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SOBERANIA: CONCEITO E APLICAÇÃO PARA A GESTÃO DA ÁGUA
Soberania: conceito e aplicação para a gestão da água (Resumo)
Domínio sobre um território. Monopólio do uso da força. Possibilidade de indicar representantes em outros países. Promover acordos bilaterais ou com organismos multilaterais. Essas são algumas das definições clássicas de soberania. Elas são válidas atualmente? Teriam perdido significado diante do avanço de organismos multilaterais e de empresas transnacionais? São operacionais na resolução de problemas transfronteiriços, como ocorre em grande parte dos temas ambientais? Esses aspectos são discutidos a partir de autores clássicos e contemporâneos que abordam a soberania. É preciso rever a definição de soberania, sem precisar abandoná-la como defendem neoliberais, para reafirmar seu papel relevante nas relações entre países no mundo contemporâneo. Esse é o objetivo central desse artigo, que trata do conceito tendo como exemplo o acesso à água. Para alcançar esse objetivo, ele foi organizado em quatro partes: revisita aos clássicos, a paz de Westfália, o debate contemporâneo e as considerações finais.
Palavras chave: soberania, geografia política, gestão da água.
Sovereignty: concept and application for water management (Abstract)
Control over a territory. Monopoly on the use of force. Ability to nominate representatives in other countries. Promoting bilateral agreements or with multilateral organizations. These are some of the classic definitions of sovereignty. Are they currently valid? Have missed significance in the light of the progress of multilateral organizations and transnational corporations? Are operational in resolving cross border problems such as occurs in most environmental issues? These aspects are discussed from classical and contemporary authors that discuss sovereignty. It is necessary to revise the definition of sovereignty, without needing to abandon it as a neoliberal advocate, to assert its role in relations among countries in the contemporary world. This is the main objective of this article, which deals with the concept as an example access to water. To achieve this goal, it was organized into four parts: revisiting the classics, the peace of Westphalia, the contemporary debate and closing remarks.
Key words: sovereignty, political geography, water management.
Soberanía: concepto y aplicación para la gestión del agua (Resumen)
El dominio sobre un territorio. El monopolio del uso de la fuerza. Capacidad para designar representantes de otros países. Promoción de los organismos bilaterales o multilaterales. Estas son algunas de las definiciones clásicas de la soberanía. Actualmente son válidas? ¿Ha perdido importancia a partir de los avances de los organismos multilaterales y las empresas transnacionales? Están en funcionamiento en la resolución de los problemas transfronterizos? Estos aspectos se discuten a partir de autores clásicos y contemporáneos. Es necesario revisar la definición de la soberanía, sin tener que abandonarla como un defensor neoliberal, para afirmar su papel en las relaciones entre los países en el mundo contemporáneo. Este es el objetivo principal de este artículo, que trata con el concepto como un ejemplo, el acceso al agua. Para lograr este objetivo, se organizó el artículo en cuatro partes: revisitar los clásicos, la paz de Westfalia, el debate contemporáneo y palabras de clausura.
Palabras clave: la soberanía, la geografía política, la gestión del agua.
O conceito de soberania é dos mais relevantes para a Geografia Política. Ele pode ser definido como um domínio sobre um território, pelo monopólio do uso da força, entre outras formas. Em um mundo globalizado, aparentemente a soberania perdeu sentido.
Porém, no sistema internacional observa-se que ela está presente e envolve
discussões que sustentam posições de países em foros multilaterais e quando se
relacionam com vizinhos, como ocorre no caso da gestão da água
transfronteiriça[1].
Nesse trabalho, que consiste em uma revisão conceitual realizada a partir de autores clássicos e contemporâneos, busca-se rever a definição de soberania, tendo como exemplo a gestão para o acesso à água. Para alcançar esse objetivo, ele foi organizado em quatro partes: revisita aos clássicos, a paz de Westfália, o debate contemporâneo e as considerações finais.
Revisita aos clássicos
Embora estudiosos como Hinsley (1972) apontem que alguns vestígios da moderna compreensão de soberania emergiram já durante o predomínio do Império Romano, quando o imperador exercia poder sobre um império, ou seja, sobre uma matriz territorial, não resta dúvida que foi a partir das ideias do francês Jean Bodin (1530-1596) que o conceito passou a ser aplicado. Também associam à gênese desse conceito as postulações do florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), de Thomas Hobbes (1588-1679), de John Locke (1632-1704) e de Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Maquiavel, ao dispor em O príncipe (1513) sobre os meios para chegar e/ou se manter no poder, contribuiu enormemente para a fundação de uma política moderna separada da religião. Duramente criticado pela Igreja em sua época, a qual afirmava que suas propostas de ação do príncipe eram imorais, ele atuou como um conselheiro dos mandatários dotando-os de virtude contra os acontecimentos da fortuna. Maquiavel também chegou a se preocupar com o território, como indiquei em outro trabalho[2].
A moderna política necessitava de uma base territorial para ser aplicada. Essa associação foi realizada por meio da concepção de soberania de Bodin, esboçada em seu Método para a fácil compreensão da história, de 1566 e explicitada em Os seis livros da República, de 1576.
Para esse autor, a soberania deveria ser exercida por um soberano, que detém o poder sobre as leis gerais e específicas, possíveis de serem aplicadas à comunidade que ele governa[3]. Além disso, Bodin estabeleceu que a soberania deve fundar-se em um sistema legislativo[4].
A produção de Os seis livros da República precisa ser contextualizada. Preocupado com a situação política na França, nas palavras do cientista político inglês Quentin Skinner:
[...] Bodin claramente julgou que sua principal tarefa ideológica, nos Seis livros, consistia em atacar e refutar a teoria da resistência dos huguenotes, que passara a considerar a maior ameaça isolada à possibilidade de se restabelecer uma monarquia bem organizada na França. [...] A resposta de Bodin aos revolucionários huguenotes é direta e inflexível: nenhum ato público de resistência de um súdito contra um soberano legítimo pode ser justificável[5].
Por isso Bodin ainda hoje é classificado como um conservador, liberal, e acusado de defender a propriedade da terra. Independente desses qualificativos, ele entrou para a história das ideias políticas por inovar, ao apresentar um conceito que, em meu entendimento, ainda permanece.A múltipla interpretação do conceito de soberania proposto por Bodin foi sintetizada desse modo:
A potência soberana do Estado é absoluta: ela comanda e não recebe nenhum comando; não depende de nada nem de ninguém: nem de Deus, nem da Natureza, nem do Povo; não exige nenhum fundamento: é autossuficiente;é indivisível, no sentido de que é por essência una e, se for delegada, está integralmente em cada delegação;é perpétua: não poderia sofrer as vicissitudes do tempo e, por essa razão, é transcendente. Em suma, ela é[6].
A citação acima é esclarecedora do aspecto conservador de Bodin. Definir a soberania como perpétua é dar ao príncipe hegemonia para indicar seus sucessores. Equivale a definir a sucessão dos mandatários por consanguinidade. Bodin também foi criticado porque escreveu que a soberania definiria leis segundo a vontade do soberano.
As outras duas afirmações podem ser avaliadas na óptica da constituição de um sistema internacional interestatal, baseado na conciliação para manutenção da paz, como é o objetivo da Organização das Nações Unidas. Ao afirmar que a soberania de um estado é absoluta ele aponta para a não-ingerência interna e à autonomia para definir políticas aplicadas ao seu território e ao seu povo. Se ela é indivisível, não pode ser partilhada, ou seja, não reconhece a possibilidade de dividir o controle político de uma unidade política.
Depois das afirmações de Bodin, a soberania adquiriu uma posição central na organização social e política dos seres humanos. Ela definiu o exercício do poder interno ao território de um Estado, dotando o poder político de um caráter geográfico, e permitiu, anos mais tarde, definir relações entre países por meio do estabelecimento de um sistema internacional que regulamenta as transações internacionais a partir de uma interpretação do estado de natureza hobbesiano.
Hobbes propôs, em seu Leviatã (1651), o Estado como controlador das relações sociais para evitar a barbárie que a desconfiança e o medo do outro geram, um medo inspirado no respeito ao outro. A condição de igualdade entre os seres humanos levaria a uma luta pela sobrevivência e pela disputa de alvos de desejos comuns. Ao reconhecer no outro o “eu”, isto é, ao identificar que o outro pode empregar os mesmos meios que “eu”, surgiria o medo, dado que seriam conhecidas as capacidades operacionais de cada ser humano na implementação de seus desejos, o que causaria problemas caso eles fossem disputados por mais de uma pessoa. Hobbes sugere que o Estado, por meio de seu controle social, estabeleça uma ordem à vida em sociedade impedindo que o mais forte imponha sua força aos mais fracos na consignação de seus objetivos. O estabelecimento de um contrato social garantiria a proteção dos cidadãos, os quais abririam mão de parte de suas individualidades em troca da salvaguarda promovida pelo Estado. A soberania hobbesiana seria ilimitada porque nasceria do repasse pelos cidadãos de parte de sua liberdade ao soberano que, por meio do Estado, garantiria a sobrevivência dos membros da sociedade.
O legado de Bodin e Hobbes definiu a soberania no âmbito interno à unidade política. O que importaria, na visão desses autores, seria o exercício de poder pelo soberano, sem interferência sobre seus desejos. Uma visão contemporânea dessa concepção partiria da constituição de um arranjo de instituições que exerceriam, de acordo com sua capacidade técnica, a soberania, propondo políticas públicas, por exemplo, na resolução de problemas, sem interferência estrangeira.
No caso da gestão dos recursos hídricos, a visão clássica da soberania pode levar a impasses em relação ao uso da água. Caso um rio transfronteiriço seja compartilhado por dois ou mais países, o uso do conceito clássico de soberania como instrumento para garantir o acesso à água implicaria em não abandonar o domínio e uso sobre recursos territoriais. Dois países que tenham objetivos distintos e antagônicos podem chegar ao conflito se estiverem apoiados na soberania clássica. É preciso avançar para novas definições conceituais, que permitam ampliar o acesso à água no mundo[7].
A paz de Westfália
A formação de um sistema de países que atuam reconhecendo direitos e deveres na escala internacional começou antes do texto de Hobbes, mas afirmou-se com seus escritos. A chamada paz de Westfália, resultado do Congresso de Westfália de 1648 realizado na Alemanha para selar o final da Guerra dos 30 Anos, estabeleceu princípios que permanecem até hoje na política internacional.
Uma das práticas, embora iniciada antes de 1648, que passou a ser usual foi a troca de diplomatas entre Estados, os quais deveriam ser porta-vozes dos interesses nacionais nos países em que atuavam. Também se buscava o consenso reunindo-os antes de chegar à guerra, bem como se estabeleciam tratados que deveriam funcionar de acordo com os interesses das partes.
A decisão mais importante de Westfália, porém, foi o reconhecimento de que o mundo é dividido em Estados soberanos, sobre os quais não há autoridade superior que não a do soberano. Garante-se o território dos países e a exclusão de atores internacionais nas decisões fundamentais internas a um Estado. Todos os países teriam o mesmo tratamento, independente de sua capacidade militar e de impor seus objetivos estratégicos pela coerção. Desse modo, temas como os problemas transfronteiriços deveriam ser discutidos pelas partes interessadas que teriam o mesmo peso nas decisões.
A paz de Westfália não evitou que países impusessem à força seus desígnios aos mais fracos. Por isso foi preciso definir um sistema internacional que congregasse países em torno da cooperação, impondo sanções aos que rompessem o pacto de não-agressão ou qualquer outro tipo de descumprimento de um tratado internacional[8].
Partindo da proposta de Hobbes para a sociedade, projetou-se um sistema internacional que deveria controlar os mais fortes para que não reinasse a anarquia interestatal. Ele deveria impedir o uso da força segundo a vontade de um mandatário, em caso contrário estaria em risco o princípio da soberania dos demais integrantes, já que ele poderia impor sua vontade sobre o território alheio.
Locke, na obra Segundo tratado sobre o governo (1690), também trata da questão. Para ele, existe uma soberania popular que é transferida por cada cidadão ao Estado para que este promova a regra geral e o bem comum. Porém, caso isso não ocorra, cabe à população destituir seus representantes e mudar até mesmo a forma de governo. Caso o soberano se torne um tirano, a população pode destituí-lo e estabelecer outro soberano que se integre à sociedade que comanda.
Rousseau contribuiu para alterar a definição de soberania com suas obras O contrato social (1762) e Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens (1756). Para ele, trata-se de um resultado da vontade geral do povo. Um Estado soberano é aquele que consegue expressar os desejos de sua população. Decorre dessa assertiva, por exemplo, a ideia de um projeto nacional, tema recorrente no debate político contemporâneo.
Para esse autor a soberania é inalienável e cabe ao soberano, que deve ser coletivo e não falar apenas em seu nome, transmitir esse valor em negociações com outros países. A soberania é resultado de uma construção coletiva. O desejo isolado do mandatário não pode virar lei, mas sim o desejo coletivo do povo, ou seja, as leis devem emanar deste último para serem aplicadas de maneira incontestável.
O Direito Internacional também adotou o conceito de soberania, definiu regras de coexistência entre países na busca de relações duradouras e de paz. E determinou também a possibilidade de uso da força na resolução de conflitos, sempre em última instância e com declaração de guerra. A aceitação das normas do Direito Internacional depende do reconhecimento dos países pela comunidade internacional. Para poder exercer a soberania, um país deve ser identificado como tal por seus pares e ter também a autoridade nacional definida para representar seu povo internacionalmente.
Durante a segunda metade do século XX uma série de situações levou à formação de novos países, como os que surgiram da descolonização africana, do esfacelamento da Iugoslávia na década de 1990, ou quando da mudança no regime político, por exemplo, por meio de revoluções socialistas como as verificadas em Angola e na Nicarágua, respectivamente nas décadas de 1970 e 1980. A primeira manifestação esperada era justamente o reconhecimento do novo governo por outros países, ou seja, sua autoridade para exercer o poder nos limites territoriais definidos pela fronteira do país. Outros direitos vêm acoplados à aceitação internacional de um governo ou país, como a imunidade diplomática e a inviolabilidade das embaixadas localizadas em outros países.
A soberania clássica perdura em nossos dias, apesar do avanço das relações globalizadas, nas quais novos atores passam a influenciar o jogo político internacional, tema relevante que é tratado por vários autores contemporâneos. O conceito de soberania interdependente e o neoliberal estão entre os mais relevantes em discussão.
O debate contemporâneo
Stephen Krasner (2001), da Stanford University, aponta a existência de uma soberania interdependente, que seria aquela resultante da existência de problemas transfronteiriços, como a poluição atmosférica, que exigiriam a atuação conjunta de países limítrofes. Essa situação poderia ser aplicada ao caso da Amazônia. A conservação ambiental daquela vasta região teria que ser pensada e executada pelos países que integram a Bacia Amazônica, sem interferência de outros que estão fora dessa condição. No caso da Antártica, outro exemplo, a soberania interdependente também pode ser aplicada, pois o Tratado Antártico define direitos e obrigações aos países que o integram e não emprega a definição da soberania legal, que resultaria na instalação de um governo autônomo na região ou sua ocupação por um país apenas.
O manejo de cursos d’água transfronteiriços também pode evocar a soberania interdependente. Países localizados a jusante podem sofrer de falta de água pela retirada em excesso por seu vizinho a montante. Para evitar abusos pode-se constituir um grupo de trabalho envolvendo representantes de todos os países da bacia hidrográfica para que possam apresentar seus interesses e buscar a conciliação no uso dos recursos hídricos.
Retomando Krasner (2001), ele critica os neoliberais que defendem o fim da soberania pela supremacia do mercado acompanhado do aumento da influência do capital privado atuando em escala global. Para ele, isso implicaria a perda de soberania interdependente, mas não da soberania legal internacional, porque os países fazem acordos para viabilizar a circulação de mercadorias, ou seja, usam sua soberania para, de maneira legítima e legal como reconhecem as leis internacionais, permitir o livre ingresso de capital e de circulação de mercadorias em um território.
É possível acrescentar o seguinte: a capacidade de elaborar leis que funcionam sobre um determinado território é um preceito da soberania de um país. Cabe ao governo, na democracia representativa, dispor de instrumentos que julga necessários para o bem-estar da população, ainda que ele na verdade represente frações de classe no poder, como bem nos ensinou o italiano Antonio Gramsci (1980) e Nicos Poulantzas (1980 e 1986).
Quem define a taxa de juros? Quem decide abrir o mercado a produtos importados sem cobrar tarifas? Quem resolve elaborar um sistema de gestão de recursos hídricos, a cobrança de água e a privatização dos serviços de abastecimento? Quem elabora políticas industriais e agrícolas? É evidente que essas decisões emanam dos governantes, que exercem sua soberania para adotar as medidas que julgar adequadas, delimitando a maneira pela qual o país se relacionará com os demais.
O embate político e a alternância no poder que a democracia possibilita oferecem aos eleitores diferentes projetos nacionais e de inserção internacional, considerando os tempos hodiernos. Por isso não deve gerar nenhuma estranheza quando alguém recém-empossado adota atitudes opostas à de governos anteriores, mesmo quando setores prejudicados acusam o governo de descontinuidade administrativa. É justamente isso que deve ocorrer na alternância no poder.
Depois de apontar definições de vários autores, chegou o momento de expor um conceito sobre o tema em questão nesse artigo. Soberania implica poder, legislar, conseguir autonomia diante da oferta da base natural delimitada pelos processos históricos e geográficos que constituíram um território, segundo os interesses da maioria da população. Essa definição concorre com a clássica, combinando elementos de Bodin a Rousseau.
Mas nem todos acreditam que o mundo segue afirmando países soberanos. David Held (1997), da Open University, propõe um governo cosmopolita que deveria cuidar de direitos cosmopolitas. Veja que ele usa a expressão direito cosmopolita e não direitos humanos. Para ele “las siguientes categorías: de la salud, social, cultural, cívica, económica, pacífica y política en conjunto, forman la base de un orden legal habilitante – el derecho democrático cosmopolita”[9]. Caberia então estabelecer uma instância de poder que pudesse garantir aos cidadãos os direitos democráticos cosmopolitas.
Em relação ao acesso aos recursos naturais, ele escreve:
Determinados principios de justicia social son inapelables: el modus operandi de la producción, la distribución y la explotación de recursos debe promover y ser compatible con los procesos democráticos y una estructura común de acción política[10].
Nem todas as organizações humanas que vivem na Terra são democráticas. Daí a dificuldade em se afirmar qual modelo de democracia seria eleito como parâmetro para discutir a exploração dos recursos.
O professor de Direito da Università degli Studi di Camerino, Luigi Ferrajoli, defende que os juristas internacionais trabalham na perspectiva de “um constitucionalismo internacional”[11], resultado dos crescentes direitos humanos reconhecidos em escala mundial. Mas ele mesmo pondera que a universalização dos direitos fundamentais é irreal, resultando em um mundo tenso, no qual quatro quintos estão excluídos da prática dos direitos humanos. Ele propõe como alternativa
remover de uma vez por todas suas causas: anulando a dívida externa dos países pobres, iniciando neles uma política efetiva de desenvolvimento, ampliando gradualmente o direito de asilo até eliminá-lo juntamente com o privilégio da cidadania, mas sempre colocando em discussão nosso padrão de vida e nossa visão eurocêntrica do mundo[12].
O idealismo de Ferrajoli desperta esperanças, porém, não há identidade com a realidade. A soberania continua a prevalecer e é usada como argumento pelo descumprimento do respeito aos direitos individuais por países importantes, como a China que alega razões culturais no fundamento de suas ações, do mesmo modo que em algumas nações mulheres são mutiladas a sangue frio, também sob o argumento da tradição.
Para M. Kuus (2002), da University of British Columbia, a soberania sempre esteve associada à segurança. Philippe Le Billon (2001), da School of Geography of Oxford, entende que a presença de recursos naturais abundantes ou escassos em um território determina a soberania de um país. Jens Bartelson (1995), da University of Stockholm, pondera que o conceito de soberania deve ser analisado ao longo da história, e defende que há uma possibilidade de recriação desse termo mesmo em tempos atuais. Os geógrafos espanhóis Font e Rúfi (2001), apontam que o mundo atual, baseado na globalização, alteram o sentido da geopolítica e da soberania.
Outra publicação, produzida para discutir a soberania nacional e os cursos d’água internacionais, sugere uma série de questões acerca da soberania relacionada aos recursos hídricos:
Now that States have the ability to abstract or divert the entire volume of a transboundary river, the question remains as to what rights they have to the waters which flow through their territory and what obligations they have to their fellow riparians down-stream. From the other perspective, in cases where the downstream riparian has been the first to utilise the waters of the river, to what extent does this confer prior ownership rights which must be respected by states further up-stream? Does a State have a right to the amount of water it “contributes” to a watercourse through precipitation within its territory? If so, where does that leave states which rely on water originating outside their borders for the vast majority of their national water supply? These are all questions related to national sovereignty[13].
Não resta dúvida de que ainda será preciso muita discussão para tratar dos temas listados na citação acima. O suprimento da população nacional deve ser prioritário, mas nem sempre isso é possível. Como equilibrar o volume de chuvas que adentra um território e que, se retirado em um ponto do curso d’água irá fazer falta a quem está a jusante? Será que a água de uma bacia hidrográfica será compartilhada entre os países que a integram?
O documento da Green Cross encaminha uma conclusão polêmica que ajuda a refletir sobre esses pontos:
National sovereignty is a fact; States need to be convinced that cooperation is in their own best interest and will benefit their people, as well as the people on the other side of the border. There is no national sovereignty over water, but the different manifestations of sovereignty, and the corresponding entitlements and responsibilities of individuals, communities and state authorities, can be pooled for the benefit of everyone in a basin. Every state has a right to water for its people and its development, but as with all rights this is balanced with the duty not to prevent another People from achieving the same. For this reason a very holistic view of international watercourses and their significance and uses needs to be taken, including consideration of the hydrological cycle and the rights and needs of different stakeholders[14].
Esse artigo parece confuso. Inicialmente ele reconhece que a soberania nacional é um fato e que cabe aos países promover a cooperação para atender aos interesses de sua população. Depois, afirma não haver soberania nacional sobre a água, mas sim manifestações desta.
O que seriam as manifestações da soberania senão sua própria expressão? A vontade popular a define, para resgatar Rousseau e, por que não, Locke. A soberania existe e deve ser mantida quando é manifestação de um povo que define suas normas internas a um Estado sem ingerência, inclusive para regular o acesso a recursos fundamentais, como é o caso da água, cabendo a ele decidir como vai usá-la.
O exercício da soberania legal internacional permite o estabelecimento de acordos bilaterais ou multilaterais para o uso de recursos hídricos de rios internacionais. Mas é importante frisar: apenas os países que alojam os rios em seus territórios devem participar da gestão dos recursos hídricos. O mesmo vale para aqüíferos[15].
Apontar para um governo constitucionalista internacional pode ser uma saída para o futuro. Mas essa alternativa encontra resistências em séculos da prática da soberania por membros do sistema internacional, que a reafirmam a cada nova Convenção Internacional.
Ainda demorará muito tempo para que a soberania deixe de ser reconhecida nas relações internacionais. Ela é útil à acumulação capitalista porque promove desigualdades territoriais que produzem lucros diferenciais fantásticos a investidores. E, ao mesmo tempo, permite identificar onde são consumidos recursos naturais em larga escala na Terra, incluindo a água.
A democracia para o acesso a recursos naturais, e em especial à água, ainda está por vir. É urgente a edificação de uma nova maneira de conduzir a vida, criando uma globalização solidária que converta as ações humanas em representações que ponderem a alteridade na produção do espaço e das territorialidades humanas!
A oportunidade para desenvolver esse projeto pode ser gerada pela escassez de água, cuja distribuição natural está sendo apropriada ao longo de séculos por meio da gestão do território. Por isso esse recurso deve ser compreendido no âmbito das relações políticas.
Apostar na soberania interdependente ajuda a entender que se trata, antes de mais nada, de garantir o acesso a recursos fundamentais à reprodução da vida, inclusive a humana. Por isso ela pode ser útil, apesar da prevalência da soberania clássica no mundo contemporâneo.
Considerações finais
Rever clássicos da política e da geografia política permitiu edificar uma base teórica para analisar as relações internacionais envolvendo temas ambientais contemporâneos.
A ordem ambiental internacional (Ribeiro, 2001) articula o realismo político com a teoria da interdependência, configurando um subsistema no sistema interestatal. Nele atuam países, organizações não governamentais e grupos transnacionais, com interesses que concorrem entre si, mas que também podem combinar-se em determinados momentos.
A busca da reprodução da base material da existência é uma das condições de ser no mundo. Vivemos em lugares, moldados socialmente, e edificados por meio de técnicas de uso de recursos naturais. O nível de sofisticação técnica depende de cada grupo social, mas ele não exime a necessidade do grupo abrigar-se em habitações e produzir roupas para se proteger das intempéries. A produção do espaço geográfico atende às demandas por lugares definidos por seres humanos ao longo do processo de humanização segundo meios técnicos dispostos ao grupo social, redefinindo os materiais usados para a reposição da base material da existência ao longo dos anos.
Os recursos naturais ganham ou perdem importância ao longo do tempo. Com a água é diferente. Ela permanece fundamental pelo seu uso na dessedentação humana, mas também pelo seu emprego para a produção da base material da existência, seja na produção de abrigos seja na produção de alimentos.
A ingestão de alimentos sustenta o corpo, dimensão que opera funções humanas. O corpo permite a operação racional, ditando limites aos atos e sofrendo restrições da razão.
Agrupamentos humanos que assumiram a organização capitalista para suas relações sociais, muitas vezes sem escolha, outras sem consciência de que existem outras possibilidades, aderiram ao Estado contratualista para garantir sua segurança, como propôs Hobbes.
Conceitos como território e soberania passaram a representar interesses de grupos sociais em uma determinada área, cujos limites são construídos ao longo da história. Não há natureza na representação territorial de países, muito embora ela sirva para indicar fronteiras, como cursos de rios e cumes de montanhas. Mas quem define por onde a representação dos limites territoriais passará, estabelecendo as fronteiras do exercício da soberania, são os atores sociais envolvidos em lutas e acordos políticos ao longo dos anos.
Por isso é preciso conhecer a distribuição política da água, dado que as formas territoriais, engendradas pelos países reconhecidos entre si nos últimos séculos, definem a gestão sobre recursos hídricos distribuídos pela Terra como resultado de milhões de anos de história natural. A tensão entre natureza e história, entre processos naturais e processos sociais, terá que ser conhecida e analisada. Ela desencadeia crises ambientais, incluindo a de abastecimento de recursos hídricos.
Apostar na soberania interdependente é pensar em novas formas de coexistência interestatal. Para tal é fundamental pensar em garantir o acesso à água a cada habitante dos países que partilham o uso da água, independente de que lado da fronteira ele está.
Notas
[1] Trabalho desenvolvido com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
[2] Ribeiro, 1990.
[3] Barros, 2001, p. 241.
[4] Skinner, 1996, p. 560.
[5] Skinner, 1996, p. 556-557.
[6] Châtelet, Duhamel e Pisier-Kouchner, 1985, p. 47.
[7] Para uma interpretação da problemática do acesso à água na escala internacional ver Ribeiro (2008).
[8] Duas experiências históricas resultaram dessa possibilidade: a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas. No primeiro caso, em 28 de junho de 1919, em uma reunião realizada em Paris, criou-se um fórum de discussões e deliberações para tratar de polêmicas entre países. Criada após a Primeira Guerra Mundial por sugestão dos Estados Unidos da América, ela não conseguiu impedir a eclosão da Segunda Guerra Mundial, terminando de forma melancólica sua participação no mundo interestatal. O maior problema verificado foi justamente a recusa dos Estados Unidos em participar do foro multilateral. A Organização das Nações Unidas foi criada após a Segunda Guerra Mundial, embora sua elaboração tenha se dado ao longo do conflito. Em 24 de outubro de 1945 ela começou a funcionar, depois de ser anunciada na Conferência de Yalta, de fevereiro de 1945, e de ter seu formato definido na Conferência de São Francisco, a qual reuniu 50 países de 25 de abril a 25 de junho. O principal papel da ONU é a manutenção da paz, que acaba sendo definida segundo os interesses de membros do Conselho de Segurança, dos quais cinco são fixos e têm poder de veto: os vencedores da Segunda Guerra Mundial, quais sejam, China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia (na época a URSS). Isso tem gerado alguma movimentação pela reforma do Conselho de Segurança, incluindo pressão do Brasil, que deseja tornar-se membro permanente.
[9] Held, 1997, p. 322.
[10] Held, 1997, p. 322.
[11] Ferrajoli, 2002, p. 61.
[12] Ferrajoli, 2002, p. 62-63.
[13] Green Cross International, 2000, p. 19.
[14] Green Cross International, 2000, p. 23.
[15] Para uma interpretação do caso do aquífero Guarani, ver Villar e Ribeiro (2011).
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