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Scripta Nova |
Anna
Paula Uziel (UERJ)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
uzielap@gmail.com
O melhor interesse da criança e o "mal menor": quando os requerentes são gays (Resumo)
A partir da Constituição Federal de 1988, a legislação brasileira considera família como composta por qualquer dos pais e seus filhos, sem distinção se são biológicos ou adotivos, e sem necessidade do casamento como base. A lei não se refere à orientação sexual. A homossexualidade dos pais, que pode aparecer nos relatórios de assistentes sociais ou psicólogos, não tem impedido a adoção. E desde 2005 é possível um casal de pessoas do mesmo sexo adotar uma criança, que tem seu registro civil no nome dos dois. Cada vez mais, juízes e desembargadores têm sido favoráveis aos requerentes que se declaram gays e lésbicas. Apesar de toda esta conjuntura, os argumentos dos operadores do Direito constroem uma lógica que identificamos como a do “mal menor”. Neste artigo, discutimos se esse arranjo pode ser entendido como uma combinação das figuras que Michel Foucault tratou em Os anormais.
El interés superior del niño y el “mal menor”: cuando los solicitantes son gays (Resumen)
A partir de la Constitución Federal de 1988, la legislación brasileña considera a la familia como compuesta por cualquiera de los padres y sus hijos, independientemente de si son biológicos o adoptivos, y sin necesidad del matrimonio como base. La ley no hace referencia a la orientación sexual. La homosexualidad de los padres/madres, que puede aparecer en los informes de los trabajadores sociales o psicólogos, no ha impedido la adopción. Asimismo, desde 2005 es posible que una pareja de personas del mismo sexo adopte un niño, constando el nombre de ambos en su registro civil. Cada vez más, jueces y magistrados han favorecido a los solicitantes que se declaran gays y lesbianas. A pesar de toda esa coyuntura, los argumentos de los trabajadores de la ley construyen una lógica que identificamos como la del “mal menor”. En este artículo, discutimos que ese arreglo puede ser entendido como una combinación de las figuras que Michel Foucault trató en Los anormales.
The best interest of the child and the “lesser evil”: when the candidates are gay (Abstract)
Brazilian legislation after the 1988 Constitution considers that a family is composed of any of the parents and children, regardless of whether the parents are biological or adoptive or if they are married or single. The homosexuality of the parents, which might be mentioned in the professional appraisals of psychologists or social workers, has not impeded adoptions. Since 2005, a same-sex couple may adopt and have the child’s birth certificate issued in the name of both adopting parents. Judges and public attorneys increasingly favour applicants who declare themselves gay. Despite these tendencies, law practitioners structure their arguments around a discourse of the “lesser evil”. In this article, we discuss if this situation can be understood as a combination of the figures Michel Foucault described in The Abnormal.
No Brasil, a partir de 1988, com a Constituição Federal (CF), entra
em vigor a Doutrina Jurídica da Proteção Integral a crianças e adolescentes.
Embora a ideia de proteger a criança já estivesse presente na Declaração de
Genebra de 1924, na Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e,
posteriormente, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, é
com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que ratifica a CF
neste aspecto, que essa perspectiva começa a existir nas políticas e práticas
relativas a crianças e adolescentes no país. A proteção, como prioridade
absoluta, passa a ser concebida como um dever social[1] e vai sendo inserida
timidamente em muitos campos.
O texto legal, amplo, como se espera sejam as leis, não detalha ações, tampouco define com precisão os significados das palavras as quais utiliza. No entanto, deixa clara sua perspectiva:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão[2].
Deste artigo gostaria de destacar dois temas: o direito da criança e do adolescente à proteção e a centralidade da família. Com o intuito de solidificar as bases para a discussão que proponho neste texto, convém, neste primeiro momento, deixar claro do que tratam essas temáticas, em que contexto se inserem e a força que possuem na execução da lei.
O início do ECA esclarece seu principal propósito:
Art. 1.º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
E em seguida define um aspecto central a respeito do seu foco, crianças e adolescentes, que servirá de norte para todas as ações e sanções dispostas na lei:
Art. 6.º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
E continua:
Art. 7.° A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Assim, a criança e o adolescente, sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento, devem receber proteção da família, da comunidade, da sociedade e, em último caso, do Estado. Nessa perspectiva, o ECA preconiza um olhar menos acusatório sobre a família que não pode suprir as necessidades de seus filhos, convocando uma gama mais extensa de pessoas a contribuir com essa proteção – a comunidade e a sociedade –, além de prever medidas de proteção aos menores de idade e responsabilização inclusive penal para aqueles que atentarem contra os direitos das crianças e adolescentes.
Em relação à família, a Constituição Federal de 1988 introduziu uma mudança substancial ao trazer em seu texto grandes rupturas. Em primeiro lugar é importante destacar que a partir desta lei o casamento deixa de ser condição para a formação da família – dando maior materialidade a um primeiro passo que foi a lei do divórcio aprovada no Brasil em 1977. No artigo 226 da CF entende-se por entidade familiar, “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. A partir deste momento cabem, na rubrica família, aquelas com pai e mãe de um só casamento, as com muitos casamentos, as de união estável, as monoparentais desde o início, aquelas formadas por casais do mesmo sexo[3], pai ou mãe viúvos e outras tantas que podemos ainda não saber mapear ou nomear.
Outro aspecto relevante é a igualdade de direitos entre os filhos de origens diversas. Eliminando a nomenclatura “legítimo”, “ilegítimo”, “adulterino”, “bastardo” e “natural”, entre outras, a legislação concede a toda prole os mesmos direitos. Os filhos adotivos passam a ter seus registros civis de nascimento substituídos quando são adotados, sem que nenhuma marca de sua história pregressa fique registrada, salvo o próprio processo de adoção, arquivado na justiça, cujo acesso é permitido aos adotados a partir da maioridade legal. Assim, cabe ao sujeito a revelação de sua origem e nenhuma discriminação em relação a este fato é legitimada pela lei.
Ainda sobre adoção, passa a vigorar apenas a adoção plena, e nem idade do adotando, nem estado civil do adotante são restritivos para a consumação do ato. Algumas poucas exigências são feitas como uma idade mínima dos adotantes, 18 anos, diferença mínima de 16 anos entre pais e filhos adotivos, e algumas condições para que duas pessoas adotem em conjunto, principalmente a intenção de formação de uma família. Pessoas separadas, por exemplo, se tiverem tido convivência conjunta com a criança, podem adotá-la juntos, mesmo não tendo mais vínculo conjugal. Ou, ainda, é possível reconhecer a paternidade ou a maternidade de alguém, mesmo depois de sua morte, caso se comprove a existência dessa relação. Todas essas considerações têm como propósito central garantir a proteção à criança e ao adolescente e sua inserção em ambiente familiar.
Contemporaneamente, no Brasil e no mundo, a AIDS/SIDA trazia à tona debates sobre homossexualidade que, aos poucos, foi incorporando a discussão sobre direitos para a população LGBT, tendo avançado na década de 1990.
A ampliação do entendimento sobre família e a introdução da discussão sobre homossexualidade em vários espaços sociais fizeram emergir o debate sobre a parentalidade exercida por gays e lésbicas. A mídia, a justiça e a escola buscam a todo o momento referências para respaldar suas posições a respeito desse formato de família que é visto como novo, incomum e, por alguns, problemático.
Este trabalho propõe uma reflexão acerca das concepções que técnicos (psicólogos e assistentes sociais) e operadores do Direito (promotores, juízes, desembargadores), no início deste milênio, no Rio de Janeiro, tinham sobre a adoção por homens gays, e que marcaram decisões favoráveis a esses requerentes que, naquele momento, pleiteavam individualmente a possibilidade e o reconhecimento da paternidade.
Para este debate sobre homossexualidade e família, a partir da análise de processos[4] de adoção em Vara da Infância e Juventude, propomos ter como mote algumas das figuras que Michel Foucault traz em “Os anormais” como o monstro e o indivíduo a ser corrigido. Buscamos complexificar os sentidos das decisões favoráveis que marcaram aquele momento carioca quando o debate ainda era incipiente.
Sexualidade e parentalidade
Partimos do pressuposto de que legitimidade e normalidade não podem ser adjetivos do campo sexual. Estranhamos também a naturalidade com que se questiona casamento e filiação entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, é preciso compreender onde se ancoram essas perspectivas.
Butler[5] aponta que a estranheza se dá quando se constata um descompasso entre anatomia, desejo sexual, identidade de gênero e prática sexual. Por isso, quando qualquer manifestação da sexualidade que escape da norma encontre-se combinada à família, a busca de contorno ou reparação da situação exige uma solução jurídica que garanta a sacralidade da família, mesmo em um Estado laico, como o brasileiro.
Assim, gostaria de iniciar o debate fazendo minhas as palavras de Miguel Vale de Almeida, quando ele afirma que
Defendo que os direitos relativos à orientação sexual e à identidade de gênero constituem como que o fim da linha da preocupação moderna com a cidadania, os direitos humanos e as identidades, e que são universais no seu âmbito e na sua relevância[6].
Ainda o mesmo autor afirma, em outro trabalho, especificamente sobre a questão do casamento que:
a exigência da igualdade no acesso ao casamento constitui um caso original no campo da política sexual: a exigência de acesso a uma instituição tida por conservadora e reprodutiva da heteronormatividade e do patriarcado resulta criadora de dinâmicas de transformação não por carecer de radicalidade “revolucionária” (por exemplo, a abolição pura e simples do casamento), mas justamente por parecer ser ‘integracionista’[7].
O debate e a consequente visibilidade das relações entre pessoas do mesmo sexo, em especial de homens, aparece nos anos 1990, quase dez anos depois do primeiro caso de AIDS/SIDA. A morte de pessoas que foram abandonadas por suas famílias de origem quando da descoberta ou revelação de sua homossexualidade e que viviam com companheiros que corriam risco de perder bens adquiridos em comum pelo não reconhecimento de suas relações afetivo-conjugais exigiu respostas sociais, políticas e jurídicas.
No início dos anos 1990, a luta era primordialmente por direitos patrimoniais e benefícios, não tendo destaque a dimensão afetiva da relação conjugal que motivava as ações. Aos poucos a conjugalidade foi aparecendo no cenário como uma bandeira, e seu reconhecimento legal como um direito a ser conquistado no Brasil. Começava-se, naquele momento, a falar abertamente de afeto, relações estáveis, companheirismo, partilha de vida. A partir de meados dos anos 1990 a luta pelo reconhecimento do casal e posteriormente da família que muitos gostariam de construir ou revelar ganhou grandes proporções. Aos poucos, parentalidade e homossexualidade foram deixando de parecer incompatíveis, embora, no primeiro projeto de lei que visava reconhecer a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, proposto em 1995, a parentalidade – através da adoção naquele momento – tenha sido retirada do texto.
Nessa mesma linha do debate sobre as regulações governamentais, Butler salienta o risco da batalha pelo reconhecimento legal das uniões afetivas entre as pessoas, em razão da “normalização pelo Estado das relações de parentesco reconhecíveis”[8].
E afirma ainda:
O par estável, que se casaria se fosse possível, é considerado como presentemente ilegítimo, mas elegível para uma legitimidade futura, enquanto que os agentes sexuais que funcionam fora da esfera do vínculo do casamento (...) constituem agora possibilidades sexuais que nunca serão elegíveis a se traduzir em legitimidade[9].
Além da dimensão legal pleiteada e do que passa a ser considerado como legítimo pela legislação local, o texto de Butler aponta para outra dimensão, também de grande importância política, que é o risco de uma classificação das homossexualidades, hierarquizando-as, qualificando umas e desqualificando outras.
Apesar do risco dessa classificação, é necessário que se discuta, nos movimentos LGBT e em diversas esferas da sociedade, o direito ao reconhecimento da conjugalidade e a possibilidade de parentalidade para aqueles que o desejam. As formas como gays, lésbicas e travestis tornam-se pais ou mães varia muito de acordo com a cultura, as condições sociais e a legislação do país. Basicamente identificamos quatro possibilidades[10]. A co-parentalidade é pouco comum no Brasil: significa que gays e lésbicas resolvem ter uma criança juntos através de fecundação caseira ou uma relação sexual pontual, e criam o filho ou a filha juntos, sendo pais e mães. No mesmo campo estaria a reprodução assistida. Ainda sem legislação no país, é regulada por uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina, nº 1.957/2010, publicada em janeiro de 2011, que substitui a de 1992. Não há impedimentos para utilização das tecnologias, uma vez que prevê como pacientes de técnicas de RA “todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente”. Além dessas possibilidades, que envolvem a genética, há os homens e as mulheres que foram pais e mães através de relações heterossexuais. Por último gostaria de mencionar a adoção, temática central deste trabalho.
Cabe ressaltar que tanto a reprodução assistida quanto a adoção dependem da intervenção de instituições como a Medicina e o Direito na decisão de quem pode ser pai ou mãe. Ambas devem ser previstas em lei ou similares – conforme mencionamos – e são reguladas pelo aparelho de Estado, em especial quando precisam das instituições governamentais, para além do registro das crianças.
A adoção, sobretudo, convoca o Estado na medida em que são seus profissionais os eleitos para dar o parecer que autoriza a maternidade ou a paternidade dos requerentes. Assim como são eles que dão subsídio para o juiz autorizar a destituição do poder familiar no caso das crianças disponibilizadas para a adoção. Mecanismos que excedem o corpo e a decisão dos envolvidos oferecem um lugar de poder a outros atores que utilizam suas concepções de maternidade e paternidade para julgar procedimentos. Vamos tratar neste texto apenas do universo da adoção, complexo, regulado por um órgão tradicionalmente conservador, mas que vem surpreendendo com seus posicionamentos e decisões. Vale o destaque para a decisão do Superior Tribunal Federal (STF), em maio de 2011, pelo reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, fundamental para aqueles que não encontram na legislação em vigor, respaldo legal para suas necessidades. O vácuo da legislação sobre o assunto tem sido preenchido por decisões como esta, no âmbito da justiça.
Homoparentalidade traz em si uma especificidade?
Formas de parentesco que escapem dos preceitos da heteronormatividade que eram reforçados pelo casamento são compreendidas como perigosas para crianças, colocando em risco leis consideradas naturais[11].
O exercício da parentalidade por gays e lésbicas, cada vez com mais visibilidade, virou uma questão. A discussão proposta por Foucault[12] na História da sexualidade e sua produção sobre biopolítica talvez nos deem pistas sobre o estranhamento que o tema causa. A centralidade da sexualidade, por regular a vida do sujeito e a da sociedade, parece ser potencializada ao ser associada à família. Imediatamente faz-se uma transposição do tema em pauta, como se fosse necessário relacionar a orientação homossexual do sujeito e a capacidade de se ser pai ou mãe, e mais, como se a orientação não heterossexual pusesse em questão e/ou em risco a capacidade de maternagem ou paternagem.
Em 1996, a APGL (Association de Parents Gays et Lesbiens) cunhou em francês o termo “homoparentalidade”. Até o momento, temos a definição de Martine Gross, “todas as situações familiares nas quais pelo menos um adulto que se autodefine como homossexual é pai ou mãe de ao menos uma criança”[13]. Cabe questionar se seria possível identificar algum tipo de unidade entre essas pessoas. Poderíamos então afirmar que existem características determinadas pela orientação sexual dos pais no comportamento da criança ou de seus pais? “Homoparentalidade” se dirige a um projeto de ser pai e mãe, depois da descoberta, assunção ou revelação da homossexualidade? O termo desperta a atenção e cria visibilidade política, o que não diminui a polêmica em torno de sua utilização.
Como a justiça se comporta na miudeza fundamental de
suas posições
No Brasil, desde 1988, do ponto de vista legal, solteiros, viúvos, separados e casados podem adotar crianças sob os mesmos direitos, sem distinção alguma.
Apesar de cada vez mais pais requererem a guarda dos filhos em diversos países nos casos de separação, de haver casos de pedidos de adoção apenas por homens, a paternidade ainda provoca estranhamento quando descolada da conjugalidade. Assim, nos casos em que um homem busca sozinho a adoção de uma criança levantam-se suspeitas sobre sua orientação sexual.
Na pesquisa realizada entre 1999 e 2001 na então 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca da capital do Rio de Janeiro,
duas questões pareceram importantes: a suspeita que o pedido de adoção por um homem sozinho causava na equipe técnica e nos operadores do Direito, e a feminilização desses homens à medida que iam traçando seu percurso pelos órgãos responsáveis pela elaboração do parecer que orientaria a sentença do juiz[14].
Nesta mesma pesquisa, em função da dificuldade em localizar processos cujas requerentes fossem mulheres lésbicas, suspeitei que a naturalidade com que se concebe a maternidade inibisse, na equipe técnica e no Ministério Público, a dúvida sobre a orientação sexual das pretendentes a mãe, o que não acontecia em relação aos homens que buscavam a paternidade sozinhos, portanto, fora da conjugalidade.
Nos últimos anos, dois casos chamaram a atenção na mídia no Brasil. No final de 2001, morreu de overdose uma cantora famosa, Cássia Eller, deixando um filho menor. Ela mantinha uma relação estável e pública com Maria Eugenia, que passou a disputar a guarda definitiva do menino com o avô materno. A opinião pública, a justiça, a escola do menino, foram todos unânimes sobre sua legitimidade em assumir os cuidados com o menino e a sentença foi dada nesse sentido. Alguns anos depois, em 2005, os jornais anunciam, em Catanduva, interior de São Paulo, que um casal de homens conquistava o direito de aparecer como pais na certidão de nascimento da filha que adotavam. O registro de nascimento com nome de dois homens era gerado pela primeira vez no país[15]. Em ambos os casos, guardadas as devidas repercussões marcadas pela popularidade de um e o anonimato de outro, cidade grande e interior, diferença de sexo – destacando aqui novamente a naturalidade com que se trata a maternidade – foram personagens da vida comum que deram seus depoimentos nos jornais, defendendo a parentalidade. Curioso apontar que a homossexualidade de Cássia Eller e Maria Eugenia mal ficou em pauta, sumindo em meio às dúvidas do caráter do avô paterno que entrava na disputa, e do carinho evidente de Eugenia por seu enteado.
No decorrer desta última década, outros processos foram julgados e a dinâmica apresentada é sempre semelhante. Como já mencionado em outros trabalhos[16], os processos analisados no final dos anos 1990 e no início desta década receberam pareceres favoráveis da Psicologia, do Serviço Social, uma sentença positiva do juiz, e o voto contrário, sempre que houve, foi proveniente do Ministério Público (MP), desfavorável à adoção, alegando falta de previsão legal. Em geral, o MP se opõe aos pareceres técnicos e à decisão do juiz com argumento nessa mesma linha do caso de Catanduva:
Com a decisão do STF, mencionada acima, o argumento da falta de previsão jurídica cairia por terra.adoção por pessoas solteiras está previsto desde que observados os requisitos, inclusive o disposto no art. 43”; “a Constituição reconhece a união estável entre um homem e uma mulher (art. 226) No entanto, o ordenamento jurídico não prevê casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O artigo 43 do ECA, mencionado no argumento do MP acima, assume, em referência às questões que ora colocamos em pauta, sentidos diversos para os operadores do direito que fazem uso do seu texto para defender pontos de vista variados. Diz a lei: Art. 43 – “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. A definição de reais vantagens e de legitimidade do que se pretende ficam a critério do julgador, não há como escapar dessas interpretações subjetivas, muitas vezes arbitrárias, por outro lado passíveis de argumentação contrária na segunda instância da justiça[17].
Os psicólogos e assistentes sociais recebem processos que tratam de homossexualidade dos pais em duas esferas jurídicas: nas Varas da Infância e da Juventude são processos de adoção, por pessoas sozinhas ou casais. Nas Varas de Família os processos surgem em função de separação e disputa de guarda quando o genitor ou a genitora se declara homossexual, ou quando casais do mesmo sexo se separam e possuem filhos menores.
A demanda para a avaliação pela equipe técnica era movida por motivos um pouco diferentes daqueles que fazem encaminhar processos de adoção, como a motivação para adoção, a possibilidade de oferecer à criança ou adolescente em tela um lugar de filho. No início, a preocupação era buscar afastar possíveis riscos dessa construção familiar, sobretudo se envolvesse pais e filho do sexo masculino. Além do temor do abuso, colado na ideia da promiscuidade dos gays, temia-se sobre a orientação sexual dos filhos que convivessem com pais do mesmo sexo. Aos poucos, essa esfera de estranheza vai se dissipando e o que se busca no contato entre equipe técnica e requerentes é comum, independente da homossexualidade dos futuros pais.
Em função da desqualificação desses sujeitos, do temor de que não possam ser bons pais, da em princípio falta de atributos de uma família que ofereça o melhor para uma criança, vemos a argumentação dos operadores do Direito se fundar em torno de algo que escolhemos chamar de “o mal menor”. Convém, no entanto, salientar que nenhum desses aspectos é claramente mencionado.
Ao invés de afirmar os ganhos da inserção da criança em uma família, o que em geral pauta a decisão dos juízes na colocação das crianças em famílias substitutas, os argumentos giram em torno da salvação das crianças de destinos que seriam ainda piores.
No estudo social de um dos processos, a técnica refere-se assim ao desejo do requerente:
Simpatizou-se pelo menino Marcelo e imagina poder oferecer-lhe uma vida mais feliz fora da instituição.
O requerente –inclusive ele– afirma sua intenção de adoção através do argumento de que sair do abrigo será o melhor para a criança.
A possibilidade de adoção por um homem gay é comparada à vida em uma instituição de acolhimento institucional, apoiando neste argumento a defesa da adoção. Diz o juiz:
[essa adoção] apresenta reais vantagens para o adotando, que vivia há 12 anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar (chama o requerente de "pai"), estuda em colégio de conceituado nível de ensino religioso e freqüenta um psicanalista para que melhor possa se adequar à nova realidade de poder exercitar o direito ao convívio familiar que a Constituição Federal lhe assegura no art. 227[19].
E continua, dizendo que
prefere ver acolhido o pedido que permanecer [o menor] em uma instituição sem qualquer nova chance de ter uma família, abandonado até que aos 12 anos sofrerá nova rejeição, já que não poderá mais permanecer no Educandário onde se encontra desde que nasceu e será transferido para outro estabelecimento de segregação e tratamento coletivo, sem qualquer chance de desenvolver sua individualidade e sua cidadania, até que por evasão forçada ou espontânea poderá transformar-se em mais um habitante das ruas e logradouros públicos com grande chance de residir nas escolas de formação de marginais em que se transformaram os atuais "presídios de menores" e, quem sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no sistema penitenciário[20].
A Defensoria Pública, em resposta à negativa do MP, defende o requerente:
Marcelo antes de ter o apelado como pai, encontrava-se desde os 15 meses de nascido, abrigado numa instituição, trazido pelo próprio genitor biológico que, após, nunca mais o procurou, não recebendo a visita de qualquer outro membro de sua família natural, em estado de total abandono e, se não acolhido pelo apelado quando contava com quase 11 anos de idade, praticamente não haveria chance de colocação em família substituta (...).
A casa é alternativa à rua, ao abrigo e à marginalidade, é chance de se encontrar um lugar, uma posição social, de se constituir como um sujeito valorizado pela sociedade e ter outras oportunidades na vida. Chama a atenção o destaque dado ao raciocínio em torno da comparação com a instituição, em meio às características de Marcelo que o qualificam como potencial bom pai.
Diz ainda, sobre este mesmo processo, o procurador de justiça:
Desse estado, quase sempre caótico de coisas, resulta a imensa falange de menores que passam a infância e a adolescência em instituições desprovidas dos meios materiais e estruturais capazes de lhes mitigar o abandono e prepará-los para os desafios da vida.
Embora o abrigo seja, ainda hoje, muitas vezes a única possibilidade para crianças e adolescentes sem vínculo familiar e fora da idade para ser adotado, raramente se consegue elencar aspectos que possam ser positivos para algumas crianças, uma vez que se constitui, em alguns casos, única referência, seja a instituição, sejam os profissionais ou os abrigados.
Nesse caso, e em outros processos semelhantes, o que prepondera na decisão pela adoção favorável da criança é, como dissemos, a lógica do mal menor.
Marcio Alves da Fonseca sugere que uma das possibilidades de leitura dos cursos de Foucault seria “percorrê-los como locais de experimentação e de elaboração de noções, como locais de elaboração de hipóteses de trabalho, que carregam a dupla marca de uma preocupação didático-pedagógica e de um caráter experimental”[21]. É nesta linha que pretendemos visitar os personagens de Foucault em algumas das suas aulas no Collège de France reunidas no volume Os anormais para refletir sobre essas composições que se formam, a partir de pareceres favoráveis dos juízes, no caso dos requerentes serem gays.
Em “Os anormais”, Foucault fala em três figuras que compõem a anomalia, na aula de 22 de janeiro de 1975 e vamos tomar as duas primeiras: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora.
a) A noção de monstro: “o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas das leis da natureza”[22]. Ele é infração da lei em sua existência. Transita num domínio jurídico-biológico. “o monstro é o que combina o impossível com o proibido”[23].
O monstro “viola a lei da natureza”. Assim é visto um homem gay que quer adotar. Viola por ser homem e não seguir suas prescrições de gênero e mais, por querer ser pai, esgarçando ao extremo a suposta natureza. Visto como anormal, indecente, problemático por descolar sexo biológico/gênero masculino/desejo por mulheres, transgride todas as prescrições endereçadas a ele desde a mais tenra infância. Uma vez feita essa escolha, ou sucumbir a essa condição, dependendo da compreensão sobre a origem de sua orientação sexual, é possível se exigir tolerância, não mais que isso. E desde que sua orientação sexual se limite a sua vida ou seu exercício entre adultos. Supõe-se que tenha aberto mão da paternidade ao encarar, assumir ou sucumbir a sua condição. Ao querer ser pai, transgride novamente a ordem social. Por isso também, “combina o impossível com o proibido”. Que consequências decorrem dessa dupla violação?
Segundo Foucault, o monstro “é que é o problema, o monstro é que interroga tanto o sistema médico como o sistema judiciário”[24]. E, no caso da adoção, é preciso convocar o judiciário na sua decisão pela paternidade. A discussão sobre a homossexualidade como doença, ou os limites para integração de um homossexual em esferas da sociedade as quais nunca habitara, como o da paternidade, regulada pelo judiciário se atualizam na procura de um parecer positivo para adoção de uma criança.
b) “O indivíduo a ser corrigido. O contexto de referência é a família. O monstro é uma exceção. O indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente. É um sujeito incorrigível e, como tal, exige um excesso de sobrecorreção, criando um jogo entre a corrigibilidade e a incorrigibilidade”[25].
Este sujeito gay que percorre os corredores da justiça, que escapa, de alguma forma, às normas médicas, não pode ser corrigido. No entanto, está sob sobrecorreção, para utilizar um termo de Foucault. Supõe-se que a família, no início da vida, falhou de alguma forma, por não ter conseguido fazê-lo se adequar às normas de gênero.
No entanto, ao examiná-lo, podemos nos deparar com argumentos do serviço social e da psicologia que oferecem novo contorno a essa falta de atributos masculinos, a qual precisa muitas vezes justificar. Curiosa a percepção, pelos técnicos envolvidos com esses processos, de uma feminilidade condizente com sua condição desejada de cuidador de criança. Feminilidade que o remete à condição de anomalia. Feminilidade que lhe concede o pleiteado: ter filhos legitimados pelo Estado, como demonstra este trecho do processo, escrito por uma psicóloga:
bastante ligado à figura materna a quem muito admira, o requerente espera ser um pai diferente daquele que foi seu pai, descrito como um homem desorganizado e frágil. O requerente demonstra possuir uma disponibilidade para a maternagem, o que poderá facilitar a adaptação da criança a ser adotada.
Esse atributo feminino, localizado nesse corpo masculino, transitaria, utilizando os termos de Foucault, entre a “corrigibilidade e a incorrigibilidade”. E mais, “o individuo anormal do século XIX vai ficar marcado (...) por essa espécie de monstruosidade que se tornou cada vez mais apagada e diáfana, por essa incorrigibilidade retificável e cada vez mais investida por aparelhos de retificação”[26].
Na composição com esse adulto monstruoso ou aquele que precisa ser corrigido, há uma criança, em geral docilizada pelos anos de institucionalização – e que também precisa ser corrigida. Essa criança dócil pode ser exatamente aquela que espera adoção: fora da escola e da família, mais negra, mais pobre. Criança essa que entende, muitas vezes, aquela possibilidade de adoção como uma dádiva, uma chance, interpreta-a como merecimento circunstancial, como algo que cabe a ela garantir, uma vez escolhida.
Foucault discute a psiquiatrização do anormal e aproveito seus argumentos para discutir a psicologização e a judicialização de figuras que escapam de modelos mais hegemônicos e precisam passar pelo crivo do Estado. Proponho que quando se concede a adoção a requerentes que se declaram gays, homossexualidade, negritude e grupos de irmãos se unem no conceito de anomalia. E sua viabilidade está exatamente nesse complexo que se constrói, nesse conjunto harmônico de anomalias.
Pobre, negro, mais velho e com irmãos descreve um quadro de alguém que precisa de correção. Uma correção impossível. Perfeito para um outro personagem da anomalia. O conjunto seria incorrigível por reunir não-desejos, não-promessas de felicidade, sobras sociais.
Dos restos da sociedade só seria possível esperar uma lógica de submissão: para uma criança negra e mais velha, que não desperta desejos de se ter como filho, um pai gay.
Considerações
finais
Mais de dez anos se passaram desde que esses processos aqui mencionados tramitaram, embora a lógica impressa nesses documentos ainda seja encontrada atualmente. Contamos hoje com a decisão do STF comentada, há no Congresso um projeto de criminalização da homofobia[27] a ser votado, várias ações governamentais relativas à população LGBT têm sido implementadas, enfim, o cenário geral é bem diferente. Mudanças também foram implementadas em relação à adoção, ainda que os preceitos estivessem todos no ECA. A lei 12.010 veio reforçar a necessidade da brevidade nos processos que envolvem crianças, e o projeto de lei 07018/2010 que veda a adoção de crianças por homossexuais não foi aprovado.
Destaca-se, como vimos desenvolvendo, a compreensão de que entre esta família e o abrigo, a opção por pais gays é o mal menor.
É curioso que as dúvidas sobre a condição do sujeito para o exercício da parentalidade são sanadas na medida em que esta composição de “anormais” se dá. Paradoxalmente, a existência das anomalias é o que parece viabilizar a formação de uma família, reconhecida como tal. O monstro, o que não tem correção, o docilizado, restos da sociedade só conseguem escapar deste pré-destino se estiverem juntos. A família nascente deste encontro parece limpar o passado que moldava cada figura em separado. As sentenças são favoráveis –ainda que na 2ª instância, naquele momento– e as adoções podem acontecer.
Sabemos que as transformações sociais são lentas. O Brasil entrou definitivamente na discussão sobre homoparentalidade, com uma linha própria. Crescem as pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas sobre assunto e acreditamos que, cada vez mais, com a visibilidade do tema, mais pessoas constituam famílias que, apostamos, possam viver com menos preconceito e discriminação.
Notas
[2] CF, art. 227 e ECA, art. 4.
[3] Não há previsão legal no Brasil, mas já há decisões da justiça reconhecendo este formato. Vamos retomar este tema mais adiante.
[4] Os processos analisados aqui foram o objeto de pesquisa da tese de doutorado defendida pela autora em 2002 e que, modificada, foi publicada em livro, Homossexualidade e adoção, em 2007, pela editora Garamond. Na época da pesquisa, foi possível conseguir autorização do juiz da Vara para utilização de trechos dos processos, desde que os nomes fossem alterados e não fosse possível identificar os casos, que correm em segredo de justiça. No entanto, o artigo é inédito, bem como a análise proposta.
[5] Butler, 2003.
[6] Almeida, 2010, p. 26.
[7] Almeida, 2007, p. 153.
[8] Butler, 2003, p. 225.
[9] Butler, 2003, p. 277.
[10] Grossi, 2003; Uziel, 2009.
[11] Butler, 2003.
[12] Foucault, 1988.
[13] Gross, 2003, p. 9.
[14] Uziel, 2010.
[15] Uziel, 2010.
[16] Uziel 2007, 2010.
[17] Uziel, 2007.
[18] Pereira, 1999, p.88-89.
[19] Uziel, 2007, p. 164.
[20] Material de pesquisa.
[21] Fonseca, 2002, p.253.
[22] Foucault, 2002, p.69.
[23] Foucault, 2002, p.70.
[24] Foucault, 2002, p. 78.
[25] Foucault, p. 70.
[26] Foucault, 220, p. 75.
[27] PL122.
Bibliografia
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Ficha bibliográfica: