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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (63), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

PRODUÇÃO DO ESPAÇO, SISTEMAS TÉCNICOS E DIVISÃO TERRITORIAL DO TRABALHO

Luiz Cruz Lima
Professor de Pós-graduação em Geografia
Universidade Estadual do Ceará, Brasil


Produção do espaço, sistemas técnicos e divisão territorial do trabalho (Resumo)

Como a produção do espaço resulta do trabalho social que se funda no sistema técnico imperante em cada fase da história., o conjunto das tarefas executadas pela sociedade reflete a correlação entre espaço produzido e as técnicas disponíveis em determinada época, também chamada de ciclo. O Brasil nasceu na região do nordeste atual, do litoral (com a cana) ao interior ou o amplo sertão nordestino, com a pecuária. Neste, sucederam do séc. XVII ao XXI vários sistemas técnicos caracterizantes da pecuária, cotonicultura, extrativismo, agroindústria e turismo. Cada um com suas especificidades de trabalho. Tomamos, como referência territorial, uma parte de uma das unidades político-adiministrativas, o estado do Ceará no Nordeste Oriental, cujo trabalho sempre esteve ligado, direta ou indiretamente, à ordem internacional, quer da metrópole (Portugal) quer de outros mercados1.

Palavras-chave: sistemas técnicos, pecuária, atividades extrativas, agro-indústria e turismo


Production of the space, technical systems and territorial division of the labor (Abstract)

As the production of the space results of the social work that is founded in the technical system that dominates each phase of history, the group of tasks executed by society reflects the correlation between produced space and the available techniques in a certain time, also known as cycle. Brazil was born in the area of the current northeast, from the coast (with the cane) to the wide Northeastern interior, with the cattle raising. In it, several technical systems from the 17th to the 21st centuries distinguished by cattle breeding, cotton culture, extractive activities, agribusiness and tourism. Each one with its own work specificities. We took, as territorial reference, part of one of the political-adiministrative units, the state of Ceará in the Eastern Northeast, whose work was always linked, direct or indirectly, to the international order.

Key words:  technical systems, cattle raising, extractive activities, agro business and tourism.


O espaço, como produto do trabalho social, estabelece a condição de continuidade da sociedade, pois cada nova geração sobrevive utilizando-se dos objetos do passado, superpondo-lhes ou acrescentando-lhes outras criações. O geógrafo Allen Scott (1988) diz que "sob as pressões da acumulação, o mundo social está continuamente sendo transformado e retransformado". Com o tempo, o espaço se complexifica e, com as novas condições de comunicabilidade entre os grupos sociais, o espaço ultrapassa o local, tornando-se universal.

As técnicas de uma época estão no espaço produzido. O tempo está, assim, no espaço. Neste, o tempo se denuncia pela presença de diferentes modos de produção. Daí Santos (1980, p.163) dizer que "cada vez que o uso social do tempo muda, a organização do espaço muda igualmente. De um estágio da produção a um outro, de um comando do tempo a um outro, de uma organização do espaço a uma outra, o homem está cada dia e permanentemente escrevendo sua História, que é ao mesmo tempo a história do trabalho produtivo e a história do espaço."

No capitalismo, essas exigências de fazer e refazer formas assumem um caráter cíclico. Harvey (citado por Soja, 1993) sintetizou esse caráter do sistema: "as contradições internas do capitalismo expressam-se através da formação e re-formação irrequietas das paisagens geográficas. É de acordo com essa música que a geografia histórica do capitalismo tem que dançar, ininterruptamente"

Essa afirmação de David Harvey nos leva ao tema dos ciclos, debatidos e teorizados por pensadores de diferentes posturas ideológicas 2, como a teoria dos ciclos longos ou das ondas de Kondratieff.

Nesse corpo teórico, a análise ultrapassa os limites da economia, porquanto vê o sistema em sua totalidade, incluindo "componentes tecnológicos e sociais em interação com o subsistema econômico (Perez) ou, como nos diz o economista brasileiro Ignácio Rangel: "os ciclos econômicos não são apenas fatos econômicos. São fatos sociais, no mais alto sentido dessa expressão" (Folha de São Paulo, 04/08/88). Se são fatos sociais, exprimem-se nas feições da "segunda natureza".

Esses ciclos estão relacionados com as mudanças tecno-econômicas e sócio-institucionais. À medida que elas apresentam uma sintonia há uma tendência de refazer-se da crise e o sistema toma impulso, fase em que se propõe chamar de fase "A". Quando o sistema capitalismo entra em crise, com o desajuste dos dois subsistemas (tecno-econômico e sócio-institucional), entra na depressão ou fase "B".

Desde o século XVIII que, com o controle e a condensação do conhecimento tecnológico transformado em técnica, o capitalismo reedifica-se e solidifica-se, embora dentro das contradições que lhe são inerentes. Os grandes períodos, grandes ciclos ou ondas longas, de duração entre 50 e 60 anos, são marcados por determinados conjuntos de descobertas, de inovações conjugadas que estabelecem uma nova forma de produção e de consumo, possibilitando uma outra dinâmica à vida global da sociedade, afeiçoando-a a um outro paradigma. Dessa maneira, mudam-se as funções, ressurgem formas novas para melhor atender a reanimação dos fluxos de que resulta a produção de um novo espaço, o espaço da modernidade de então. É porisso que podemos falar do espaço de uma determinada época, de novas funções das formas ressurgentes, de "rugosidades"3, de reestruturação do sistema da renovação do espaço geográfico e de inovação da modalidades e das formas de relações de trabalho.

Na compreensão do economista europeu Joseph Schumpeter (1883-1950), essa fluidez do sistema em, periodicamente, apresentar rupturas e posterior ajustamento deve-se à sua dinâmica basear-se na vaga contínua de destruição criativa. Essa idéia se fundamenta na ação dos empresários inovadores que, diante da crise, assimilam a nova ordem técnica e adotam métodos capazes de produzir a custo menor. A base do contexto capitalista está na "abertura de novos mercados, externos ou internos, e o progresso de organização desde o artesanato até a indústria que, incessantemente, revoluciona a estrutura econômica, destruindo incessantemente a antiga e incessantemente criando uma nova. Este processo de destruição criativa é o fato essencial do capitalismo" (Schumpeter,1946, p.103-4).

Para Soja (1993), "a reestruturação, em seu sentido mais amplo, transmite a noção de uma ruptura nas tendências seculares, e de uma mudança em direção a uma ordem e uma configuração significativamente diferentes da vida social, econômica e política. Evoca, pois, uma combinação seqüencial de desmoronamento e reconstrução, de desconstrução e tentativa de reconstituição..." (p. 193). O espaço é a expressão mais significante dessa mudança. Nesse aspecto, a cidade é o lugar de maior demonstração do espaço reconstruído e criador de extensores capazes de vincular diferentes pontos, proporcionando a abertura de novos mercados que oferecem meios para a nova ordem que se constrói. Dela partem as ordens, as informações e as comunicações que definem as modalidades de uso dos territórios, da organização da produção e de forma de existência do homem.

Embora esse norteamento teórico esteja mais intimamente relacionado ao conjunto global do sistema capitalista, essa reflexão nos leva a compreender porque subespaços também passam por ciclos. Isso ocorre, especialmente, quando notamos a inserção econômica e produtiva desses subespaços. Isto se faz quando esses pedaços de espaço recebem ordens externas, como sempre tem sido o caso do nordeste brasileiro.
 

A produção do espaço e os sistemas técnicos: do SéculoXVII ao Século XX

O Brasil nasceu na região Nordeste, do litoral, com a cana de açúcar, para o interior ou o amplo sertão nordestino semi-árido, com a pecuária extensiva. Esse sertão, na parte mais setentrional, se estende ao litoral, esculpido por vales, por vezes amplos como no estado do Ceará, inicialmente chamado de Capitania do Siará-Grande. Um desses vales é o do Rio Jaguaribe, em cujas terras se instalaram as grandes fazendas para a criação de bovinos.

A atividade produtora inicial na Colônia de Portugal (em oposição à extrativa dos espanhóis em suas colônias na América, das quais extraíam ouro e prata em abundância) tornou-se economicamente hegemônica e alicerçou as bases da exploração e da estabilidade social e política da colônia. O senhor de engenho, bem como a casa grande e a senzala ilustram o caráter dessa sociedade, com todas as suas contradições.

A pecuária surge, por sua vez, como atividade complementar aos canaviais. Expulsa do litoral pela expansão da monocultura canavieira (cujo ápice ocorreu com a Carta de 1701 que proibia a criação de gado até dez léguas das plantações canavieiras), a pecuária ganha o interior da colônia.

Com a ratificação do criatório, mais tarde, toma importância o algodão, contribuindo para imprimir à estrutura fundiária do sertão nordestino o conhecido binômio gado-algodão, o que persistiria até o século XX. Nesse processo crescem cidades, capitanias inteiras renascem e a criação do Estado latifundiário toma contorno. Pouco a pouco, funda-se a geografia do trabalho no novo país.

Na Capitania do Ceará e, em especial, no vale jaguaribano, o grande motor da colonização foi a pecuária. Impondo-se e superpondo-se ao espaço indígena, ela foi indutora de novos parâmetros produtivos e culturais. Pode-se afirmar que ela gerou um sistema técnico, cujos marcos ainda restam nos diferentes espaços sertanejos. No amplo vale do rio Jaguaribe, os criadores encontraram as condições favoráveis para expandir os rebanhos, com o fim de atender o mercado regional de carne e de outros produtos, como o couro. Os estudos de Lima (1997, p. 32-33) testemunham os fluxos dos rebanhos nesse vale, delineando redes geográficas que deram origem aos núcleos urbanosa nova divisão social do trabalho:

Podemos citar os vaqueiros com seus rebanhos de gado pelo Olho d’ Água da Bica (Chapada do Apodi), saindo pertinho de Limoeiro e de Tabuleiro do Norte, local, na colônia, de entroncamento de caminhos que vinham de Sobral para a Paraíba, para o Rio Grande do Norte, dos Cariris e de Inhamuns para Aracati, conforme se lê numa notícia sobre a construção de estradas, na seca de 1877.

Em condições de baixo nível técnico, com regime extensivo em enormes glebas do semi-árido, os currais ocuparam todo o interior da capitania para fornecer produto alimentício (carne) e matéria-prima (couro) à indústria incipiente.

Vale ressaltar que alguns donos de currais procuravam estabelecer suas fazendas em pontos relativamente próximos uns do outros, o que contribuiu para favorecer o aparecimento dos primeiros núcleos urbanos. Girão (1984) afirma que em 1788 possuía a ribeira do Jaguaribe número de currais suficiente para que fosse exigida dos sesmeiros uma contribuição à construção de igreja da atual cidade de Russas. Assim, a igreja entra no cenário, não apenas como ícone da fé, mas como símbolo do poder decorrente da agregação territorial da riqueza, baseada na reprodução do gado. Essa mesma ingreja, por séculos, foi a ferramenta básica para a formação da força-de-trabalho servil, à medida que moldava os nativos à obediência, a ferro e fogo.

O comércio do gado, cujo transporte era feito através das estradas de boiadas, foi o que permitiu uma maior ocupação do espaço cearense incluindo o nascimento de núcleos urbanos. Alguns desses núcleos, já existentes, se ampliaram com o deslocamento de mercadores de um para outros lugares, como o exemplo de Crato: ocorreu a partir de 1850, com a chegada ao Crato de comerciantes de Icó, verificou-se, aí, grande surto comercial (Diniz, 1989).

Viabilizando instalar o circuito espacial entre litoral, onde se mantinha a incipiente indústria da carne, com o sertão (no interior do continente), de Aracati sai a estrada geral do Jaguaribe, passando por Russas e Icó (no sudoeste da Capitania). Daí, tomando o vale do rio Salgado, atinge o Cariri, ultrapassando a Chapada do Araripe para alcançar o Médio São Francisco, em terras de Pernambuco.
 

A Pecuária como Sistema Técnico da Colonização

Historicamente, a bacia do rio Jaguaribe foi a primeira região objeto das empresas colonizadoras. A primeira empresa colonizadora data de 1603, quando Pero Coelho de Souza tentou com um efetivo de mais de duzentos homens, "descer" o Jaguaribe com o intuito de combater a pirataria francesa na região. Posteriormente, organizou outra expedição, da qual participou Martins Soares Moreno, para fundar Nova Lisboa no rio Ceará (fora da bacia do rio Jaguaribe). Tendo que resistir aos ataques indígenas e suportar a seca de 1605/1607, Pero Coelho foi obrigado a retirar-se primeiro para o Jaguaribe e, em seguida, para o Rio Grande do Norte. Assim, terminara em fracasso a primeira empresa colonizadora. Apesar disso, fixara-se um novo tipo de trabalho nas terras, então, conhecidas.

Posteriormente, apesar das secas e da reação dos indígenas e sempre penetrando em terras desconhecidas, os vaqueiros puderam estabelecer-se nas margens do rio Jaguaribe. O porto construído, chamado Porto dos Barcos (Aracati), logo veio a servir de escoadouro da carne. Consolidava-se o portal que daria condições para o fluxo de pessoas e mercadorias entre a colônia e outros centros mais dinâmicos, como Recife e Salvador. A invasão dos holandeses a Pernambuco, as conseqüentes escaramuças para expulsá-los, impulsionou a imigração de pernambucanos, portugueses e paraibanos para a região do Jaguaribe. Com esse fluxo de imigrantes, Aracati tomou impulso, como centro de poder e de produção.

No século XVII, a atividade comercial desenvolveu o pequeno arraial. O comércio do charque, da carne do boi, do couro, dentre outros, com Portugal, pôs Santa Cruz do Aracati na dianteira do desenvolvimento. Quando em 1747 (11 de abril) se converteu em vila, já era um dos mais desenvolvidos da Capitania. O comércio, primeira atividade econômica do lugarejo, era intenso com os portugueses, pernambucanos, paraibanos, baianos etc. O fluxo de mercadorias que vinha da bacia do Jaguaribe, obrigatoriamente transitava por Santa Cruz do Aracati.

A venda da carne do boi e o comércio do couro foram os maiores responsáveis por essa euforia econômica. A carne trazida para a vila era salgada e transformada em charque nas oficinas. Naquele período, Santa Cruz do Aracati consolidou-se como o "pulmão econômico" da capitania. O comércio do couro e da carne industrializada lhe dava status e lhe abriam portas para os artigos de Portugal. É interessante notar que a opulência da vila se manifestava na arquitetura das edificações, nos monumentos, nos casarões e nas artes.

No entanto, em fins do século XVIII, a crise climática viera sufocar a dinâmica da vila proporcionada pela indústria da carne de sol. Tal indústria ressurgiria no extremo sul do país, conforme registra Maciel (1994, p. 14-15):

A indústria das charqueadas, com seca de 1790 a 1793, sofre um grande golpe, destruindo grande parte da pecuária cearense. Além da calamidade da seca, nasce no Rio Grande do Sul a indústria dos charques, transportada do Ceará pelo cearense José Pinto Martins que se estabelece em Pelotas, liquidando de vez essa fonte de economia nordestina.

Desse modo, verifica-se como a civilização do gado se estabelecia nessa porção do território cearense, edificando atividades produtivas integrantes de um sistema técnico, pouco a pouco, consolidado.

O Baixo Jaguaribe possuía, ainda, outro núcleo, de destaque menor que Aracati, mas que conformava junto àquele os dois maiores dinamizadores da economia do Baixo Jaguaribe em fins do século XVIII e início do século XIX. Era a Vila das Russas, em atribuição ao riacho das Russas que cortava o povoado. Russas, cujas terras foram ocupadas por grandes fazendas, nascera com a criação do gado. Estabelecidos os currais, estes se expandiram extrapolando seu papel inicial, dando surgimento ao povoado.

Os fundadores de Russas também eram originários de Pernambuco, que vinham não só para criar gado, mas para plantar no Jaguaribe. Algo comum aos povoados da região é o fato de serem impulsionados pela construção das capelas. Se com a pecuária se estabelecia o sistema produtivo, com a Igreja se erguia a instituição católica, sobre o cadáver dos nativos rebeldes que não acatavam o etnocídio de uma cultura consolidada em séculos.

Não se deve olvidar que, como ocorreu nos demais recantos do Ceará, a colonização do Baixo Jaguaribe se fez em detrimento dos nativos, ora mortos, ora escravizados pelos senhores do gado, com a conivência da Igreja Católica. Andrade (1986: 149) nos sintetiza esse embate cruel entre as duas civilizações:

Os vários grupos indígenas que dominavam as caatingas sertanejas não podiam ver com bons olhos a penetração do homem branco que chegava com gado, escravos e agregados e se instalava nas ribeiras mais férteis. Construíam casas, levantavam currais de pau-a-pique e soltava o gado no pasto, afugentando os índios para as serras ou para as caatingas dos interflúvios, onde havia falta d´água durante quase todo o ano. Vivendo na Idade da Pedra, retirando o sustento principalmente da caça e da pesca, o indígena julgava-se com o direito de abater os bois e cavalos dos colonos, como fazia com qualquer outra caça. Abatido o animal, vinha vindita e a reação ao indígena e, finalmente, a guerra. Guerra que provocou o devassamento do interior e que se concluiu com o aniquilamento de poderosas tribos e com o aldeamento dos remanescentes. Guerra que possibilitou a ocupação, pela pecuária, do Ceará, do Rio Grande do Norte e de quase toda a Paraíba.

Desse modo consubstanciava a formação de um primeiro sistema técnico nessa porção do Nordeste, com um exército de trabalhadores dentro dos moldes exigidos pelo mercado.
 

O Algodão como Força de Inserção no Mercado Internacional

Já se afirmou que a pecuária possibilitou a fixação do homem no interior da Capitania do Siará-Grande. Do criatório emergia o primeiro tipo de indústria no Ceará, a do charque. Isso se dera em face de um cálculo simples dos criadores: com a perda de peso do animal nos grandes deslocamentos das manadas, tornava-se, então, mais interessante abater o gado antes e salgá-lo para, logo em seguida, transportar em lombos de burro até Aracati. Assim, originava-se a indústria da carne o que deu origem às famosas charqueadas que movimentaram a economia do Baixo Jaguaribe, criando importantes centros como Aracati e Russas.

Outros produtos agrícolas surgiram como fortes concorrentes do açúcar, ao qual a pecuária estava ligada. O principal deles é o algodão que não se desligará do gado, ao desenvolver-se põe outras regiões da Capitania do Ceará em destaque e com maior vantagem econômica sobre aquelas que se mantinham apenas com o gado e seu comércio.

O algodão, como planta nativa, era trabalhada pelos índios e, posteriormente, pelos escravos, na produção artesanal de "panos grosseiros". A partir do último quartel do século XVIII é que o algodão toma um caráter de atividade comercial (Girão, 1986), fato relacionado à demanda têxtil européia.

Com a Revolução Industrial inglesa, um surto se estabelece, florescendo a economia do Maranhão e de Pernambuco, até a entrada de concorrentes, como o sul dos Estados Unidos, quando decai a produção. Na segunda metade do século XIX, a Guerra da Secessão, entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos, impede a produção algodoeira desse país, favorecendo a retomada das exportações brasileiras, refazendo as regiões desoladas do Nordeste até 1870, aproximadamente. Girão (1986, p. 158) nos descreve como esse fato contribuiu para o avanço sobre as terras cearenses:

De um ano para outro, a Província cobriu-se de algodoais; derribavam-se as matas seculares do litoral às serras, das serras aos sertões; o agricultor com o machado em uma das mãos e o facho na outra deixava após si ruínas enegrecidas. Os homens descuidavam-se da mandioca e dos legumes, as próprias mulheres abandonavam os teares pelo plantio do precioso arbusto; era uma febre que a todos alucinava, a febre da ambição.

Na avaliação de Caio Prado Júnior (1963, p.142), por ter sido uma cultura dos lavradores modestos, foi possível o grande e rápido desenvolvimento da cultura algodoeira. Esse autor revela que no Ceará, o algodão invade a bacia do Jaguaribe, e seu principal centro se localizará no Alto-Sertão, em Icó. Aracati, escoadouro natural desta região, torna-se um destacado porto que, em 1794 já remetia 16 a 18.000 arrobas (Ibidem, p.145).

Dessa forma, novos investimentos são feitos, dessa vez na produção agrícola algodoeira, inaugurando um segundo sistema técnico na região do Baixo Jaguaribe, expandindo um novo conjunto de fixos (armazéns, teares, fábrica de beneficiamento etc.) e criando novas relações de trabalho.

O algodão alcança, em meados do século XIX, o posto de principal produto da Capitania do Ceará. A Capitania exportava diretamente para os consumidores na Europa. Como conseqüência, a cultura do algodão disseminava-se por todo o território cearense. As melhores terras, o maior número de fazendas e os mais incomensuráveis esforços são canalizados para a cultura do algodão, que não descarta o gado, mas pelo contrário, faz com ele o binômio gado-algodão. O algodão, resistente ao clima semi-árido do nosso sertão passa então a ser cultivado em praticamente todo o Ceará.

Com abertura dos portos em 1808, o Ceará passa a exportar o algodão diretamente para o mercado externo. Mais recentemente, no lugar do porto de Aracati, ligado ao couro e ao charque, é escolhido como porto natural de exportação do algodão, o porto de Fortaleza. A rede de coleta do algodão contava com cidades subcoletoras, mas a grande coletora e exportadora passa a ser Fortaleza. A construção da primeira linha férrea, Baturité – Fortaleza e a abertura de estradas interligando a capital com o interior dão o toque final a essa tendência. Com as ferrovias concentrando-se no novo porto, Fortaleza desbanca Aracati como centro de exportação algodoeiro. Aracati, então, entra em fase de estagnação.

A cultura do algodão engendra necessariamente o desenvolvimento de uma incipiente indústria artesanal que tinha como centro a cidade de Fortaleza. A indústria têxtil que se desenvolveu em Fortaleza ampliaria ainda mais a distância desse centro em relação aos demais centros urbanos do Estado. Como na velha Inglaterra, a indústria têxtil veio, no Ceará, criar um novo campo de trabalho, não apenas com a agricultura, como também na algazarra das maquinaria que se movimentavam em variados cantos.
 

O Extrativismo da Carnaúba: do Artesanal ao Industrial

O Nordeste foi a região que mais desenvolveu a cultura do algodão. O produto já era conhecido pelos nativos, cultivado limitadamente. A Guerra da Secessão (1862/1871) nos Estados Unidos, no entanto, paralisou a produção daquele grande exportador, possibilitando o aumento da área de produção no Nordeste. Terminada a guerra, as indústrias na Europa voltaram a ser abastecidas pela produção americana. Além disso, os ingleses passaram a produzir algodão no Egito, sua colônia, cujo algodão de boa qualidade desfavorecia de vez as possibilidades do algodão nordestino concorrer no mercado internacional. Assim, no século XX, o algodão do Nordeste não mais detinha a hegemonia de antes. Na região do Baixo Jaguaribe, com a desaceleração da produção algodoeira tem início uma outra fase, a da carnaúba.

A carnaubeira é uma palmeira nativa das regiões semi-áridas do Ceará. Na ribeira do Jaguaribe, em toda a extensa zona do território entre Aracati e o Icó e ainda em muitos outros pontos da Província (Girão, 1986:, p.171) até o Piauí, as vastas áreas de várzeas e de baixios são cobertas por carnaubeiras. Por um processo artesanal, de um pó das folhas dessa árvore, em princípios do século XIX, Manuel Arruda Câmara conseguiu produzir um tipo de cera, cuja utilidade seria descoberta pouco tempo depois.

A carnaúba, havia tempos, era conhecida e aproveitada de várias formas, do tronco ao fruto e suas folhas, pela população local. Em 1810, Antônio Marcos de Andrade criou a técnica de produção da cera de carnaúba, sendo inclusive recompensado pelo governo brasileiro. A primeira grande utilidade para a cera de carnaúba foi o emprego no fabrico de velas. Essa utilidade perdurou por quase todo o século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, a cera de carnaúba passa a ser empregada na indústria, para assoalhos. A pesquisa, aliada ao desenvolvimento industrial, proporcionou um vasto campo de utilidade para esse produto: papel carbono, graxa para calçados e mobílias, cera para carro, isolantes térmicos, discos, polimento de couro, tintas e vernizes entre outros. Acreditamos que, com a utilização industrial da carnaubeira, estabeleceu-se um sistema técnico, cujos componentes se encontram em diferentes setores da economia, além de projetar-se na vida social econômica, política e cultural. Expande-se a indústria da cera, com tecnologias específicas, solidifica-se todo um circuito da produção da extração no comércio externo, com novas relações sociais.

Nas cidades do Baixo Jaguaribe forma-se uma aristocracia, detentora de poder econômico e político. A arquitetura urbana ligada a esse período se assemelha à fase da pecuária: com seus casarões residenciais, amplos prédios comerciais, galpões fechados do processamento industrial ainda são encontrados em algumas cidades do Baixo Jaguaribe.

A cera de carnaúba chegou a ser o segundo produto da pauta de exportação do Estado do Ceará. A região do Baixo Jaguaribe chegou a responder por aproximadamente 70 por cento da produção do Estado e 20 por cento da produção nacional. Os municípios de Russas e Limoeiro do Norte, além de Jaguaribe e Morada Nova destacam-se entre os grandes produtores estaduais. No ano de 1954, só o município de Russas produziu 700 toneladas, o que equivalia a toda produção paraibana, pernambucana e baiana juntas. A produção de cera de carnaúba é atualmente de 6,1 milhões de toneladas. Seu peso econômico, entretanto, decaiu muito por motivo de estar sendo substituída por produtos químicos que se prestam melhor à antiga função da cera de carnaúba. Hoje é apenas o sexto produto na pauta de exportação do Estado. Há indícios de uso da cera de carnaúba em novos processos de alta tecnologia, o que a coloca em novas perspectivas com possível retorno à fase áurea dessa região.
 

Turismo e Agroindústria: Fase Atual da Produção Espacial

Com a acumulação de capital propiciada pela fase da economia agroextrativista da carnaúba, o Baixo Jaguaribe redirecionou suas atividades para a indústria mineral, baseada nos recursos locais, especialmente calcita (Limoeiro do Norte) e argila (Russas e Aracati). Somente a última tem relevância como atividade que induziu alguma expressão espacial, como o processo de degradação ambiental e a difusão de técnicas da olaria, destacando-se a partir dos anos sessenta.

Embora com poucos gêneros, a indústria é representada por estabelecimentos de pequeno porte que transformam os produtos regionais, sendo as mais expressivas as alimentícias, de bebidas etc. para o mercado local, além das de beneficiamento de cera de carnaúba e algodão.

Na década de 1990, quando as transformações econômicas mundiais interferem mais e mais na economia local, percebe-se o interesse de grandes grupos transnacionais de investirem seu capital na região litorânea.

Outra fonte de renda para municípios do litoral da região tem sido o turismo. Hoje Aracati investe em infra-estrutura para induzir a entrada de capital no município. O carnaval fora de época e outros eventos lúdicos contribuem de modo significativo para a economia local. Para isso, desenvolveu-se uma rede de hotéis e pousadas, o que ampliou o interesse de pequenas e médias empresas, com projetos de marketing sobre turismo. Por outro lado, três níveis de governo (Municipal, Estadual e Federal), além de empresas imobiliárias, têm investido em infra-estrutura e apoio à atividade turística. Icapuí e Fortim, ao lado de Aracati, vêm se destacando nessa atividade com a agregação de capitais no setor de serviços .

Em fase mais recente, capitais externos vêm implantando unidades de transformação ligadas a produtos agropecuários, como a Parmalat (laticínio, em Morada Nova) e a Del Monte (fruticultura, em Quixeré).

Estes tipos de indústria participam da cadeia de produção agropastoril que apresenta uma caracterização mais definida de sistema técnico moderno, ante a ocupação territorial de seus fixos (perímetros irrigados) e a dinâmica dos fluxos de bens e de pessoas, com amplitude que extrapola o regional.

Outro tempo exige um outro espaço. É a estrutura velha que desaba, mas se reconfigurando de forma acelerada, na mesma velocidade em que o próprio tempo é recriado. Isso pode ser visualizado e sentido no compasso do andar dos homens nas ruas, antes tranqüilos e sem pressa, ruas que se alargam para a aceleração dos fluxos de carros e de pessoas induzidas à uma velocidade maior. É um novo espaço-tempo, espaço que cintila com um tempo contado em milésimo de segundo. Esse espaço-tempo, plasmando em cada um de nós indagações sem resposta definida, mas certo do inusitado, inusitado que não resulta do nosso querer, de algo escolhido na comunhão das idéias locais, da solidariedade orgânica dos homens que se conhecem e trabalham juntos. O que é esse ditame imposto? Por que só agora se implantam essas modernizações no espaço cearense? A quem servirá essa modernidade? Que resultantes advirão dessas imposições, dessa nova racionalidade instrumental?

Essas cirurgias nos territórios, a reformulação das paisagens, a reestruturação do espaço, a introdução de inovações nas formas que se instalam no Ceará revela a exigência das novas funções - turismo, indústrias, setor terciário superior etc.-, impondo um quadro espacial renovado, como um ninho adequado à reprodução mais veloz e precisa do capital que agora pousa nessas terras tropicais de um nordeste, antes, marginalizado. A percepção dessas mudanças nos traz um prenúncio de uma época em que o Ceará se insere na onda que se insufla, a partir dos centros de decisão do capital, neste início de milênio, que não é o fim da história. Que seja o começo de uma formulação de lutas, de busca de melhoria de vida para a sociedade que continua a viver num espaço que não seja só do capital, mas de todos os homens que constróem a história.
 

Notas

(1) Trabalho decorrente de pesquisa patrocinada pelo CNPq, entre 1999 e 2001, coordenada pelo autor.
(2) Marx trata do ciclo industrial, relacionado à situação dos trabalhadores, à superpopulação e à periodicidade da reconstituição do exército de reserva. Em sua época, ele calculava em "10 ou 11 anos, mas não há nenhum fundamento para se considerar constante essa duração" (O Capital, l. 1, v.2: 735). Éo que se denomina de ciclo clássico. Nos anos 20, Trotsky, como Kondratieff, apresenta sua teoria sobre as curvas de longo prazo do desenvolvimento capitalista. O assunto está bastante explorado em Ernest Mandel ("Capitalismo tardio", cap. 4.)
(3) "As rugosidades são o espaço construído, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço. As rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados" (Santos, 1980:138).
 

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© Copyright Luiz Cruz Lima, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002
 

Ficha bibliográfica

 LIMA, L.C. Produção do espaço, sistemas técnicos e divisão territorial do trabalho. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (63), 2002. [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-63.htm


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