelo capitalismo em suas distintas fases. Cada uma destas fases define uma modernidade, desde o Século das Luzes, marcado pela racionalidade. Mas espacialmente extenso e de avassalador domínio é a modernidade atual, quanto mais impregnada por sistemas técnicos potencializados pela ciência, como ocorre atualmente.
Identifica-se nossa modernidade pelo profundo enraizamento que têm a técnica e a ciência na elaboração de todos os traços de nosso viver, tantos nos objetos como nas ações do homem moderno, envolvido por objetos novos que devoram os recém-criados, numa voracidade permanente, tornando tudo efêmero, "transitório e fugidio". Esta realidade, antes desconhecida, se exprime em crises, crises do espaço, do espaço por nele se inscrever o cotidiano, a vida do homem em seu refazer.
A partir do Iluminismo, o domínio da ciência e da técnica, resultante da condução da racionalidade como instrumento norteador da busca do conhecimento, passa a ser a variável de grande peso na produção do espaço. Com a revolução das comunicações e das informações, a confluência de atores, locais e distantes, estabelece uma trama de relações que tende a impor novas formas e novas funções a exigirem estrutura temporalmente diferenciada, para engajar os lugares nas exigências do mundo, da globalização. Ora, essa nova realidade nos conduz a tomar os níveis de modernização de cada lugar como balizamento para entender o enquadramento de cada um deles na totalidade vivenciada. Não é por acaso que Santos (1994) propõe "uma outra forma de regionalizar, a partir da noção de racionalidade" (p.33).
Novos espaços têm nascido (Lima, 1994) ou renovados, estritamente submetidos aos ditames da racionalidade, produzidos, portanto, pelas obrigações científicas e técnicas, confirmados pelo discurso da eficiência, da competitividade, carimbos e símbolos de nossa modernidade. Esses espaços representam os principais nichos, de alto significado no mundo atual, para a reprodução de outros que se disseminam, como efeito-demonstração, por tantos e tantos outros territórios.
A geografia renovada, a nosso entender, se faz pela compreensão desse "novo", dessa modernidade atual cimentada pelos componentes da tecno-ciência e da informação, cujos conceitos e categorias serão reconhecidos se trabalhados na perspectiva do melhor entendimento do período técnico-científico, cujo produto mais significativo é o meio técnico-científico informacional que nos envolve neste fim de século. A esse meio técnico-científico informacional se inserem aqueles subespaços que são retrabalhados pelos interesses do sistema de acumulação, como é o caso de parte da América Latina.
No Brasil, como um desses espaços "marginalizados" a macrorregião Nordeste ressurge como recanto pleno de fatores potenciais de atração de investimentos. A própria natureza é revalorizada, senão tecnificada, ora por ingerência direta, ora por "marketing" político-ideológico como o da metáfora "sol inclemente" transformando-se em "sol benéfico", revestindo-se de valor de troca para o novo modo de acumulação.
Essa redefinição está muito vitalizada no Estado do Ceará, no Nordeste oriental, em que é forte a atração de capital externo, implantando-se com as inovações de última geração. Marginalizam-se as tradições à medida que se erigem o que a racionalidade técnica determina, em proveito da reconstrução de um modo de acumulação que procura convergir para si novos territórios da produção e do consumo.
A reestruturação espacial no Estado do Ceará, Brasil
Relacionando-se os investimentos aportados nesse subespaço do Brasil, tem-se como certa a lógica de integrá-lo no contexto da atual modernidade, isto é, em torná-lo um componente territorial capaz de ser evidenciado no novo cenário da competitividade mundial.
Nessa perspectiva, os agentes indutores desse modelo perverso induzem as comunidades acatarem a recepção de novos e sofisticados componentes técnicos, como um importante meio para o planejamento e a gestão do território. Para tanto, essas comunidades também são induzidas por discursos ilusórios, com o fim de elas serem partícipes do processo, pois sem essas comunidades os lugares tornam-se vazios, sem o valor substancial do trabalho e do sistema de ação. De início, procurou-se reconhecer as delimitações das regiões, como núcleos sócio-espaciais de importância para os investimentos e para a instalação dos novos sistemas de engenharia. Esses sistemas se tornam efetivos somente quando estão em sintonia com os sistemas de ação, cuja força básica situa-se na capacidade do homem, enquanto sociedade, enquanto participante da realidade que se monta. É essa sintonia que nos possibilita participar das novas condições do mundo.
Não poderia ser diferente, porquanto região e mundo se contêm. Daí porque Kayser (1968) nos ensina que as regiões não são blocos territoriais isolados, elas são partes de uma engrenagem maior, com a qual elas interagem para poder existir enquanto espaço regional.
Essas duas premissas nos levam ao entendimento que o valor do espaço, nesse período do capitalismo, se estabelece quando duas forças se conjugam: coletividades participantes e lugares integrados com o mundo. A consecução dessas condições potencializa as vantagens comparativas, criando novas possibilidades, especialmente para a produção e o consumo.
Sob o capitalismo, o espaço torna-se um destacado componente da reprodução do capital, mola central da engrenagem do sistema. Não é ele apenas externalidade2, mas mercadoria e, ao mesmo tempo, base do funcionamento das unidades produtivas o que, para a economia espacial, gera e reforça o conceito de "localização". E, nesse aspecto, é bom lembrar que a maior capacitação de um sistema de engenharia e de um sistema de ação capitaneia os fatores de atração de novas unidades produtivas, além de estabelecer um novo estágio do modo de produção.
As técnicas de uma época estão no espaço produzido. O tempo está, assim, no espaço. Neste, o tempo se denuncia pela presença de diferentes modos de produção3. A presença de formas espaciais derivadas do passado reforça o espaço como uma estrutura social, impondo-se como forte condição para a reestruturação produtiva em dado momento histórico. Isto quer dizer que o espaço tem força determinante para o funcionamento da estrutura técnico-produtiva. É o que alguns, de forma mal aplicada, chamam de base geográfica, referindo-se apenas à condição natural. Negar ou por à margem o espaço na compreensão de uma nova época é esquecer a complexidade de forças criadoras do espaço social, dentre as quais inclui-se a própria dinâmica da História. O Estado é uma dessas forças, não apenas respondendo os interesses econômicos, mas também aos ditames geopolíticos e sociais.
Aqui entra uma importante contribuição de Milton Santos para a teoria da geografia moderna. Ao discutir a "interação de múltiplas variáveis" na formação do espaço, ele inclui o conceito de inércia dinâmica, significando que "as formas são tanto um resultado como uma condição para os processos" E enfatiza: "desse modo, o espaço ostenta um papel fundamental na estruturação social, pelo fato de que ele colaborou na reprodução das relações sociais".
Isso não quer dizer que o espaço seja congelado, rijo, em todas as suas formas. À medida que o movimento social exige, as formas do passado cedem ao processo que se orienta à formação de nova estrutura e elas se adaptam para exercerem as funções do presente. A própria irracionalidade da especulação imobiliária no meio urbano retrata esse fato: desmonta-se a memória de uma comunidade, na destruição de prédios históricos para edificar os "caixões" arquitetônicos e as torres que tanto agridem a estética das cidades, como se constata em Fortaleza, uma das três metrópoles do Nordeste brasileiro. No "core" desta cidade, o interior e as fachadas de antigas residências foram redesenhadas pelo interesses comerciais de lojas, armazéns etc. No capitalismo, essas exigências de fazer e refazer formas assumem um caráter cíclico. Harvey (citado por Soja, 1993) sintetizou esse caráter do sistema: "as contradições internas do capitalismo expressam-se através da formação e re-formação irrequietas das paisagens geográficas. É de acordo com essa música que a geografia histórica do capitalismo tem que dançar, ininterruptamente"
Como dizemos, anteriormente, o Estado assume seu papel na preparação do cenário para a reprodução do capital: no orçamento federal brasileiro de 1997, perto de US$ 300 milhões ou 7,12% do total, estavam indicados como valores a serem transferidos para investimento no Ceará. É o maior, entre os estados da Região, e menor, apenas, que o destinado aos três mais industrializados do país. Somados aos demais recursos feitos em contrapartida, o total triplica. Até o final do século XX, os investimentos federais no Estado ultrapassarão os três bilhões.
Outras gordas parcelas serão concedidas por órgãos de fomento da Alemanha, Japão, Banco Mundial e BID. "Com todos esses investimentos públicos, o Ceará está se preparando para o novo milênio, com sua economia totalmente reestruturada para enfrentar os desafios da globalização", explica uma das autoridades do Estado. Cada lugar obedece as novas determinações da época, tanto se direcionando pelas ações hegemônicas, como hospedando os modernos objetos, prenhes de inovações. Santos (1996:76) esclarece que a "ação é tanto mais eficaz quanto os objetos são mais adequados. Então, à intencionalidade da ação se conjuga a intencionalidade dos objetos e ambas são, hoje, dependentes da respectiva carga de ciência e de técnica presente no território".
São recursos destinados a criar as grandes obras, à reestruturação do espaço com os objetos necessários às ações do capital hegemônico, pois somente estes são capazes de "enfrentar os desafios da globalização". Sabemos que "o espaço é formado pelo conjunto de sistemas de objetos e sistemas de ações", e estas só se realizam através deles. Esta correlação força os lugares a hospedarem os grandes objetos, se desejam inserir-se na nova mundialização, ou seja, na nova divisão internacional do trabalho. Esta mundialização exige ações hegemônicas, daí ser ela caracterizada pela unicidade técnica, e com esta a unicidade do tempo ou simultaneidade e a unicidade do motor ou a globalização da mais-valia (Santos, 1996): não muito difere estar em Taiwan ou no Chile, no Ceará ou na Coréia. Essas unicidades decorrem de ações estranhas ao lugar, provindas de vontade distante.
Uma das grandes obras, de importância fundamental para recepção e expansão do capital externo, é o Porto de Pecém, a 45 km ao norte de Fortaleza, no município de São Gonçalo do Amarante, no coração da faixa litorânea reservada ao Projeto Prodetur, de significativa importância para o desenvolvimento do turismo. Incluem-se para garantia de um complexo metalúrgico junto ao porto, a instalação de um gasoduto, linhas elétricas e de telefonia, obras urbanas, com a participação do Estado, de empresas e de banco internacional. Essas grandes obras terão influências em várias regiões administrativas (RGAs). Em face das grandes mudanças ocorridas nesse município, ele foi incluído, recentemente, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Negociações estão sendo estabelecidas para atrair, para Pecém, uma montadora automobilística. Prevê-se que esse pólo deverá criar 20.000 empregos diretos e 100.000 indiretos. Revela um Secretário de Estado: "quando projetamos o Porto de Pecém, com a implantação de uma siderúrgica e de um pólo metal-mecânico, tivemos em vista beneficiar toda uma região que engloba 38 municípios e uma população superior a 400.000 hab. São cidades que irão fornecer a mão-de-obra para o pólo industrial do Pecém". Ressalte-se que essa região é dominantemente agro-pastoril.
Com tecnologia moderna que exclui o uso do carvão, a siderúrgica exige gás natural, um consumo previsto de 36 milhões de metros cúbicos por dia, três vezes o de todos os atuais consumidores do Estado. Para tanto, fortes recursos serão aplicados em um gasoduto de 385 km, que se estende de Guamaré (RN) a Fortaleza e a Pecém.
As indústrias, já presentes e as vindouras, demandam um elevado volume de energia. Para atendê-las, o governo instalou uma linha especial de abastecimento, conhecida como Linhão Banabuiú-Fortaleza, beneficiando 39 municípios de diferentes RGAs, e uma outra linha de eletrificação que ligará o Ceará com Tucuruí (no Estado do Maranhão), porquanto a demanda se eleva 7,5% ao ano. Para essa mesma localidade, o governo estadual está em negociação com três empresas norte-americanas para construir uma termoelétrica movida a gás natural.
Dadas as boas condições de circulação dos ventos, o governo estadual projeta implantar duas usinas de energia eólica em um dos municípios do litoral.
Além dessas obras, inicia-se, na comunidade de Queixada, em Itapiúna, RGA 8, a 133 km de Fortaleza, a eletrificação com energia fotovoltaica ou energia solar, para uso mais racional possível, pois se trata de energia cara em relação a outras modalidades.
A instalação do novo aeroporto internacional exigiu a modificação do traçado urbano de alguns bairros da capital, com a abertura de novas ruas e avenidas e construção de viadutos e passarelas. Esses grandes objetos espaciais contribuirão para um grande fluxo de pessoas e bens, pois a previsão é de 2,5 milhões de passageiros por ano.
Depois de um longo e acirrado debate, está sendo construído o Açude do Castanhão, no grande vale do Rio Jaguaribe. É uma reserva hídrica que se conjugará a um sistema de bacias de várias RGAs, dentro do Programa de Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos (PROGERIRH). Completa esse Programa o PROASIS (Projeto de Abastecimento de Água do Ceará). O Castanhão atenderá uma área de grande irrigação que se projeta no Vale e em cima da Chapada do Apodi, entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, com a diáspora de várias coletividades, habitantes seculares dessas áreas.
Na esteira desses pesados investimentos, incluem-se o que há de mais necessário para este mundo novo: as infovias. Através da Secretaria da Ciência e Tecnologia (SECITECE), se desenvolvem três projetos: 1. Centros Vocacionais Tecnológicos (CVT) que abrangem 40 centros urbanos, 2 em cada RGA, onde são ministrados cursos profissionalizantes; 2. Educação à Distância que "tem como objetivo principal transferir conhecimentos de ensino básico e tecnológico à 200 escolas públicas dos 184 diferentes municípios cearenses; 3. Três Centros Regionais de Ensino Tecnológico (CENTEC) que "visam principalmente formar técnicos de 2º grau e tecnólogos de nível superior, utilizando-se dos mais avançados laboratórios nas áreas de tecnologia de Alimentos, tecnologia em Recursos Hídricos, Irrigação e Saneamento Ambiental e tecnologia em Eletromecânica.
Reflexo dessa modernidade que se instala célere no Ceará, respondendo às determinações das investidas do capital hegemônico, o sistema de telefonia se amplia e barateia seu uso.
O espaço urbano da capital do Estado também se reestrutura: alargam-se e pavimentam-se ruas e avenidas, armam-se cenários alegres e iluminados para os turistas, na faixa litorânea e no quadrante nordeste, onde o capital imobiliário investe pesadamente em prédios suntuosos. É a feição da modernidade cada vez mais presente em Fortaleza, ou melhor, num pedaço da cidade.
Recentemente, o poder público de Fortaleza apresentou um megaprojeto de urbanização da orla marítima, incluindo somente o "trecho-vitrine" do turismo, da Praia de Iracema à Beira-mar, faixa de alto valor imobiliário. Com a participação de 80% do Banco Mundial, o governo do Estado implantou, em grande parte da Capital, uma rede de esgoto sanitário com o nome de Projeto Sanear.
Essas cirurgias nos territórios, a reformulação das paisagens, a reestruturação do espaço, a introdução de inovações nas formas que se instalam no Ceará revela a exigência das novas funções - turismo, indústrias, setor terciário superior etc.-, impondo um quadro espacial renovado, como um ninho adequado à reprodução mais veloz e precisa do capital que agora pousa nessas terras tropicais de um nordeste, antes, marginalizado.
Há uma reviravolta no urbano e no rural: aeroporto, metrô, infovias, obras hídricas fantásticas, porto, saneamento, enfim, uma transmutação espacial, numa feérica fase de renovação ou de adequação ao mundo novo que se abre na terra tropical. Não se iludam os bravos caboclos, os trabalhadores que ainda morejam a terra com a técnica ultrapassada! Essas inovações não lhes dizem respeito. Voltam-se para uma nova ordem, uma ordem ditada de longe, que não exprime a vontade do local, mas do global, do sistema que busca saída, como nova configuração de um capitalismo que se restabelece, numa ânsia faminta de engolfar, não um país ou um continente, mas o mundo, na forma do que chamam de globalização.
A percepção dessas mudanças
nos traz um prenúncio de uma época em que o Ceará
se insere na onda que se insufla, a partir dos centros de decisão
do capital, neste final de século, que não é o fim
da história. Mas que seja o começo de uma formulação
de lutas, de busca de melhoria de vida para a sociedade que continua a
viver num espaço que não seja só do capital, mas de
todos os homens que constróem a história.
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NOTAS
1....,"a reestruturação, em seu sentido mais amplo, transmite a noção de uma ruptura nas tendências seculares, e de uma mudança em direção a uma ordem e uma configuração significativamente diferentes da vida social, econômica e política. Evoca, pois, uma combinação seqüencial de desmoronamento e reconstrução, de desconstrução e tentativa de reconstituição...".(1993:193)
2.Concebe-se como externalidades todas as condições - indústrias complementares, fornecedores de suplementos e matérias primas, infra-estruturas, mercadores consumidores, mercado de trabalho etc. externas às unidades produtivas que contribuam para a redução dos custos de produção e para a expansão industrial.
3.Daí
Santos (1980:163) dizer que "cada vez que o uso social do tempo muda, a
organização do espaço muda igualmente. De um estágio
da produção a um outro, de um comando do tempo a um outro,
de uma organização do espaço a uma outra, o homem
está cada dia e permanentemente escrevendo sua História,
que é ao mesmo tempo a história do trabalho produtivo e a
história do espaço."
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