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Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 69 (26) 1 de agosto de 2000

INNOVACIÓN, DESARROLLO Y MEDIO LOCAL.
DIMENSIONES SOCIALES Y ESPACIALES DE LA INNOVACIÓN

Número extraordinario dedicado al II Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

INOVAÇÕES EDUCACIONAIS: UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL
NO PARQUE SÃO BARTOLOMEU – SALVADOR-BAHIA / BRASIL

Maria Alba Guedes Machado Mello
Professora da Universidade Estadual da Bahia/Brasil
Doutoranda na Universidad de Barcelona


Inovações Educacionais: uma experiência de Educação Ambiental no Parque São Bartolomeu – Salvador-Bahia / Brasil (resumo)

O texto apresenta uma experiência de Educação Ambiental em nove escolas da rede pública municipal de Salvador-Bahia, Brasil, desenvolvida mais intensivamente durante os anos de 1994 a 1997 e coordenada pela ong, Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu-CEASB, em convênio com a Prefeitura Municipal e associações do bairro. Tratada como uma questão ética, a Educação Ambiental tem como objeto pedagógico a relação que os indivíduos mantêm com seu entorno buscando discutir qual o lugar que o ser humano deve ocupar na Natureza. A partir disso, joga importante papel o lugar onde se inserem as escolas, o Parque Metropolitano de Pirajá, que caracteriza-se como um sítio étnico e histórico da cidade de Salvador-Bahia. Metodologicamente esta proposta segue as linhas gerais da pesquisa-ação, tem como eixo central o interesse dos estudantes e busca recuperar o sentido criativo do trabalho do(a) professor(a), no processo de construção coletiva de um currículo interdisciplinar. Essa experiência traz uma contribuição à integração do sujeito fragmentado pelo individualismo da Ilustração, pois articula ação e reflexão, incorpora a noção do cidadão gestor do seu lugar, da dependência existente entre as esferas pública e privada, e, com a re-descoberta dos lugares, revincula o ser humano com a Natureza, construindo um novo sistema de valores e crenças. O cidadão toma como seu o lugar onde vive.

Palavras-chave: inovação educacional/ educação ambiental/ memória e educação/ identidade e cidadania.

Key-words: educational innovation/ environmental education/ memory and education/ identity and citizenship.


A crise ambiental é atualmente um consenso social, embora seja compreendida de forma diferenciada e abordada segundo interesses específicos. É uma pauta compartida, obviamente também por nós, educadores. Por estar indiscutívelmente associada ao modelo de organização da nossa sociedade, seja nos seus aspectos econômicos, políticos e sociais como também culturais, é reconhecida, por alguns estudiosos, como um sintoma da crise da nossa civilização.

No que concerne às propostas educacionais, a questao do meio ambiente incorpora-se tanto como uma temática específica, como uma temática chamada de transversal, que orienta a organização do currículo e perpassa todos os conteúdos de aprendizagem. As abordagens da Educação Ambiental são várias: vão desde a formação de hábitos, no sentido de preservação da Natureza, até aquelas que compreendem a questao ambiental como uma questao ética.

Pode-se educar para a responsabilidade, transformando os indivíduos em consumidores moderados, como se pode criar uma consciência ambiental de que o ser humano é dependente da Natureza e sua sobreviência, enquanto espécie, depende do tratamento que dispense a ela. Mas também podemos educar para a solidariedade e o respeito, convertendo a relação com o meio ambiente em uma questão ética. Isto é: entendendo que o atual problema do meio ambiente é relacional, de vinculação dos indivíduos com o seu entorno, abrangendo inclusive aos seus semelhantes. Em termos pedagógicos, essa última proposta incide sobre as dimensões cognitivas, sensíveis e sociais dos estudantes, o que significa conhecimentos científicos, desenvolvimento da sensibilidade, formação de hábitos e, sobretudo, a adoção de determinados valores de forma consciente e autônoma. A maioria destas propostas educativas trabalha sobre o cotidiano, buscando reconstruir os significados dos espaços nos quais se vive.

O relato de experiência, que apresento, tem como base teórica a compreensão de que o problema ambiental requer soluções éticas, além das técnico-científicas, econômicas e políticas. Acredita que a relação do indivíduo com o seu entorno, hoje vigente, tem raízes em formas de pensar, visões de mundo, tais como entender o desenvolvimento como crescimento ilimitado; associar o bem estar ao consumo; converter os recursos naturais em bens estritamente econômicos; ou atribuir ao ser humano o papel de conquistador, dominador da Natureza. Do ponto de vista ético, a Educação Ambiental tem no centro das suas preocupações as novas relações, as novas formas de vinculação, os novos referentes cujo valor central é a solidariedade.

A referida experiência de Educação Ambiental desenvolveu-se em escolas primárias da rede pública municipal da cidade de Salvador-Bahia-Brasil. Foi levada a cabo por uma ong —Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu coordenado pela professora Ana Lúcia Formigli— em convênio com a Prefeitura Municipal de Salvador, Associações Comunitárias e Fundações privadas. Participaram nove escolas, 45 professores e 2.400 alunos, com período de aplicação mais intensiva durante os anos de 1994 a 1997.

Tal experiência está estreitamente vinculada ao território no qual se insere e tem uma compreensão bastante ampla de lugar.

Nas palavras de uma das suas idealizadoras (América Lúcia Cesar em A Tarde Cultural, 14 fev.1998):

Se entendemos por lugar um território de múltiplos significados e que existe a partir das relações estabelecidas entre aqueles que o habitam ou habitaram um dia, o lugar da emoção, das recordações vividas, do sonho, da linguagem, da crença, então mais se amplia a crueldade do processo de deterioração de sítios e lugares, principalmente aqueles que são símbolos da resistência cultural de muitos dos nossos povos, que no decorrer dos tempos sofreram o silenciamento de suas formas de falar, crer, viver.

Logo, não podemos prescindir de uma breve caracterização do espaço urbano no qual estão localizadas as escolas integrantes desta experiência educativa. Farei uma breve caracterização para em seguida, poder explicar a proposta educacional propriamente dita.
 

Breve caracterização historica da região

Antes de tudo é necessário que se diga que Salvador foi a primeira capital do Brasil, quando colônia portuguesa, e a cidade que recebeu o maior contingente de africanos, naquela época, na condição de escravos. Hoje é a cidade mais negra fora do continente africano, com 80% da sua população de negros, descendentes de africanos. Há, em Salvador, um forte movimento social de afirmação das tradições africanas, que paradoxalmente está classificado como movimento de minoria. Tal movimento abrange reivindicações por direitos sociais; combate ao preconceito racial; preservação da cultura afro-baiana; e também o reconhecimento do povo africano como um agente civilizador, tanto quanto o branco europeu, particularmente os portugueses e os espanhóis, ou, se querem mais especificamente, os galegos. E, claro, como não poderia deixar de ser numa sociedade de consumo, a imagem para exportação da Bahia se faz com a cor negra, com o produto turístico do chamado publicitariamente axé-music ou o jogo-dança da capoeira.

Vale a pena ressaltar que o processo de folclorização da cultura negra se, por um lado, desaprecia a cultura afro enquanto agente civilizatório, por outro lado, cria um clima de convivência que pode até tornar-se integradora. Cito dois exemplos, apenas para justificar meu otimismo. É costume em Salvador que as autoridades religiosas dos Terreiros (centro do culto afro-baiano), sobretudo se são famosas, sejam sepultadas em cemitérios cristãos, com a liturgia da Igreja Católica, depois, é claro, das cerimônias realizadas nos Terreiros. E isso não é um sincretismo: é uma superposição de credos, que ainda hoje, já muitíssimo aliviada a repressão do branco sobre o negro, acontece em Salvador, e, no meu entendimento —atenção: não sou antropóloga!—, como um encontro de culturas. Outro: em 1998, foi re-urbanizado um espaço da cidade, que se chama dique do Tororó, muito utilizado para cultos africanos nos tempos do Império (século xix). Nesta revitalização, empreendida pelas autoridades públicas, os monumentos dos Orixás, deuses cultuados pela nação afro-baiana Ketu, ocuparam o espaço central. Temos hoje flutuando no dique do Tororó, uma líndíssima roda-de-orixás, cada qual com mais ou menos uns três metros de altura! Isso poderia significar para pessoas leigas, como eu, uma forma de reconhecimento público às tradições afro-baianas.

Apresento tais característica de Salvador, pois o espaço urbano, onde se desenvolveu a nossa experiência de Educação Ambiental é um espaço hoje fortemente marcado pela presença de práticas das religiões afro-baianas, sincretizadas com a religião indígena. Do ponto de vista pedagógico, uma proposta de Educação Ambiental não pode prescindir do conhecimento, o mais amplo possível, das raízes, sobretudo as culturais, do espaço onde se inserem os educandos. Por isso, permito-me fazer essa apresentação da história cultural desta região de Salvador.

O atual Parque São Bartolomeu está inserido na região de Pirajá localizada na parte oeste da Baía de Todos os Santos tendo acessos por mar (Enseada do Cabrito) e por terra (antiga Estrada das Boiadas, hoje br-224); de ocupação muito antiga, caracteriza-se historicamente como um lugar estratégico de penetração para o interior, isto é da comunicação de Salvador com o Recôncavo baiano. Foi palco de muitas lutas de resistência: dos portugueses contra os "invasores" holandeses (1626); dos brasileiros contra os portugueses na luta pela Independência (1823); dos escravos contra os seus senhores (1826-1835); e atualmente, podemos considerar, dos moradores contra a degradação ambiental.

No século xvi foram instalados os engenhos dos jesuítas —sócios da Corôa portuguesa na colonização brasileira— e os reais (El-Rey). Nesta ocasião foi também estabelecida a maior aldeia missionária dos jesuítas da época: a Aldeia de São João. Habitavam então esta área os índios Tupinambás, com a vida garantida pela fartura de recursos naturais: mata, mar e manguezal. Apesar de hoje quase totalmente dizimados, o índio atravessou a História do Brasil. Os próprios jesuítas trataram de incorporar a cultura indígena —particularmente o padre Manuel da Nóbrega— quando, dentro das suas estratégias missionárias, utilizou a língua e música tupis nos salmos e nas orações cristas. A realidade era que os tupis mansos e de boa índole, dizia Nóbrega, possuiam costumes muito selvagens como a poligamia e a antropofagia. Além disso, eram inconstantes, pois, mesmo convertidos, fugiam e continuavam com seus maus costumes. Diante disso, Nóbrega viu-se obrigado a buscar atrativos que pudessem garantir a permanencia dos índios nas aldeias missionárias.

A opção pela escravidão africana —diante da impossibilidade da indígena— para o trabalho nos engenhos de açúcar, trouxe para a região, no século xvii, diversas nações da África: angolana, gêge (da antiga Daomé, hoje Benin) e ketu (da antiga Yorubá, hoje Nigéria). Desta convivência resultou o sincretismo religioso: tanto entre nações africanas (candomblé), como delas (particularmente a ketu) com a indígena. Atualmente, está presente nos Terreiros de Candomblé o Caboclo, divindade indígena, cultuado como um ancestral (Egum), reconhecido como o dono da terra brasileira. O Caboclo é também objeto de culto cívico: figura como principal personagem nos desfiles comemorativos da nossa Independência e é monumento histórico em uma das grandes praças de Salvador denominada Dois de Julho, data oficial da Independência da Bahia.

Pirajá é, portanto, um sítio histórico: foi onde os brasileiros derrotaram as tropas portuguesas e na igreja de São Bartolmeu estão sepultados os restos mortais do general Labatut, reconhecido pela História oficial como o herói da nossa Independência. As lutas pela Independência, na Bahia foram um momento histórico que reuniu classes, origens e cultura políticas diferenciadas, excluídos, entretanto, os africanos. João José Reis, historiador baiano, justifica assim esta exclusão:

Os africanos eram apegados às suas raízes e tendiam ao isolacionismo político. Em geral não participavam dos movimentos sociais predominantemente brasileiros, até porque eram por estes rechaçados. Fizeram suas próprias, muitas revoltas, antes e após Independência. Mas veja, não descartavam um projeto de integração à comunidade brasileira, desde que esta os aceitasse como pessoas livres (Tribuna da Bahia, 02.07.1996, p.24).

As chamadas forças patrióticas estavam formadas sobretudo por negros e pardos, na sua maioria criolos, isto é, descendentes de africanos, mas nascidos no Brasil. A metáfora Brasil, escravo de Portugal que, no discurso político, conclamava à luta pela Independência, criou a expectativa de que, junto com o Brasil, se libertasse também aos negros. Houve então uma certa criolização ideológica dos africanos que aderiram ao projeto da Independência. Frustradas as expectativas de abolição da escravatura, os africanos retomam suas lutas de resistência e fundaram, em Pirajá, o quilombo do Urubu, que durou pouco menos de um ano (1826) e novamente concentram-se, no mesmo sítio, em 1835, para os preparativos de outro movimento chamado Rebelião dos Malês.

Estamos, portanto, falando de um território de múltiplos significados que são importantes tanto para os brancos, como para os negros e também para os remanescente indígenas da nossa população.

Para finalizar essa caracterização, gostaria de referir-me à evolução urbana mais recente da região de Pirajá. Na segunda metade do século xix passa a estrada de ferro e no princípio do século xx, instala-se a indústria textil. Pirajá assume então a característica de um bairro operário, que convive com colônias de pescadores. Com a implantação da rede rodoviária, competindo com as ferrovias, e a decadência da indústria textil, e ainda sem estar poluída, esta parte da baía de Todos os Santos vai-se tornar uma área nobre para veraneio das classes média e média alta, que convivem com ferroviários e pescadores. Em finais dos anos de 1960, serão instalados Centros Industriais (siderurgias e petroquímica) nas proximidades de Pirajá que afugentam os veranistas e acelera o processo de deterioração ambiental. Pirajá ganhou desde então o status de periferia urbana conhecida atualmente como subúrbio ferroviário

Esse é o percurso histórico de Pirajá: de região central para os índios Tupinambás e demais personagens da colonização, a periferia urbana da cidade de Salvador.
 

Um sítio étnico

Hoje o chamado subúrbio ferroviário é habitado por uma população de aproximadamente 400 mil pessoas, de baixa renda e na sua maioria afro-descendente. É um dos espaços urbanos de Salvador com maior concentração de Terreiros de Candomblé e representa —como diz Gey Espinheira, sociólogo baiano— um símbolo de baianidade, pois a Bahia é feita de África.

O Parque São Bartolomeu é considerado pelo povo de santo (termo popular) ou candomblesistas (termo acadêmico) como um lugar sagrado: é a morada dos deuses. O animismo das religiões afro-baianas reconhece em cada elemento da natureza a manifestação de uma divindade. São as cachoeiras de Oxum, Nana e de Oxumaré, a pedra de Omolu ou o mato de Ogum, Oxossi e Ossain. Há uma queda d’água de aproximadamente 10 metros, que forma uma neblina, refletindo um arco-íris que é considerada a cachoeira do deus do arco-íris, feito serpente (Oxumaré, orixá ketu; Bessen, voldum gêge; ou Anglomeian, ikisi congo). Este local tem sido lugar de romarias —mais frequentes entre os anos 1940 a 1960—, batizados, ritos iniciáticos e oferendas, que normalmente eram devoradas pelos animais da fauna local.

Também o mato (folhas) é indispensável aos rituais religiosos; diz-se, inclusive, que sem mato não há orixá; a manipulação e uso das folhas é um dos segredos mais bem guardados dos candomblés. Acredita-se que sua força mágica —evocada por palavras nas línguas antigas— só chega na mão de quem tem preparo. A pedagogia iniciática se pauta na observação contínua ou a imitação. Os elementos ritualísticos (cantigas, passos de dança, gestos e palavras) são repassados na própria prática ritualística. Porém, onde mais se educa é na conduta social.

Para o professor Angelo Serpa, nenhuma discussão ambientalista, na Bahia, pode passar ao largo do candomblé, pensa que tais ritos são

expressão de uma cosmologia e visão de mundo precisas: todas as ações dos praticantes do culto no Parque devem ser explicitadas e melhor entendidas, já que exprimem um profundo sentido estético, religioso e, porque não dizer, ecológico (Cadernos do Parque, p.67)

São Bartolomeu tem o mais significativo remanescente da Mata Atlântica, em zona urbana, do Brasil. São 994 ha dentro dos 1.550 que formam parte do Parque Metropolitano de Pirajá; aí se encontam ainda 40 espécies de árvores madereiras de grande porte, 13 espécies de árvores frutíferas e seis espécies de plantas ornamentais.
 

Intervenções

No que pese a defasagem entre medidas e ação, o poder público —tanto federal como municipal— tem legislado no sentido de preservação desta reserva da Mata Atlântica. Em 1973, foi criado por Lei Municipal o Sistema de Áreas Verdes do município de Salvador. Em 1975, o Parque São Bartolomeu, por decreto municipal, foi transformado em Area de Proteção Ambiental e, em 1978, se delimitou os 1550ha do Parque Metropolitano de Pirajá com dois tipos de zoneamento: uma zona de Proteção Ecológica (Parque Sao Bartolomeu) e outra de Cinturão de Proteção. Esse mesmo Decreto Municipal (5.363/78) proibe o corte de árvores, restringe a implantação de equipamentos urbanos, desapropria e tomba as zonas não edificáveis e regulamenta a expedição de habites.

Por outro lado, setores organizados da sociedade civil também investiam neste região criando o Movimento em Defesa do Parque Pirajá que teve como estratégia de oraganização a educação popular. Foi um trabalho de mobilização comunitária, iniciado em 1987, para o qual convergiram associações de moradores e organizações religiosas, conveniadas com a Prefeitura Municipal, governo do Estado e Universidade Federal da Bahia. Este movimento tinha como questão central a melhoria de vida dos moradores; de caráter marcadamente reivindicativo, exigia moradias, transportes, assistência sanitária e a ampliação da oferta de educação pública. Apoiado pela Igreja Católica, esse movimento também criou serviços comunitários como creches, escolas profissionalizantes e cursos para formação de agentes de saúde.

A luta pela melhoria de vida no subúrbio ferroviário acabou ampliando-se para uma consciência da necessidade de preservação dos recursos que a região oferecia e, a partir de 1992, incorporou a exigência de melhoria do Parque Sao Bartolomeu. Por iniciativa de um dos Clubes de Maes (Heroínas do Lar de Novos Alagados) foi implantando o projeto de Guia e Guardias do Parque São Bartolomeu. Esse projeto formou adolescentes para o trabalho produtivo (viveiro de plantas) e serviços (recepção a visitantes), numa tentativa de conjugar perservação ambiental e geração de renda para a população pobre. Esse foi um projeto pioneiro em Educação Ambiental que desenvolveu nos jovens um maior conhecimento do meio ambiente e resultou, entre outras coisas, em um programa sistemático de visitação Parque São Bartolomeu, até então inexistente.

O Movimento em Defesa do Parque São Bartolomeu evoluiu para a criação da Associação Amigos do Parque que tinha o amparo legal do grupo ambientalista, germen. Infelizmente, as disputas políticas internas desagregaram esta Associação e a iniciativa da Educação Ambiental, a partir de 1994, foi assumida pela Universidade Federal da Bahia através do seu Centro de Estudos Afro-Orientais —CEAO.

O CEAO tinha, na época, um Programa de Estudos que buscava novas perspectivas metodológicas que pudessem abranger os bens simbólicos da herança dos negros na Bahia. Sua proposta era avançar até o campo dos movimentos sociais que tivessem o negro no centro e subsidiar teoricamente a promoção de uma escola pública que contemplasse novas pedagogías atentas à formação do negro e suas especificidades culturais. Seus pesquisadores empenhavam-se em construir interfaces onde os interesses teóricos da academica pudessem se aliar aos interesses do proselitismo da militância.

Cria-se então, entre 1995 e 1996, a ong Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu—CEASB que desenveu a proposta pedagógica de Educação Ambiental que ora apresento.
 

Proposta pedagogica de educação ambiental

O CEASB, juntamente com o CEAO, convocou em 1996 um seminário O Parque que queremos, no qual participaram representantes de 130 organizações comunitárias: associações de moradores, clubes de maes, terreiros de candomblé e moradores em geral. Acreditava-se que o destino do Parque está vinculado ao da população do seu entorno e o Parque deveria ser um aliado no desenvolvimento da comunidade. Nas palavras de Ana Lúcia Formigli, coordenadora do CEASB,

O Parque de Pirajá oferece hoje, à Cidade de Salvador, a oportunidade de reencontro com as suas mais caras raízes. Ao mesmo tempo, e não contraditoriamente, oferece a possibilidade única de fazer um gesto na direção do século que vai se iniciar, colocando-se, governos e cidadãos, em sintonia com os apelos que se poem na contemporaneidade: a busca de uma nova relação com a natureza, na perspectiva de tornar viável a vida das gerações futuras. (Cadernos do Parque, p.17)

Em contraponto às medidas governamentais que cercam e aumentam o número de fiscais no Parque São Bartolomeu, o Seminário previu atividades de ocupação e revitalização geradoras de renda para a população, como: apiários, reconstituição vegetal, viveiro de plantas, banco de sementes etc. Combina-se então conservação ambiental e desenvolvimento a favor da melhoria da qualidade de vida da população local.

A partir de então, foi tomando forma um projeto mais global o Memorial Pirajá, cuja concepção incluiu, na luta pela melhoria de vida, a construção da identidade cultural. Consolidando-se no próprio curso da sua experiência, o Memorial Pirajá articula estudo, pesquisa e intervenção social, numa clara convergência dos interesses de todos os seus protagonistas.
 
 

1. Fundamentos teóricos

Adota-se a educação para a cidadania, formando-se o cidadão como gestor, entendida como uma exigência democrática. A memória e o imaginário fundamentam a ação pedagógica e o eixo metodológico é o da pesquisa-ação. A pesquisa parte da observação exploradora das múltipla dimensões do lugar, que resulta em proposições —projetos de intervenção— e/ou em consenso de desejos.

Como diz a pedagóga Flávia Gazzinelli O horizonte é a formação de indivíduos explicadores e gestores do seu próprio espaço, capazes de escolher formas de participação na apropriação e monitoramento do seu lugar. (texto inédito, no prelo)

Tal processo de formação de cidadãos gestores objetiva, num primeiro momento, superar as relações cotidianas condicionadas pela força do hábito e proceder uma nova percepção do lugar; isto é: penetrar nas informações, sentimentos, imagens e linguagens.

Em segundo lugar, busca a consciência —em todos os níveis— de que a gestão das políticas públicas, em última instância, está nas maos do cidadão; sem eles, aquelas não poderão consumar-se. Neste sentido se abre a possibilidade para a ação individual (tão desacreditada!) rompendo com a idéia de que o que é público é de responsabilidade exclusiva do Governo.

E, enfim, a dimensão ética, não construção de um novo padrão de relação entre o ser humano e a natureza, divergindo do utilitarismo vigente, a partir da discussão de qual é o lugar do indivíduo na Natureza.
 
 

2. Metodologia: a construção coletiva do currículo

O trabalho pedagógico se concentra nas realidades de vida social mais imediatas. O conhecimento da realidade é produzido a partir das experiências dos indivíduos e suas trajetórias pessoais. O objeto pedagógico é, portanto, a memória: dos alunos, dos professores, dos moradores —sobretudo os mais antigos— e também a memória que há organizada sobre o passado. Trabalha-se a memória oral e a escrita, articulando seus conteúdos aos mais globais, numa perspectiva interdisciplinar.

O curriculo é um processo de criação, focado no interesse do aluno e construído de forma coletiva.As professoras sistematizam os interesses dos alunos, delimitam objetivos e temáticas das diferentes áreas de conhecimento e articulam os conhecimentos popular e o científico; decidem quais são os objetivos a alcançar e determinam uma forma sistemática, sequencial e acumulativa; desenvolvem um sistema de registro; e proporcionam orientações práticas em uma situação real.

Um curriculo assim, integrado por completo, faz com que os alunos desenvolvam conhecimentos, conceitos, técnicas e atitudes em um contexto pleno de sentido, ao mesmo tempo em que transformam a professora em um pensador.

O re-conhecimento desta realidade mais imediata resulta em um diagnóstico (e identificação de problemas), cujos conteúdos são, enfim, transformados em atividades pedagógicas como jornais murais, vídeos, peças de teatro e projetos de intervenção.

Neste processo, professores e alunos são levados a responder de forma ativa e autônoma aos problemas do seu entorno. Abandonando uma postura passiva e exercitando-se como cidadãos gestores do seu espaço, elaboram e executam projetos de intervenção, concretizando assim os objetivos —a que já nos referimos—: de produção de um novo conhecimento do lugar; de possibilidade da ação individual e conjunta da comunidade escolar; e, consequentemente, de recriação dos vínculos com seu lugar.

No que se refere particularmente ao âmbito educativo, essa pedagogia atribui à escola um papel de espaço de reflexão do processo de socialização das crianças e jovens; recupera a dimensão criativa do trabalho do professor; e cria vínculos inestimáveis com a comunidade na qual se insere.
 
 

3. Descrição da experiência

A população envolvida nesta experiência tem um nível de renda entre dois a quatro salários-mínimos (aproximadamente 70 a 280 dólares), vive em favelas, invasões ou áreas urbanizadas pelo Município para habitações populares. O padrão ocupacional da área mescla residências, pequenos comércios e serviços, na sua maioria oficinas de reparação.

As escolas situadas neste bairro pertencem à rede pública municipal e são escolas de educação primária. Em 1996, estavam organizadas em instalações com duas a cinco salas de aula, tendo 30 a 40 alunos por professora e funcionavam em dois períodos.

Apresento agora as linhas gerais desta experiência de Educação Ambiental.

Associada ao interesse pela aplicação de uma Pedagogia de Projetos, a proposta de Educação Ambiental foi apresentada às professoras destas escolas, juntamente com o pessoal de apoio pedagógico da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Salvador.

A partir da adesão voluntária das professoras (que foi progredindo no decorrer da implantação da proposta), iniciou-se um trabalho de acompanhamento destas professoras que constituiu-se de: compartir a sala de aula, promover encontros de formação e participar em reuniões pedagógicas.

Do próprio conhecimento que professoras e alunos tinham do seu lugar, foram levantadas questões, identificandas lacunas e aspirações de outros aspectos, que desejavam conhecer. A sala de aula transformou-se assim no espaço de construção do currículo; de relatos e depoimentos sobre o lugar, conforme a temática definida conjuntamente por professoras e alunos. A equipe de assessores do CEASB motivava os depoimentos ao mesmo tempo em que auxilava e demonstrava procedimentos para registro e condução dos depoimentos / relatos.

Nos encontros das professoras eram coletivizados esses exercícios de sala de aula e reformulados seus conteúdos: conhecimentos, lacunas, aspirações; no primeiro momento entre professoras e em seguida cada qual com seus alunos. Além desta troca de experiências, os encontros de professoras foram momentos para reinvenção de suas práticas pedagógicas como formas de escuta, decodificação e a sistematização dos interesses dos seus respectivos aluno e também um espaço para a expressão das angústias, da reflexãao e revisão de suas trajetórias profissionais. Nestes encontros as professoras assumiam novas posturas (que elas chamavam de ser novamente alunas) de verdadeiros pesquisadores: produziam novos conhecimentos, experimentavam novas dinâmicas de ensino-aprendizagem e reconstruíam seus conhecimentos teóricos.

Nas reuniões pedagógicas se buscava discutir as repercussões e/ou os ajustes que esta experiência —de algumas professoras em suas classes específicas— trazia ou poderia trazer para a escola como um todo; isto é: se situava o projeto no contexto da Escola.

Descrevo, como exemplo, um dos projetos, o Roda Pião que nasceu do interesse das crianças por novas brincadeiras. Além do conhecimento próprio dos alunos e das professoras, foram entrevistados moradores, pais e avós das crianças que compareceram às escolas para ensinar a brincar. A investigação foi realizada em torno de como se brincava antigamente e como se brinca hoje em dia. O objetivo era construir um inventário (escrito, visual e gravado em cd) de brincadeiras e um acervo de objetos guardados por algumas avós ou reconstruídos conforme suas instruções.

A investigação teve os seguintes passos: primeiro, sempre partindo do próprio conhecimento das crianças e suas respectivas professoras, foram identificados os elementos de uma brincadeira (regras, procedimentos, objetos, espaço, hora apropriada, versos cantados ou falados etc), trazendo desta forma uma re-conhecimento a este ritual tão espontâneo da convivência infantil. Daí foram construídos roteiros para tomada de depoimentos dos pais, avós e de outros moradores do bairro. Em segundo lugar, explorou-se a relação entre gerações, coletando as experiências de como se ensina ou se aprende brincadeiras. E por último, a brincadeira foi objeto de uma investigação histórica (de onde vem, a que cultura está associada etc) quando se pôde perceber os diversos momentos de reinvenção da memória coletiva.

As crianças distribuíam entre si as responsabilidades da entrevista e do registro e as professoras lhes assessoravam. Suas principais preocupações foram com o ritual do jogo: quem brincava, qual a idade em que mais se brincava determinadas brincadeiras, se havia ou não hora ou período do ano mais apropriado (a pipa, por exemplo, se empina mais em agosto, quando se tem muito vento) etc. Além disso, investigaram e apropriaram-se de aspectos mais simbólicos encarnados em palavras, gestos e outros signos próprios de jogos infantis.

As diferentes tarefas, assumidas pelas crianças, exigiam diversas destrezas tanto de leituras como de registros: desenhos, textos descritivos, gravações, vídeo, construção de brinquedos etc.

Essa pesquisa-ação propiciou aprendizagens artísticas (dança, música, artesanato); valorização do saber popular apreendido a partir da memória oral; descobertas dos espaços, no bairro, apropriados para os jogos e brincadeiras; além de conquistas mais cognitivas como escrita, desenvolvimento lógico formal, história dos povos e suas respectiva cultura manifestada nas brincadeiras, sobretudo as musicadas.

Desde então, o ato de brincar ganhava uma nova intencionalidade. Ficou estabelecido o conhecimento de sua inserção em um contexto cultural e histórico. Os sujeitos que brincam agora se sabem portadores de valores históricos e culturais, e também responsáveis pela sua preservação e continuidade, através do repasse. A maior conquista, entretanto, foi a vinculação afetiva criada com o Parque São Bartolomeu como espaço lúdico e, consequentemente, objeto de cuidado e conservação.

Dentro desta mesma linha metodológica foram desenvolvidos outros projetos com temáticas sobre o lixo urbano, o aparecimento das ruas (evolução urbana do bairro), conhecimento das profissões, para os quais compareceram diversos interlocutores como técnicos da Prefeitura, profissionais estabelecidos no bairro e outros.

Conclusão

Sem a utopia de que a Educação Ambiental possa apresentar a solução para os problemas atuais, nos caberia refletir, a guisa de conclusão, qual a sua contribuição para tais problemas.

No meu entendimento, a Educação Ambiental traz uma pedagogia de integração, reconstituindo o sujeito fragmentado pelo individualismo da Ilustração. Pode incontestavelmente levar os indivíduos a responderem de forma ativa e autônoma às solicitações impostas pelo seu meio, abandonando, portanto, uma postura passiva ou de impotente insatisfação.

Na medida em que recupera a dimensão criativa do ensino-aprendizagem, forma indivíduos mais críticos e atuantes. Envolvidas em situações concretas, as crianças exercitam a sua cidadania e não simplesmente aprendem como ser cidadãos quando adultos.

Vencendo a distância entre os saberes popular e científico, essa pedagogia torna alunos e professores mais conscientes do seu papel histórico enquanto produtores de conhecimento.

A articulação entre ação e reflexão tem como decorrência a noção do cidadão gestor do seu lugar que incorpora uma nova compreensão da dependência existente entre as esferas pública e a privada, no dia-a-dia do cidadão.

Além disso —e esta é a particularidade da Educação Ambiental— com a re-descoberta dos lugares, revincula o ser humano com a Natureza, construindo um novo sistema de valores e crenças, tomando como seu o lugar onde vive.
 
 

Bibliografia

Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu-CEASB. Parque Metropolitano de Pirajá: História, natureza e cultura. In Ana Lúcia Menezes Formigli (Org.) et al. Coleção Cadernos do Parque. Salvador, CEASB, 1998.

Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu-CEASB. O espaço, o ser humano e seus lugares: sistematização das atividades de Educação Ambiental. 1994-1996. (no prelo).

GAZZINELLI, Maria Flávia. Educação Ambiental: uma experiência bem sucedida (longe do ideal – perto do exeqüível). In Em Aberto, 58; Brasília, abr/jun.1993; pp.106-116.
 

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