Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] Nº 69 (23), 1 de agosto de 2000 |
INNOVACIÓN, DESARROLLO Y MEDIO LOCAL.
DIMENSIONES SOCIALES Y ESPACIALES DE LA INNOVACIÓN
Número extraordinario dedicado al II Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE A DIFUSÃO DO FUTEBOL
Gilmar Mascarenhas de Jesus
Departamento de Geografia - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Doutorando em Geografia Humana - Universidade de São Paulo
Considerações teórico-metodológicas sobre a difusão do futebol (Resumo)
Antes de tornar-se a modalidade esportiva mais praticada na atualidade,
o futebol vivenciou um amplo e complexo processo de difusão espacial,
partindo da Inglaterra vitoriana em direção às mais
diversas regiões do planeta. No sentido de colaborar na
construção de uma metodologia de abordagem geográfica
deste fenômeno, discutimos as especificidades do futebol como inovação,
e oferecemos elementos teórico-conceituais na perspectiva do estudo
da sua difusão espacial. Pretendemos não apenas sinalizar
a viabilidade de investigações desta natureza, como também
contribuir para o entendimento do processo evolutivo de um importante fenômeno
social do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: modernização/ futebol/ inovação/
teoria da difusão espacial.
Theoretical-methodological remarks about the football diffusion (Abstract)
Before to become the most practised sport nowadays, football experienced a broad and complex spatial diffusion process, departing from Victorian England toward diverse regions of the planet. In order to contribute in the making of a geographic methodology about this phenomenon, we debate the uniqueness of the football as an innovation. We also offer theoretical-conceptual elements toward a spatial diffusion study of football. We intend to show the viability of this kind of investigation, as well as to contribute in understanding the evolution process that involves an important social phenomenon of the contemporaneous world.
Key words: modernization/ football/ innovation/ spatial diffusion theory.
O futebol desfruta incontestavelmente da privilegiada posição de esporte mais difundido e praticado no mundo. Para alcançar tal magnitude e ubiqüidade, cumpriu nos últimos 130 anos uma complexa trajetória de difusão, partindo da Inglaterra industrial do final do século XIX em direção às mais diversas regiões do planeta. Um percurso muitas vezes acidentado, condicionado por fatores de resistência cultural à adoção do novo esporte, quando não a própria dificuldade em informar localidades remotas quanto à existência daquela inovação que já despertava paixão nos grandes centros urbanos.
Embora se encontre amplamente difundido e apresente pronunciado crescimento
nas últimas décadas, o futebol evidentemente não desfruta
do mesmo grau de prestígio e tradição em todas as
regiões do planeta. Esta distribuição desigual é
o resultado do processo histórico de sua difusão espacial,
e dele pouco sabemos para além de considerações genéricas,
pois o processo
detalhado de difusão espacial desta inovação pelo
mundo e seus mecanismos específicos permanecem pouco estudados.
O objetivo deste trabalho é, por conseguinte, oferecer ao debate
um conjunto de proposições no sentido de se edificar uma
metodologia de estudo da difusão e adoção do futebol.
O texto a seguir se divide em dois segmentos. Primeiramente, indagamos
em que medida a teoria da difusão espacial de inovações
pode nos auxiliar nesta empreitada. Retomamos criticamente as principais
contribuições no estudo geográfico da difusão
de
inovações, também com intuito de recuperar e/ou
superar conceitos, métodos e técnicas que podem de alguma
forma servir de parâmetro para nossa reflexão. Na segunda
parte, reivindicamos o tratamento do futebol como inovação.
Considerando sua ausência na tradição geográfica
de investigação na área de difusão espacial
de inovações, apresentamos e discutimos uma forma de abordar
e operacionalizar o estudo do futebol a partir de algumas de suas especificidades.
Bem como investigar o curso de sua difusão inserido no processo
histórico e no contexto das macro estruturas sociais.
A difusão de inovações em geografia: dos elementos da cultura material aos modelos abstratos da ciência espacial
Segundo James Blaut (1994), a abordagem difusionista se consolida ao
longo do século XIX, sobretudo entre etnógrafos, e mais tarde
na nascente disciplina chamada Antropologia Cultural. Guarda intrínsecas
relações com a expansão colonial européia em
direção à África e Ásia. A partir do
olhar eurocêntrico do colonizador, estabelece uma concepção
de mundo na qual existiriam de
um lado regiões e/ou povos biologicamente superiores e permanentemente
inovadores, e de outro os incapazes de inovar. Aos últimos, para
promover a necessária civilização “redentora do atraso”,
caberia imitar as técnicas e valores das regiões mais desenvolvidas.
E estas teriam a missão de difundir seus conhecimentos e hábitos
“superiores” pelo mundo. Estava, uma vez mais,
ideologicamente justificada a violenta aventura colonial.
Desde sua institucionalização na segunda metade do século
XIX, a Geografia Humana sofre a influência do difusionismo se faz
notar, particularmente nas formulações da Antropogeografia
de Fiedrich Ratzel sobre a difusão de elementos da cultura material
(CLAVAL, 1999:20-22). Mais tarde, Carl Sauer, fundador da Escola de
Berkeley, avançou nesta direção, também preocupado
com a propagação de raças, religiões, técnicas
e modos de vida, mas incluindo a dispersão e a dinâmica de
espécies vegetais e animais para entender a “morfologia da paisagem”
...O mito difusionista de que regiões de cultura supostamente “inferior”
são “espaços
vazios” a serem preenchidos inexoravelmente pelas técnicas civilizatórias,
a uniformizar o mundo do futuro, impulsionou aqueles primeiros geógrafos
culturais à premente tarefa de inventariar paisagens, técnicas
e costumes em vias de desaparecimento. Acreditavam na tendência a
uniformização global mas não propiamente em “espaços
vazios”. Cabe frisar que o corpo teórico do difusionismo, não
configura um bloco monolítico. James Blaut (1994:176) diferencia
pelo menos a existência de uma teoria
difusionista “clássica” de uma outra, “moderna”, a qual se impõe
no pós-segunda guerra mundial. A primeira se baseia em arcaicos
princípios etnográficos que pressupõem a existência
de raças humanas superiores (os brancos) com sua missão civilizatória
(a empresa colonial), e teria influenciado os supracitados estudos de difusão
na geografia tradicional. A segunda se pauta na superioridade tecnológica
das nações desenvolvidas, e seu papel de difundir o progresso
no Terceiro Mundo.
A grosso modo, na teoria difusionista moderna a “modernização”
substitui o efeito “civilização”, e a suposta superioridade
econômica-tecnológica faz excluir a tese da superioridade
racial. No mais, ambas compartilham da concepção de um mundo
bipartido em regiões inovadoras receptoras de inovação.
Este enfoque predominante no pós-guerra promove um segundo momento
da influência de teorias difusionistas em geografia. Observando a
rápida transformação da tradicional paisagem agrícola
da Suécia meridional pela introdução de novas técnicas,
o geógrafo Torsten Hagerstrand inaugura, em 1953, uma nova metodologia
de
estudo da difusão espacial das inovações . Rompendo
sobretudo com os princípios do método ideográfico
da Geografia Humana de Vidal de La Blache e com a Geografia Cultural de
Sauer, Hagerstrand investiu na perspectiva nomotética: tomando a
difusão de inovações como “processo espacial”, buscou
identificar modelos gerais a partir de regularidades observadas empiricamente.
Sem dúvida, promoveu grande avanço ao estabelecer um conjunto
de conceitos operacionais.
Uma distinção fundamental entre Hargestrand e os estudos
anteriores é sua fé na positividade do progresso humano,
em oposição ao romantismo dos geógrafos tradicionais,
preocupados com o rápido desaparecimento de antigas paisagens e
gêneros de vida
(MCDOWELL, 1996). A proposta de Hagerstrand apenas foi traduzida para
o inglês 15 anos mais tarde mas se difundiu plenamente no contexto
do movimento “new geography” dos anos 60. A teoria dos pólos de
desenvolvimento de François Perroux ilustra uma faceta deste movimento.
Com o prestígio do planejamento regional dentro de um suposto esforço
desenvolvimentista de correção de desigualdades espaciais,
muitos geógrafos passaram a se dedicar ao estudo sistemático
da difusão de inovações, com
preocupações claramente pragmáticas (viabilizar
a difusão de novas técnicas produtivas ou a do consumo de
bens e serviços), distanciando-se da orientação cultural
que caracterizava o período anterior (SANTOS, 1979; SILVA, 1995).
A teoria da difusão espacial de inovações de Hagerstrand
somente pode ser compreendida se enfocada no âmbito da ciência
espacial, isto é, a via pela qual a geografia foi reformulada enquanto
disciplina em meados do século XX, voltando-se para o estudo da
ordem espacial e suas geometrias abstratas. Modelos derivados diretamente
da física foram aplicados em estudos de
interação e difusão espacial, enquanto modelos
de localização foram transmitidos da economia neoclássica,
conforme assinala Derek Gregory (1996:99). A ciência espacial é
reconhecidamente uma geografia com discurso analítico totalmente
apartado do contexto histórico e social, com interesse puramente
técnico sobre os eventos espaciais. Seus métodos triunfaram
sobretudo
nos anos sessenta, ao fim dos quais se iniciam as críticas por
parte dos adeptos da nascente geografia radical.
David Harvey (1973:41) critica os estudos de difusão espacial
de inovações por sua irremediável tendência
a ignorar a complexidade da dinâmica social, dela isolando os (pretensos)
processos puramente espaciais, como por exemplo a consideração
do efeito-proximidade nas ondas de difusão. Parece-nos entretanto
que não foi este o principal ataque desferido por Harvey às
teorias
geográficas de difusão neste seu decisivo livro (“A justiça
social e a cidade”), onde propõe o arrasamento de certos fundamentos
da new geography e a construção de uma nova forma de pensar
a sociedade e o espaço. Aparentemente pior foi sua evidente indiferença,
dedicando à difusão espacial poucas linhas e de certa forma
fazendo antever seu progressivo ostracismo nos anos seguintes.
No Brasil, coube a Milton Santos elaborar uma crítica contundente à teoria em questão, acusando-a de possuir “pouca substância” e apresentar desconexão com o contexto social, ao deter-se em modelos abstratos (Santos, 1979:46-47). Santos condenou a realidade sendo deformada em modelos matemáticos, através de um pobre exercício de simulação atado a dados passíveis de análise quantitativa, e ainda condicionado por interesses empresariais, conforme denuncia o título de seu artigo. É presumível que, considerando-se o porte do autor e o momento em que foi publicado (no contexto do projeto de afirmação de uma geografia radical no Brasil), este artigo tenha inibido consideravelmente a continuação de estudos de difusão espacial. Acabou prevalecendo em relação a tais teorias uma postura de negligência ou condenação que Carlos Silva (1995:48) denominou de “macarthismo às avessas”. De fato a comunidade geográfica perdeu a oportunidade de realizar uma profunda reformulação neste campo, em contexto particularmente propício ao debate teórico.
Mesmo correndo o risco de um balanço superficial, em síntese
podemos afirmar que o longo percurso do estudo de difusão de inovações
no pensamento geográfico esteve condicionado por pressupostos teóricos
advindos do difusionismo. Avaliamos que num primeiro momento, sob influência
da teoria difusionista clássica, foram enfatizadas a propagação
de raças, espécies e técnicas
e seus efeitos na relação homem – meio, base da Geografia
Humana tradicional. Mais tarde, prevaleceram os modelos abstratos da ciência
espacial, sua orientação desenvolvimentista e sua predileção
por técnicas produtivas e difusão do consumo de bens e
serviços. Em ambas, pode-se notar, eram precárias as
condições para se refletir sobre a difusão de práticas
esportivas ou de outras formas de entretenimento. A primeira, premida pela
abordagem positivista (a cultura como um dado da realidade à qual
não caberia ao geógrafo questionar) e a preocupação
com as “marcas na paisagem”, se atém às tradicionais técnicas
de sobrevivência e aos elementos materiais. A segunda dedica-se basicamente
aos aspectos econômicos., para mensurar em determinada porção
da superfície terrestre o avanço do progresso técnico
e da modernização .
Neste último quarto de século, a geografia destinou pouca atenção ao tema da difusão de inovações. As abordagens baseadas no estruturalismo e no marxismo dos geógrafos radicais descortinou toda uma gama de problemáticas inéditas, associadas à premente agenda da transformação social, não restando lugar ao tema “frio” ou mesmo “ideologicamente comprometido” da difusão.
Mais recentemente, a nova geografia cultural e as abordagens apoiadas
na fenomenologia vêm também abrindo novos horizontes temáticos,
sem tampouco destinar ao estudo da difusão qualquer destaque . O
auge deste sem dúvida ocorreu durante a vigência da ciência
espacial e da geografia quantifitativa, entre os meados das décadas
de 1950 e 1970, o que certamente explica seus
contornos básicos enquanto método.
Concluímos portanto que o legado em pauta muito pouco nos auxilia na tarefa de pensar uma metodologia para o estudo da difusão espacial do futebol. Queremos abordar esta difusão por outras vias, que não as das geografias tradicional e pragmática.
Concordamos com Milton Santos (1979), para quem o estudo da difusão
de inovações é de grande utilidade, desde que se considere
o tempo histórico das formações sociais e sua ação
em lugares concretos. Visualizamos assim uma história social da
difusão do futebol com conflitos e contradições
no lugar de linearidades e equilíbrios abstratos. Uma história
contextualizada, envolvendo um processo dialético de forças
sociais em ação. A teorização acumulada lamentavelmente
pouco ajuda, mas não poderia jamais ser completamente ignorada.
Tampouco nos inibe da tentativa de trilhar novos caminhos, conforme esboçaremos
a seguir.
O futebol como inovação: considerações teórico-metodológicas
O conceito de inovação abriga amplo leque de fenômenos. Segundo autores diversos (HOOCK e LEPETIT, 1987; BROWN, 1981), a inovação pode ser uma técnica, um produto, uma prática ou mesmo uma idéia. O futebol, ao introduzir na vida social uma nova possibilidade de lazer coletivo ao ar livre e mais tarde um espetáculo de massas, pode evidentemente ser encarado como uma importante inovação. Não obstante, trata-se de uma inovação extremamente complexa e de difícil manejo no âmbito da investigação geográfica.
No intuito de abordar o problema em pauta, este segmento abrange um conjunto de questionamentos, que alinhamos a seguir. Cada um dos três itens abaixo será abordado em um subcapítulo próprio. São eles:
1) No contexto histórico da virada para o século XX, que
tipo de inovação ‘e o futebol?
2) Enquanto inovação, quais são seus agentes e
suas rotas de difusão espacial?
3) Quais são as condições de adoção?
Em outras palavras, quais os principais fatores locais de resistência
e de receptividade à inovação?
O futebol: uma inovação peculiar
O futebol que os ingleses difundiram pode ser encarado como uma nova prática corporal (esportiva e de lazer) que se oferecia à experiência cotidiana. Uma nova forma de uso do tempo livre, esta noção que vai se impondo gradativamente nas sociedades industriais do Ocidente no final do século XIX. Também uma nova forma de uso dos espaços livres nas cidades, funcionalizando-os para o entretenimento. Em síntese, uma forma inédita de apropriação do tempo e do espaço, que se colocava à disposição de um crescente universo de indivíduos naquele contexto histórico de grandes transformações sociais (MASCARENHAS, 1998).
Em primeiro lugar, devemos considerar que o processo de inovação
no âmbito sócio-cultural adquire uma complexidade bem maior
que o mero advento de uma nova e mais eficiente técnica produtiva,
que proporciona imediato aumento de produtividade, ou qualquer outro benefício
calcado na racionalidade simples da busca do maior lucro, e que se manifesta
empiricamente de forma
clara: a presença ou a ausência da inovação
na paisagem (BLAUT, 1994). A mudança de valores simbólicos
(morais, estéticos, etc.) pressupõe todo um processo, que
pode apresentar distintas etapas. No caso do futebol, podemos observar
diferentes níveis de adoção, variando do mais informal
(práticas espontâneas pelas ruas, sem rigor espaço-temporal)
ao mais “oficial” (realização de
partidas previstas em ligas organizadas, observando-se estritamente
as normas do jogo e da competição).
Neste sentido, numa mesma localidade, entendemos que o futebol perfaz distintas etapas de inovação, conforme nos foi possível observar examinando-se ampla literatura sobre história do futebol em diversas localidades do Brasil:
a) a observação involuntária e casual (a princípio com repúdio e estranhamento) de ingleses (marinheiros, mineiros etc.) informalmente jogando futebol em suas horas de folga;
b) a observação interessada e sistemática (com certa admiração e curiosidade) dos fatos supramencionados;
c) o primeiro contato direto com a pelota e com as regras do jogo;
d) o primeiro duelo informal, em local improvisado, reunindo ingleses e nativos interessados em aprender o futebol;
e) a formação e oficialização do primeiro clube de futebol nativo, que se propõe a difundir e ensinar o esporte inglês e realizar partidas entre seus dois quadros;
f) a escolha e conquista de lugar específico e apropriado para a prática contínua do novo esporte (uma praça, um baldio, ou, em cidades maiores, uso de equipamento esportivo de grande extensão, como hipódromos e velódromos);
g) a formação de novos clubes, permitindo o surgimento de rivalidades locais e nova motivação para a prática do futebol;
h) a criação da primeira liga e consequentemente a realização do primeiro campeonato local;
i) a construção do primeiro estádio, demarcando na paisagem urbana uma centralidade associada exclusivamente ao futebol, expressão de sua força econômica, política e social, e que facilita a participação em certames extra-locais.
Certamente a evolução supracitada não foi rigorosamente
seguida em todas as localidades, apresentando eventuais inversões
na ordem dos acontecimentos. Quanto aos agentes introdutores da inovação,
também verificamos um quadro heterogêneo, que discutiremos
posteriormente. Por enquanto oferecemos tão somente um parâmetro
para futuras investigações, aquelas que se reportam ao processo
de difusão do futebol realizado antes do advento dos grandes meios
de comunicação de massa. Não
pretendemos repetir o velho equívoco aqui já mencionado,
o de ignorar a diversidade das formações espaciais concretas
em nome de modelos teóricos apartados da realidade social. Se observarmos
por exemplo a introdução do futebol em países que
o
acolheram mais recentemente (como China e Japão), quando este
já havia se tornado o esporte mundialmente mais praticado e com
grandes possibilidades de lucro, certamente encontraremos um processo completamente
distinto da espontaneidade que se verifica um século atrás:
o futebol sendo planejado e fomentado por grandes empresas.
Em síntese, o futebol enquanto inovação apresenta
particularidades, das quais enfocamos neste momento apenas aquelas relacionadas
aos distintos estágios de adoção. A seguir trataremos
dos agentes e rotas de difusão desta inovação, ainda
no contexto histórico da primeira grande onda de difusão
mundial do futebol, verificada entre 1880 e 1900.
Agentes e rotas de difusão espacial do futebol
A difusão espacial do futebol está intrinsecamente relacionada com o imperialismo inglês e sua vasta área de influência, o que permitiu ao futebol êxito muito superior a outras modalidades de esporte coletivo de grande apelo popular, como o beisebol norte-americano . Lembremos que, na segunda metade do século XIX, uma quarta parte do mundo estava sob domínio inglês, e que das Ilhas Britânicas partiu mais de 1/3 da volumosa onda migratória européia entre 1850 e 1890 (SAID, 1995; HOBSBAWM & RANGER, 1982). As redes de suporte deste vasto império ofereceram as rotas fundamentais de difusão de inovações como o futebol. Seus agentes de difusão foram, muitas vezes, migrantes britânicos trabalhando em empreendimentos ingleses, conhecedores daquele esporte que se popularizou amplamente no Reino Unido a partir de 1870.
Evidentemente, nem todas as regiões “importadoras” do futebol são colônias inglesas, mas em praticamente todos os países com os quais mantinha relações comerciais, os ingleses aportaram o futebol como mais um produto de sua vigorosa “indústria”. Não é por acaso que o primeiro clube de futebol formado no continente europeu, para além dos limites das Ilhas Britânicas, ocorreu em Le Havre, França, em 1872. Trata-se, antes de mais, de um cidade portuária da Normandia, estreitamente conectada com a Inglaterra (MERCIER, 1996). Ao estudar o advento do futebol em determinado país ou região, é portanto fundamental um levantamento dos locais de atividade portuária, e de suas conexões com os ingleses. Diversos países (como Brasil, Argentina, Uruguai, França e Espanha) atestam a importância dos portos como portas de entrada do futebol. As rotas comerciais atuaram como meio eficaz de difusão desta inovação.
Na América do Sul, os interesses britânicos, apesar de
territorialmente difusos, encontravam grande concentração
no rico comércio platino. Esta seria uma de suas principais singularidades:
a presença de numerosa colônia inglesa fomentou a criação
de
estabelecimentos educacionais próprios, e nestes o futebol foi
sistematicamente praticado a partir de 1870 (ARCHETTI, 1995:203).
Neste caso, os agentes de difusão não são apenas marinheiros,
técnicos de ferrovias ou operários de minas, e sim professores.
Trata-se de uma variação no padrão de difusão
decorrente do elevado grau de conectividade da região com os negócios
ingleses.
Jovens bacharéis egressos de universidades européias também
cumpriram importante papel difusor do futebol em seus países de
origem. Aprenderam na Europa não apenas a prática de um novo
esporte, mas sobretudo a dimensão simbólica deste: o futebol
visto como atividade portadora dos benefícios da civilização
européia. Ao regressar a sua terra natal, empenharam-se em difundir
o futebol, tomando-o como atividade saudável e capaz de aperfeiçoar
o caráter e outros atributos morais. O fluxo de indivíduos
provenientes de camadas sociais privilegiadas em direção
às universidades européias revela nitidamente uma situação
de dependência cultural em relação aos antigos centros
colonizadores, que definem os novos valores e padrões de conduta.
Uma
relação desigual que não pode ser ignorada quando
se trata da difusão de inovações. A abordagem difusionista
nos alerta para este aspecto, embora incorra no erro de encarar a desigualdade
como um dado “natural”, e não fruto de estruturas históricas
de dominação.
Por fim, cabe lembrar o papel cumprido por agentes religiosos. No fim do século XIX, diversos segmentos da Igreja Católica já haviam incorporado em sua pedagogia a prática esportiva. A ampla dispersão geográfica de missionários europeus nos demais continentes colaborou na difusão do futebol, conforme atesta a literatura.
Tais instituições, por desfrutar de certo prestígio
social, detém peculiar capacidade de influenciar hábitos
em comunidades locais. No Brasil, há indícios de que a atuação
dos irmãos maristas tenha sido fundamental em pequenos centros urbanos
distantes das
metrópoles e também nas áreas rurais .
Em síntese, o estudo dos agentes difusores do futebol em determinada
região deve recorrer ao levantamento da presença e atuação
dos setores aqui assinalados. Certamente podem haver outros agentes, pois
cada lugar se relaciona com o mundo (e suas redes) de forma particular.
Cabe ao pesquisador o discernimento necessário.
A adoção do futebol: fatores locais de resistência e receptividade
Segundo Robert Sack, apenas recentemente os geógrafos deixaram de ignorar o quanto o espaço e o lugar afetam decisivamente os processos sociais, ainda que não se tenha ido muito além da mera constatação deste poder (Sack, 1993:326). Em breves linhas, procuraremos argumentar o quanto e como o lugar define importantes condições no processo de adoção do futebol.
Hägerstrand (1967:149) já alertava para o fato de que a adoção de uma inovação no plano cultural não se realiza de forma simples e imediata, estando pois plenamente sujeita à ação de “mecanismos retardadores”.
Concordamos com esta premissa, mas a deslocamos da variável “padrão
comportamental do indivíduo” para a consideração do
papel relevante do lugar no processo da adoção da inovação
cultural. De fato, os levantamentos já realizados testemunham que
em regiões ou cidades onde preexistia a prática esportiva
a adoção do futebol realizou-se de forma muito mais rápida,
pois tratava-se
simplesmente de mais uma modalidade a ser praticada, com seus então
conhecidos benefícios físicos e morais do esporte. No Brasil,
neste sentido, é evidente o ritmo diferenciado de adoção
do futebol quando comparamos a zona de colonização alemã
no Sul (já habituada aos exercícios físicos e à
prática esportiva) com o sertão do Nordeste, onde a atitude
de correr atrás de uma pelota de couro era vista com muito estranhamento,
sobretudo quando realizada por adultos, trajados também de forma
insólita. Seria, na terminologia de Hägerstrand (1967), uma
“inovação drástica”, isto é, em desarmonia
com os valores e estruturas do ambiente receptor.
Concordamos com Lawrence Brown (1968:11) quando este critica um princípio
de Hägerstrand, segundo o qual a intensidade do fluxo de informação
determina quase todo o processo de adoção da inovação,
ao minar gradativamente as resistências locais. Tal princípio
se apoia na noção (herdada de teorias evolucionistas) de
que uma determinada racionalidade econômica, oriunda dos países
desenvolvidos, acaba se impondo a todos os indivíduos, mesmo em
localidades mais “atrasadas”. Em outras palavras, a difusão da inovação
é tomada como um processo inevitável, variando geograficamente
apenas em velocidade. Verificamos em nosso levantamento que no início
do século XX o pleno acesso à informação não
foi condição suficiente para a adoção do futebol.
Em
determinado contexto local, a informação pode operar
como semente em solo infértil. Um ambiente cosmopolita e industrial,
aliado a um desejo de modernidade foram ingredientes fundamentais para
que o futebol germinasse velozmente em São Paulo, ao contrário
de Belém do Pará, a despeito da intensa conexão desta
cidade com a Inglaterra, enquanto animado porto exportador da
borracha .
A intensidade dos fluxos comerciais no Atlântico Norte levam o futebol precocemente aos EUA: em 1867 surge o Harrow School Team, que Kane & Rote (1978:39) consideram o mais antigo clube de futebol criado fora da Grã-Bretanha. Entretanto, este esporte foi logo banido oficialmente das universidades norte-americanas pelo movimento nacionalista, ressurgindo mais tarde como prática popular de imigrantes pelas ruas das cidades industriais do nordeste do país. Tais imigrantes (italianos, em sua maioria) eram acusados de anti-americanismo: sua incorrigível devoção pelo futebol inglês era vista como a pretty good measure of their refusal to become Americans (“o melhor indicador do grau de sua recusa em se tornar americanos”) (GARDNER, 1976:168). A precocidade do caso norte-americano revela o alto grau de conectividade do nordeste industrial daquele país. Revela também uma reação política do lugar contrária à adoção de a inovação proveniente do ex-colonizador, no esforço de construção da identidade nacional. Revela ainda que a heterogeneidade cultural local permite que a adoção seja socialmemte realizada de forma parcial e marginalizada, por pobres migrantes.
Em síntese, o lugar atua como condicionador de todo o processo.
Tanto no poder de atrair informações (grau de conectividade)
quanto na capacidade de transformar a informação em eventual
ação concreta, quanto ainda na forma específica de
incorporá-la em sua prática cotidiana. A novidade do futebol
inglês, enquanto informação, circulou pelo mundo com
grande seletividade espacial, submetendo-se aos imperativos das redes do
imperialismo britânico. E para se incorporar à vida cotidiana
das diversas localidades por onde foi “anunciado”, o futebol necessitou
contar com condições especiais: em cada lugar, um ritmo distinto
de adoção,
definido por diferentes graus de rejeição e receptividade.
E mesmo a forma que assumiu variou conforme as especificidades de cada
lugar.
Conclusão
O futebol é incontestavelmente uma das principais instituições
do mundo contemporâneo. Sua ampla difusão planetária
cumpriu historicamente diversas etapas e ainda segue em curso. O estudo
acurado deste longo processo permanece como uma lacuna. Procuramos todavia
demonstrar que o legado teórico em estudos de difusão espacial
muito pouco tem a contribuir em
empreendimentos como este. Primeiramente, a influência positivista
não permitiu aos geógrafos tradicionais operar com temas
para além dos elementos palpáveis da cultura material. Num
segundo momento, já no âmbito da ciência espacial, os
estudos de difusão privilegiaram a dimensão econômica
em detrimento da cultura. A geografia radical, por sua vez, desprezou esta
linha de investigação.
Em síntese, para investigar a difusão espacial do futebol faz-se necessário um esforço no sentido da elaboração de um novo caminho metodológico. Um caminho que contemple as especificidades do futebol enquanto inovação cultural, e seu movimento de difusão, a partir da atuação de redes e dos condicionantes de cada lugar.
O presente trabalho procurou apresentar algumas propostas e considerações
neste sentido.
Bibliografia
ARBENA, Joseph. El mapa deportivo de America Latina. Lecturas: Educación Física y Deporte (revista digital), num 14, año IV, junio/1999, Buenos Aires.
BLAUT, James. Diffusionism: a uniformitarian critique. In FOOTE, K. et alli (Org.) Re-reading Cultural Geography. Austin: University of Texas Press, 1994, p.173-190.
BROWN, Lawrence. Innovation diffusion: a new perspective. London, New York: Methuen, 1981, 87 p.
BROWN, Lawrence. Diffusion Dynamics: a review and revision of the quantitative theory of spatial diffusion of innovation. Lund: Lund Studies in Geography, 1968.
CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Florianópolis: Editora da UFSC, 1969, 453 p.
GARDNER, Paul. The Simplest Game. Boston e Toronto: Little, Brown & Co, 1976.
GREGORY, Dereck. Teoria Social e Geografia Humana. In: GREGORY, MARTIN & SMITH (Orgs.) Geografia Humana: sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 90-122.
HÄGERSTRAND, Torsten. Innovation difusion as a spatial process. Chicago: University of Chicago Press, 1967, 334 p. (original em sueco publicado em 1953).
HARVEY, David. Social Justice and the City. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1973, 336 p.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (Org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
HOOCK, J. e LEPETIT, B. Histoire et propagation du nouveau. In HOOCK, J. e LEPETIT, B. (Orgs.) La ville et l’innovation: relais réseaux de diffusion en Europe, 14e.-19e. siècles. Paris: L’École de Hautes Études en Sciences Sociales, 1987, p. 7-28.
KANE, Basil & ROTE, Kyle. Complete Book of Soccer. New York: Simon & Schuster, 1978, 412 p.
MASCARENHAS, Gilmar. Futbol y Modernidad en Brasil: la geografía
historica de una novedad. Lecturas: Educación
Física y Deporte (revista digital), num 10, año
III, mayo/1998 , Buenos Aires.
MASCARENHAS, G. e SILVA, L. Fé e futebol: indícios da conrtibuição marista na formação da pátria de chuteiras. VII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança. Gramado: maio de 2000.(no prelo)
MCDOWELL, Linda. A transformação da geografia cultural.
In: GREGORY, MARTIN & SMITH (Orgs.). Geografia Humana:
sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996, p.159-188.
MERCIER, Joseph. Le Football. Paris: Press Universitaire de France (Coleção Qui sais-je?), 1966, 98 p.
RIVERA, Enrique. Mexico en sus regiones socioculturales deportivas. Lecturas: Educación Física y Deporte (revista digital), num 13, año IV, marzo/1999 , Buenos Aires.
SACKS, Robert. The power of place and space. Geographical Review, vol. 83 (3), july 1993, pp.326-329.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 370 p.
SANTOS, Milton. Difusão de inovações ou estratégia de vendas? In SANTOS, M. Economia espacial: críticas e alternativas. São Paulo: Hucitec, série Economia & Planejamento, 1979, p.29-57.
SAUER, Carl. A morfologia da paisagem. In: CORREA e ROSENDAHL (orgs.) Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUerj, 1998, p. 12-74.
SILVA, Carlos A. Os avatares da teoria da difusão espacial: uma
revisão teórica. Revista Brasileira de Geografia,
57 (1), 1995, p. 25-51.
© Copyright: Gilmar Mascarenhas de Jesus, 2000
© Copyright: Scripta Nova, 2000