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“ADOÇÃO-PRONTA”: MITOS E CONSTRUÇÕES
Lygia
Santa Maria Ayres
Serviço
de Psicologia Aplicada – Universidade Federal Fuminense
lygia.ayres@gmail.com
“Adoção-pronta”: mitos e construções (Resumo)
O artigo, fruto de doutoramento da autora, tece considerações acerca do instituto da adoção no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Tem como objetivo central analisar as adoções-prontas a luz do contexto sócio-economico e político tanto das famílias que entregam seus filhos em adoção quanto o daqueles que acolhem em adoção. Examinam-se processos relativos a situações de colocação em lares substitutos e/ou reparentalidade tramitados na 1ª. Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital (RJ) durante três períodos históricos, a saber, o da vigência do Código de Menores, o da reformulação deste em 1979 já com a introdução da lei de adoção e o do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 que rediscute e redefine o instituto da adoção no Brasil. As analises produzidas, tendo como norte teórico as contribuições da genealogia de Foucault, a cartografia de Guattari e a Analise do Discurso, apontam-nos que devemos problematizar e colocar em análise os discursos e as redes que tecem os fios de alguns processos de inclusão/filiação social. Salientam que é preciso desconstruir mitos e discursos que incorporam à mãe pobre a subjetividade de incompetência e naturalizam a perda do poder familiar. Sintetizando, questionam-nos se não devemos pensar, sob a ótica da rede de relações psicossociais, o ato de entrega dos filhos aos cuidados de terceiros, como um recurso de inclusão social acionado por genitores excluídos?
Palavras chaves: Adoção-pronta, políticas publicas, infância e adolescência, exclusão social.“Adoção-pronta”: myths and constructions (Abstract)
This article, resulting from the author’s doctoral thesis, weaves considerations about the institution of adoption in the city of Rio de Janeiro, Brazil. It aims to analyze independent adoptions in light of the sócio-economic and political conditions of both families who give their children up for adoption and those who adopt children. We examine judicial dossiers dealing with placements in substitute families, filed in the 1st District of Juvenile Court in the City of Rio de Janeiro, during three historical periods: that of the first Code of Minors, that of the 1979 reformulated Code of Minors (that included the law of adoption) and the 1990 Statute of Children and Adolescents, which re-discussed and redefined the institution of adoption in Brazil. Our analysis –elaborated according to a theoretical perspective based on Foucault’s notion of genealogy, Guattari’s cartography, and discourse analysis– suggests that we should investigate the networks included in the processes of inclusion/social affiliation. It indicates that we must desconstruct myths and discourses that present poverty-stricken mothers as incompetent and thus naturalize their loss of parental authority. To summarize, our analysis poses the question, from the perspective of psychological networks of relationships, if we should not rethink the act of giving children into the care of others, as a resource for social inclusion, when including the participation of birthparents .
Key words: Independent adoption, public policy, childhood and adolescence, social exclusion.
O presente trabalho problematiza, no contexto brasileiro atual, o
recurso da adoção, especialmente o da “adoção-pronta”[1] enquanto uma solução
alternativa à criança e ao adolescente pauperizados em nosso país.
Utilizamos como universo de análises as políticas de atendimento expressas nas legislações especificas para a população infanto-juvenil, isto é, o Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente. No Código de Menores de 1979, a adoção era definida e aplicada como solução ao quadro de desamparo de crianças e jovens em situação irregular, face aos entendimentos que a pobreza constituía-se como condição facilitadora para a reformulação de vínculos familiares.
A partir de 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente entra em cena. Esta lei expressa as mudanças da sociedade brasileira frente à política de atendimento à população infanto-juvenil, redirecionando e redimensionando, dentre outras medidas, o instituto da adoção, ao afirmar que a pobreza ou a carência familiar não se traduz em condição para retirada do pátrio poder[2] pelo Estado. Incorpora também novas teorizações e novas posições, propondo-se a colorir o mundo jurídico familiarista brasileiro. No entanto, percebe-se ainda hoje – seja na prática cotidiana dos Juizados da Infância e da Juventude, seja na mídia ou ainda nas políticas governamentais – as marcas da exclusão moral das famílias pobres entrelaçadas ao incentivo à adoção. Tal observação encontra fundamento na Lei 10.447 de 9 de maio de 2002 que cria e institui o dia 25 de maio como o Dia Nacional da Adoção, ou ainda no estímulo dado pelo governo do estado do Rio de Janeiro através do Programa Um Lar para Mim[3].
O envolvimento com a adoção como objeto de estudo emergiu, a partir de pesquisas desenvolvidas no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense, quando da inserção da autora, em 1995, no Programa de Intervenção voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social (PIVETES)[4].
A equipe desse programa – composta por técnicos de nível superior, docentes e discentes do Curso de Graduação em Psicologia – levantou seiscentos (600) processos do Juizado da Infância e da Juventude da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, alocados no Arquivo Nacional em torno da temática perda e/ou reformulação do vínculo familiar em três diferentes décadas: 1936 a 1945; 1973 a 1984 e 1985 a 1994. Nessa categoria (perda e/ou reformulação do vínculo familiar) três medidas jurídicas estão inseridas: a tutela, a guarda e a adoção.
A guarda no Código de Menores traduz-se em ação de assistência à criança e ao adolescente. No Estatuto da Criança e do Adolescente, a guarda é uma medida de proteção que regulariza a posse de fato, obrigando os seus detentores a assistir integralmente à criança e ao adolescente, não havendo, entretanto a destituição do pátrio poder. Garante, ainda, aos guardiães, benefícios como a inclusão dos assistidos, como dependentes, no Imposto de Renda.
Por tutela, medida caracterizada também como de assistência no Código de Menores e de proteção no Estatuto da Criança e do Adolescente, entende-se o conjunto de poderes e encargos conferidos pela Lei a um terceiro que deverá zelar pelo bem estar da criança ou do adolescente. Diferentemente da guarda implica na prévia suspensão ou perda do pátrio poder. A tutela contempla todos os direitos e deveres da guarda, sendo concedida, na maioria das vezes, em casos de orfandade. Essa alternativa, com a promulgação do ECA, vem sendo utilizada por familiares (avós e irmãos) na medida em que lhes são vedados o instituto da adoção.
A adoção é entendida como ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente da biologia ou da genética, o vínculo de filiação.Ou como define Diniz[5].
“...inserção num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição de vínculo jurídico próprio da filiação, segundo as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram ou são desconhecidos, ou não sendo esse o caso, não podem ou não querem assumir o desempenho das suas funções parentais, ou são pela autoridade competente, considerados indignos para tal.”[6]
O instituto da adoção pressupõe como condição básica tanto no Código de Menores quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, a perda e a reformulação do vínculo familiar sob a forma de destituição de pátrio poder.
Dentre as possibilidades e desdobramentos da (re)parentalidade, constatamos, neste levantamento inicial, um grande número de solicitações que se referiam à “adoção-pronta”. Por “adoção-pronta”, alvo desse artigo, entende-se o pedido de adoção que chega aos juizados como fato consumado, isto é, a criança já se encontra, concretamente, com o casal ou o responsável que pretende regularizar a relação instituída. Tal situação – sustentada basicamente no tripé mãe biológica, casal acolhedor e especialistas do juizado –, tem início, via de regra, pela própria mãe biológica que em um determinado momento de sua vida, entrega o filho a um responsável ou casal que julga competente para o papel de “pais”. Os especialistas entram em cena, apenas, quando o caso chega aos juizados.
É sobre essa prática que nos debruçamos no intuito de melhor compreender as redes que envolvem o instituto da adoção e em especial, a “adoção-pronta”. Tomamos aqui o conceito de redes, conforme Marques[7] “...não apenas como metáfora da estruturação das entidades na sociedade, mas também como método para descrição e análise dos padrões de relação nela presentes...”[8]. Tal perspectiva pressupõe, portanto, análises contextuais e múltiplos agenciamentos, não tendo a pretensão de apresentar modelos e sim, através da inferência, dar visibilidade, realizar algumas outras leituras acerca dos atravessamentos que vêm constituindo, no Rio de Janeiro, as redes da “adoção-pronta”.
Em outras palavras, o processo de conhecimento que trilhamos, não se constitui enquanto um ato de clausura, de fechamento ou de reclusão, mas sim, enquanto um convite à ampliação, um caminhar atento e implicado com os desenhos que o cotidiano vai rabiscando e imprimindo à prática da adoção, favorecendo-nos, assim, o encontro com outras perspectivas e possibilidades de análises.
Caminhar pela via da interrogação implica, necessariamente, colocar em análise discursos/práticas que cotidianamente constroem histórias e mitos. Pressupõe, ainda, trabalhar com alicerces teóricos comprometidos com a idéia de desconstrução, de desmistificação, de rupturas, de problematizações e não de soluções. Nesse sentido, a escolha de algumas sustentações teórico-metodológicas em detrimento de outras, nos aponta a direção/sentido que pretendemos imprimir em nossas ações.
O Objeto da Pesquisa
A Surpresa pelos Números
O corpus da pesquisa foi constituído por 480 processos de colocação em família substituta tramitados na primeira Vara do Juizado da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, assim distribuídos: 120 processos compreendidos entre os anos de 1974 a 1979 – período anterior á reformulação do Código de Menores –; 240 processos de 1980 a 1989 – os anos de vigência do referido Código –, e 120 processos de 1990 a 1994 correspondendo aos primeiros anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
As análises iniciais dos processos estudados nesses períodos nos possibilitaram perceber que, independentemente das legislações, existe, por assim dizer, uma equivalência quantitativa entre as medidas de guarda e de adoção. Entretanto, no cômputo geral, os dados nos revelaram que a solicitação e encaminhamento à adoção representavam quase 40% dos processos estudados, isto é, um percentual significativo no universo total pesquisado.
Dos cento e vinte processos pesquisados no período de 1974 a 1978 (Quadro 1), cinqüenta e seis referiam-se à guarda (46,6%), quinze à tutela (12,5%) e quarenta e nove à adoção (40,8%). Na década de 1979 a 1989, dos duzentos e quarenta processos analisados, o quadro se manteve sem grandes alterações, na medida em que foram registrados cento e vinte e três processos de guarda (51,2%), quinze de tutela (6,2%) e cem de adoção (40,1%).
Nos cento e vinte processos sob a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990 a 1994, cinqüenta referiam-se à guarda (41,7%), vinte e oito à tutela (23,4%) e quarenta e dois ao instituto da adoção (35%), conforme apresentado na tabela a seguir.
Quadro 1.
Quanto à natureza dos processos
Natureza do Processo |
1974- 1978 |
1979-1989 |
1990-1994 |
Guarda |
56 (46,6%) |
123 (51,2%) |
50 (41,7%) |
Tutela |
15 (12,5%) |
15 (6,2%) |
28 (23,4%) |
Adoção |
49 (40,8%) |
100 (40,1%) |
42 (35,0%) |
Fonte: Processos da 1ª. Vara da Infancia e da Juventude da Comarca da Capital (RJ). |
Nota-se no terceiro recorte estudado, um acréscimo de solicitações de tutela e uma ligeira redução de encaminhamentos para a adoção. Tal fato pode estar associado à condição expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 42) que veda aos avós e aos irmãos, o instrumento legal da adoção, restando-lhes em caso de guarda de fato ou orfandade, o instrumento jurídico da tutela.
Essa hipótese pode também, de certa forma, ser ratificada pelos dados aferidos nos processos estudados com relação à categoria autor da ação. Dois grandes grupos foram encontrados: os sem vínculos familiares, ou seja, responsáveis que apesar de terem a guarda de fato da criança ou do adolescente não possuíam, com os mesmos, relações de parentesco e o grupo com vínculos familiares (tios, avós, irmãos), que já detêm a guarda de fato e desejam apenas regularizá-la juridicamente. O quadro abaixo (Quadro 2) apresenta estes dados nos três períodos pesquisados. Observamos, no terceiro período, o de 1990 a 1994, um acréscimo no número de solicitantes com vínculos de parentesco com a criança ou adolescente –, expressos nas figuras de avós e irmãos, levando-nos a pensar em uma correspondência entre tutela e requerentes com vínculos familiares.
Quadro
2.
Quanto
à relação de parentesco entre a criança e o adotante
Autor da Ação |
1974- 1978 |
1979-1989 |
1990-1994 |
Sem vínculos familiares |
75 (62,5%) |
123 (51,2%) |
49 (40,9%) |
Com vínculos familiares |
14 (11,7 %) |
66 (27,5%) |
52 (43,4%) |
Fonte: Processos da 1ª. Vara da Infancia e da Juventude da Comarca da Capital (RJ). |
Estudo semelhante, coordenado por Fávero[9], foi realizado pela equipe do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente (NCA) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-São Paulo. O programa pesquisou no período de maio a agosto de 1996, todos os casos de aplicação da medida jurídica de destituição de pátrio poder – condição primordial para a adoção – em seis Comarcas de Varas da Infância e da Juventude da Capital Paulista, num total de 201 sentenças. A pesquisa paulistana constatou que 46,2% dos processos foram iniciados por guardiães sem vínculos de parentesco e já com a guarda de fato. Na pesquisa que realizamos no Rio de Janeiro, o percentual foi de 51,5 %. Os estudos do NCA revelaram ainda que em 76,6% dos encaminhamentos foi a mãe, na faixa de 21 a 29 anos, solteira, doméstica ou desempregada e alegando carência sócio-econômica, a pessoa destituída do pátrio poder.
Apesar de analisar períodos diferentes e tratar os dados apenas quantitativamente, a pesquisa do NCA encontra-se em consonância com a nossa, impulsionando-nos a perseguir a estrada que nos leva ao estudo dos discursos que instituem a adoção como “solução”.
Debruçando-nos em alguns processos, constatamos que a maioria deles, referia-se à “adoção-pronta”. Esta prática de entrega e colocação familiar, ainda que não disposta, juridicamente, nos códigos de 1979 e 1990, constitui-se, segundo nossa amostragem, na de maior peso quantitativo no Juizado da Infância e da Juventude de nosso Município.
Verificamos que, dos quarenta e dois processos de adoção registrados no período de 1990 a 1994, segundo o recorte metodológico utilizado, quarenta referiam-se a esta modalidade (“adoção pronta”); os outros dois processos foram abertos por estrangeiros e não atendidos em suas solicitações por pleitearem criança em torno de um ano de idade, faixa preferencial de atendimento a casais brasileiros. Das cem solicitações, de adoção no período de 1979 a 1989, noventa e seis referiam-se à “adoção pronta”. Ou seja, no universo pesquisado, processos do Juizado de Menores ao da Infância e da Juventude a “adoção-pronta” mostrou ser a forma mais usual de legitimação de inserção de uma criança em uma família substituta, isto é de (re)parentalidade.
Os dados apresentados na tabela abaixo podem facilitar a explicação acima.
Formas de Adoção |
1974-1978 |
1979-1989 |
1990-1994 |
“adoção-pronta”[10] |
45 (92%) |
96 (96%) |
40 (95,3%) |
Internacional |
02 (4,7%) |
||
outras[11] |
04 (8%) |
04 (4%) |
|
Fonte: 1ª. Vara da Infancia e da Juventude da Comarca da capital (RJ). |
Mariano também encontrou percentual semelhante ao de nossa pesquisa. Aponta a autora que, em Ribeirão Preto (SP), no período de 1991 a 2000, 72,7% dos processos analisados referiam-se à adoção direta. Entende, a pesquisadora, por adoções diretas as que
“... ocorrem normalmente quando alguém conhece uma mãe que deseja entregar seu filho para outra pessoa criá-lo. Essa intermediação pode ser feita por profissionais que trabalham em hospitais, conhecidos das mães e/ou dos requerentes, familiares ou até mesmo através de abrigos.”[12]
Os estudos de Cunha em uma Comarca da Baixada Fluminense apontam para a “adoção-pronta” como a forma mais comum de colocação familiar nos Juizados da Infância e da Juventude. Esclarece a autora que
“... 81,9% dos processos de adoção não obedecem à exigência legal. (...) Nesses processos os adotantes procuram o juizado objetivando formalizar a adoção [adoção-pronta] cujo procedimento teve início por outros meios. Quais sejam: circulação de crianças e retirada do abrigo...” [13]
Os estudos de Santos, enquanto assistente social do judiciário, também apontam essa forma de colocação familiar como a de maior peso nas Varas da Infância e da Juventude de São Paulo. Justifica a autora que, através dessa prática,
“... as mulheres não desejosas ou impossibilitadas de maternar seus filhos, demonstram mais segurança e tranquilidade em face da sua decisão, alegando que poderão ver a criança quando desejarem e, assim, poderão se certificar de que o (a) filho(a) está sendo bem cuidado(a).”[14]
Analisando alguns discursos de assistentes sociais e psicólogos impressos em processos de “adoção-pronta” estudados, percebemos que estes destacavam e legitimavam em suas falas argumentativas dentre outras instituições, a pobreza, o desemprego, a miséria, muitas vezes, enunciadas pela própria mãe doadora, como condições de abandono e portanto de desistência do pátrio poder.
“...Estou desempregada e não tenho condições de ficar com ela. É melhor para ela ficar com um casal que tem dinheiro. Vai ter uma vida melhor, estudar, ter profissão, não precisar de favores...” (fala de uma mãe biológica extraída de um processo de 1993, do Arquivo Nacional).
Nesse sentido, tomamos aqui três instituições[15] como marcos e sustentação de nossas análises: a instituição abandono, a instituição pobreza e a instituição voz dos genitores.
Marcos de
Análise
Hegemonicamente, a instituição de abandono vem sendo tomada e conceituada em seu aspecto mais abrangente, ou seja, associada ao ato de não acolhimento, ao desinteresse e ao desamor. A funcionalidade desse conceito, clara nos discursos políticos da adoção, especialmente àqueles que visam ao seu incentivo, estabelece um jogo maniqueísta, onde o adversário da ordem pública (o pobre que abandona) é representativo da incompetência e por isso excluído do seu direito ao pátrio poder, hoje poder familiar. Assim sendo, iniciamos essa constatação com algumas definições ou entendimentos acerca do abandono.
“... a renúncia voluntária dos pais ou tutores, a toda autoridade sobre seus filhos que, os vendem ou lhes confiam na legalidade a qualquer outra pessoa ou instituição...”[16]
“... é o rompimento da relação afetiva entre pais e filhos. Hoje, a falta de flexibilidade para apreciar situações de abandono produz como resultado a internação de menores em instituições por longos anos”.[17]
“A condição de orfandade não é apenas aquela da criança cujos pais morrera, mas também aquela da criança que tem raros e esporádicos contatos com as sombras de pais, totalmente incapazes de construir uma aliança, de iniciar um diálogo, ainda que imperfeito, com alguém que apenas pelo diálogo pode crescer”.[18]
“... ausência de visita por prazo superior a seis meses caracteriza estado de abandono...” (portaria 04/96 do Dr. Siro Darlan, juiz titular da 1a. Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital do estado do Rio de Janeiro).
Surge nesses discursos, a idéia de abandono como uma condição individual, particular, específica e estática: o abandono familiar. Afirmam, ainda, a existência de vínculos afetivos, pela presença, pelo contato direto e constante entre pais e filhos, desconsiderando a gênese do conceito de abandono.
Dando continuidade ao estudo da instituição abandono, recorremos as contribuições de Boswell que pontua o aspecto sócio-histórico do mesmo. O autor em seus estudos acerca da gênese e da história do abandono de crianças, na Europa, da antiguidade ao período renascentista, nos esclarece que esse, o ato de abandonar, era uma prática cultural presente ao longo da história “... pais de todas as condições sociais abandonaram seus filhos em grande numero e sob as mais variadas circunstâncias...”[19] Revela-nos, ainda, que o abandono provavelmente, atingiu seu ponto máximo no final do Império Romano face às circunstâncias sócio-culturais desse período, não estando associado a vínculos afetivos, como na modernidade e na contemporaneidade. Afirma-nos, o autor: “... na Europa antiga e medieval, os pais abandonavam seus filhos em grandes proporções, uma diferença fundamental refere-se aos laços afetivos, ao sentido de família ou a concepção de infância....”[20] Lembra-nos, ainda, o historiador que o viés afetivo do abandono só emergiu a partir da produção do conceito de infância. Ao falarmos de infância é necessário, então, contextualizá-la, datá-la. Percebe-se que o surgimento da noção de infância e seu movimento de institucionalização se deram simultaneamente ao processo de valorização da família e da criação da escola. Desse modo, a infância nem sempre foi percebida como é hoje. Crianças e jovens já ocuparam diferentes espaços e lugares na vida social. Nesse sentido, entendemos, aqui, a infância enquanto uma produção social.
Trabalhamos com a noção de infância que se consolidou no século XX, isto é, marcada pelo individualismo e intimismo, estudada e esquadrinhada por diferentes especialistas que determinam o seu padrão de normalidade, bem como, suas formas de assistência e proteção. Produziu-se e fortaleceu-se, assim, o mito do amor materno e a noção de abandono associada à afetividade, enquanto um problema individual. Concepção, essa que, localizando estritamente no privado os fracassos individuais, isenta o Estado de seu papel potencializador e protetor da condição de cidadania.
Retomando Boswell[21] esse, em seu percurso historiográfico da antiguidade à renascença, fala de cinco tipologias de motivação para o ato de abandono: por desespero, vergonha, esperança, resignação e insensibilidade. Se pensarmos pelo viés da ótica cartesiana, estas tipologias podem, ainda hoje, justificar atos ditos de abandono. Assim, alguns discursos contidos nos processos por nós pesquisados poderiam ser enquadrados nas referidas categorias camuflando, de certa forma, uma leitura da realidade político-social de nosso país. Simulando tal possibilidade recortamos alguns argumentos atribuídos às mães pobres descritos nos processos analisados quando do ato de entrega de seus filhos, classificando-os nas categorias de abandono propostas pelo autor.
a) abandono por desespero, quando os indivíduos encontram-se em estado de pobreza ou frente a uma catástrofe, diante da qual não se sentem em condições de sustentar os filhos.
“... relata com muita emoção as dificuldades que vem atravessando ao longo de sua vida, do ‘sofrimento’ nos dois casamentos e do desamor de sua família, da qual fala com profunda mágoa e tristeza, por não ter recebido apoio para cuidar dos seus filhos. Informa que está muito satisfeita com o tratamento que o filho vem recebendo por parte do casal requerente [ex-patrões], do qual fala com estima e gratidão” (processo de junho de 1991 – adoção concedida).
b) abandono por vergonha, quando se sentem envergonhados pela aparência física da criança ou de sua ascendência, traduzida, essa última, nos termos do nascimento ilegítimo ou incestuoso.
“... mãe do menor entregou-o ao casal a criança dizendo-lhes que não o queria mais, pois ela é casada e este era fruto de um adultério e, como estava querendo voltar ao convívio do marido, não poderia levar a criança. A genitora relata ter vindo do sul e que se separara do marido. Aqui no Rio, teve um relacionamento esporádico, quando engravidou da criança...” (processo de fevereiro de 1992 – adoção concedida).
c) abandono por esperança, quando acreditam que uma pessoa que possui uma situação sócio-econômica mais favorável poderá possibilitar melhores condições de vida à criança.
“... a mãe biológica V. 22 anos, solteira, declarou que deu sua filha para casal requerente porque não tinha condições de criá-la e dar-lhe o básico necessário. Afirma estar tranqüila e consciente de sua atitude justificada pelo fato de R. estar muito bem cuidada e amada pelos requerentes como filha dos mesmos, já que não têm filhos (...) V. não conheceu os pais que faleceram logo após seu nascimento, foi interna de instituição e depois ficou sob a guarda de uma senhora até 16 anos, quando decidiu sair de lá e trabalhar, já que era muito maltratada pelos filhos da mesma...”(processo de novembro de 1991 – adoção concedida)
d) abandono por resignação, quando percebem o contexto da criança ou da própria mãe como irreversível.
“... a genitora disse que foi abandonada pelo companheiro quando estava grávida da menor e que por não ter condições de sustentar a si e a sua filha deixou-a sob cuidados de terceiros e que é totalmente favorável à adoção, pois continua sem ter como se manter...” (processo de maio de 1992 – adoção concedida)
e) abandono por insensibilidade, quando, simplesmente, não desejam assumir suas responsabilidades parentais.
“... relataram que a mãe do menor trabalhava na casa da irmã da requerente em Florianópolis, tem 20 anos e já havia tido três filhos, sendo que os dois primeiros foram doados a outras pessoas. Além disso, era muito inconstante e irresponsável pois eventualmente sumia algum tempo com um companheiro e deixava o menor com a irmã da requerente..”(processo de novembro de 1989 – adoção concedida)
Percebemos, nos discursos dos processos acima referidos, que o dito comportamento de abandono pode assentar-se em diferenciadas motivações, sendo, na maioria das vezes, tênues e subjetivos os limites entre elas. Esta classificação deposita, via de regra, na “individualidade” de cada genitora o ato de abandonar. Tais relatos apesar de darem visibilidade às motivações para a entrega, pouco problematizam as condições sociais e psicológicas responsáveis por esse ato. Ao utilizar tal interpretação podemos, inadvertidamente, perder de vista a complexidade das dificuldades enfrentadas por uma coletividade, um grupo de pessoas com uma historia social construída em moldes semelhantes.
Na realidade e no contexto dessas mulheres-mães, abandonar, isto é, separar-se do filho, pode significar aceitar e assumir a impossibilidade de criá-lo. Questionamos se, por vezes, este procedimento, não poderia ser traduzido como um ato de amor, de proteção à vida?
Uma outra instituição que atravessa a “adoção-pronta” refere-se à instituição pobreza.
A Instituição Pobreza/ pobreza de
cidadania
Esse conceito/prática na história da política social, segundo Townsend[22], tem sido desenvolvido sobre três aspectos: o da subsistência, o das necessidades básicas e o da privação relativa. O da subsistência refere-se ao quanto uma família deve ganhar para satisfazer suas necessidades nutricionais e assim manter sua eficiência física. Esta definição considera basicamente as necessidades financeiras desprezando outras necessidades, caracterizando-se na base da política neoliberal por sua ênfase no indivíduo e na desimplicação com as reformas sociais. Inclui o eixo da lógica do salário mínimo que no Rio de Janeiro, hoje (2004) encontra-se em R$310,00 (trezentos e dez reais), aproximadamente 100 dólares.
A outra vertente, a das necessidades básicas, é uma extensão da noção de subsistência. Essa inclui, em sua definição, o conjunto de necessidades requeridas por uma comunidade. Considera a estrutura de facilidades e serviços universais e públicos com que uma comunidade pode contar, particularmente, na área da saúde e da educação. Apesar de mais abrangente que o a de subsistência, não leva em conta a relação da pobreza com a riqueza, isto é, a noção de desigualdade social. A terceira, a da pobreza relativa, amplia o leque de necessidades para o desenvolvimento e sua relação com a inserção social ao longo do tempo.
Em síntese, a pobreza, de um modo geral, tem sido considerada apenas com relação à distribuição de renda de uma determinada sociedade.
Escapando e para além dessas vertentes, utilizamos aqui uma outra concepção de pobreza, na qual, pobres não são simplesmente àqueles sujeitos, vítimas de uma forma ou de outra, de uma má distribuição de renda, e sim aqueles cujos recursos não lhes permitem cumprir com as demandas e comportamentos sociais que lhes são exigidos como cidadãos.
Recorrendo, então, às contribuições de Graffigna, consideramos neste trabalho que a pobreza é, sobretudo, pobreza de cidadania.
“... a pobreza de cidadania é aquela situação social na qual as pessoas não têm as condições de vida – material e imaterial – que lhes possibilite desempenhar regras, participar plenamente na vida econômica, política e social e entender os códigos culturais para integrar-se como membros de uma sociedade. A pobreza de cidadania é não pertencer a uma comunidade na qualidade de membros plenos, isto é, a exclusão social...”[23]
Assim, nessa ótica, a pobreza é percebida e tomada enquanto um problema social remetendo-nos, portanto, ao conceito de igualdade e justiça social. Nessa linha de pensamento puxamos dois dos inúmeros fios que produzem e potencializam, no mundo contemporâneo, a pobreza de cidadania: a mortalidade infantil e a distribuição de renda. Tomamos como referência os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), fruto de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com a Fundação João Pinheiro e o Instituto de Pesquisa Estatística Aplicada (IPEA).
A Mortalidade Infantil
Por mortalidade infantil considera-se o índice que revela a probabilidade de um bebê, nascido em determinada área da cidade, morrer antes de completar um ano.
Tomando por base os dados aferidos nos Índices de Desenvolvimento Humano apontamos, nos quadros a seguir, os resultados encontrados em bairros do município do Rio.
Quadro 4.
Mortalidade Infantil: Os “Cinco”
Menos
Numero de Ordem |
Bairro do Município do RJ |
Mortalidade Infantil |
01 |
Bairro Peixoto |
4,60 |
02 |
Jardim Botânico |
4,60 |
03 |
Leblon |
4,60 |
04 |
Campos Sales |
4,82 |
05 |
Méier |
4,82 |
Quadro 5.
Mortalidade Infantil: Os “Cinco”
Mais
Ordem |
Bairro do Município do RJ |
Mortalidade Infantil |
156 |
Rocinha |
41,18 |
155 |
Matadouro |
41,18 |
154 |
Manguinhos |
41,18 |
153 |
Maré |
40,62 |
152 |
Paciência |
38,82 |
A Rocinha[24] apresenta o maior índice de mortalidade infantil. Revelam os estudos que há uma relação direta entre os índices de mortalidade infantil e as condições de habitação. Apontam o baixo peso ao nascer, diretamente relacionado com a desnutrição materna, com o comportamento de risco durante a gestação e com a qualidade da atenção pré-natal às patologias do período de gestação, como um dos fatores de risco relevante para o óbito perinatal.
A
Distribuição de Renda
Fala-nos da relação entre pobreza e riqueza. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do Rio de Janeiro:
“ pobres são todos os moradores com renda mensal inferior a R$82,00. Essa, segundo o IPEA, é a quantia mínima essencial para garantir as necessidades básicas de um cidadão, levando em consideração as despesas com alimentação, vestiário, moradia, saúde e educação, entre outras. De acordo com o estudo, 700 mil cariocas vivem abaixo da linha de pobreza”.[25]
Quadro 6.
Distribuição de Renda: Os “Cinco” Mais
Ordem |
Bairro do Município do RJ |
Renda per capita em Reais |
O1 |
Lagoa |
2126,00 |
02 |
Gávea |
1743,00 |
03 |
São Conrado |
1713,00 |
04 |
Barra da Tijuca |
1694,00 |
05 |
Jardim Botânico |
1565,00 |
Quadro 7.
Distribuição de Renda: Os “Cinco”
Menos
Ordem |
Bairro do Município do RJ |
Renda per capita em Reais |
161 |
Santa Cruz (rural) |
93,00 |
160 |
Acari |
115,00 |
159 |
Complexo do Alemão |
128,00 |
158 |
Santa Cruz (norte) |
134,00 |
157 |
Condomínios |
141,00 |
Analisando, ainda que brevemente, os dados do RDH com relação à distribuição de renda, estes nos indicam que a pobreza econômica, um dos pilares da pobreza de cidadania, estende-se por bairros pouco providos pela rede de assistência e pelas regiões das ditas favelas como formas de organizações sociais. Tais modelos de ser e estar no mundo podem ser pensados como fruto e efeito de políticas públicas de inclusão e exclusão social.
Na maioria dos documentos analisados, a fala da mãe aparece já interpretada pelos operadores de direito, não se constituindo mais como uma fonte primária, o que não invalida a pesquisa e nos levanta ainda uma outra questão: Por que são tão silenciadas? Gilberti e al. nos esclarecem:
“... o discurso que fomenta a adoção universaliza sua eficácia, mas omite o caráter político daquilo que encobre. É utilizado o indiscutível benefício [enquanto possibilidade] da adoção para desestimular o pensamento crítico capaz de lembrar a existência das mulheres que entregam seus filhos e de suas histórias”.[26]
Trouxemos essa vertente, a voz atribuída às genitoras, como uma forma, um dispositivo de torná-las mais presentes, na medida em que essas (as vozes) são omitidas nos processos do judiciário.
Os estudos de Fávero et al.[27], no NCA, nos revelam que em 33,8% dos processos de destituição de pátrio poder analisados, as mães não foram nem contatadas pelas equipes do judiciário.Apresentam como hipótese que a ausência das genitoras nas vidas dessas crianças já era um dado real, na medida em que a situação de entrega já havia sido concretizada há algum tempo. Podemos assim pensar em casos de “adoções-prontas”. Sem desprezar ou desconsiderar esse argumento problematizamos, todavia, o lugar ocupado pelas mães, aqui, sob uma outra perspectiva: as histórias de vida.
Segundo Levy[28], a história social, a história de uma sociedade, de um grupo, de uma coletividade está sempre ligada à história dos indivíduos que constituem essa coletividade. Podemos, inclusive, afirma o autor, apreender o fato social histórico a partir do relato, argumento de um indivíduo que viveu essa história social.
Este constitui o princípio central da história de vida, metodologia de pesquisa utilizada tanto pela sociologia, pela psicologia ou mesmo pela psicossociologia que tem por finalidade: “dar legitimidade a pessoas que habitualmente não têm a possibilidade, o direito, de se inserir nos meios intelectuais para dizer o que para eles é a realidade...”.[29] Essa abordagem traz-nos uma outra visão dos acontecimentos, do cotidiano que, não a difundida por uma parte da população que diz deter a legitimidade de analisar e regular a vida dos indivíduos, impondo-nos uma certa leitura da sociedade, da sua história, de seu futuro e seu presente.
Desse modo utilizamos os discursos atribuídos às mães no ato de entrega como uma ferramenta de investigação e construção da história de uma sociedade, de uma coletividade. Tal percurso se justifica frente às semelhanças dos locutores/autores – mães pobres, desprovidas de redes de filiação social, desempregadas ou sub-empregadas e de baixa escolaridade – que entregam “espontaneamente” seus filhos em adoção-. Características também endossadas em outros estudos como:
“... o perfil predominante da mãe doadora é de uma ‘solteira’ de mais de 20 anos, migrante de outro Estado, de educação primária incompleta, com trabalho incerto como empregada doméstica, sem outras fontes maiores de sustento familiar, e que engravida de uma relação eventual sem compromisso estável ou arranjo domestico formado”.[30]
“... mulheres que [entregam seus filhos em adoção] pertencem ao setor mais desfavorecido, com baixos salários, com necessidades básicas insatisfeitas, mas essa dimensão é cruzada por variáveis como a extrema juventude, e o fato de serem migrantes”.[31]
“... é possível afirmar elas [as mães que doam] pertencem de fato, em sua grande maioria, aos segmentos empobrecidos e excluídos da sociedade, são jovens, solteiras, migrantes (ainda que não necessariamente), com filhos de pais diferentes, abandonadas por seus companheiros/namorados ou casos passageiros e que, sem acesso aos meios anti-conceptivos e ou contraceptivos, são obrigadas a manter uma gravidez indesejada”.[32]
Assim, os “relatos” de vida, de desespero e sofrimento transcritos abaixo, constituem-se em importantes vias de acesso à história de uma sociedade e nos possibilitam perceber o vínculo entre a história individual e a história coletiva, ou ainda, compreender que “... a relação entre as duas histórias é um produto da história e tem uma história...”[33]
“... os peticionários admitiram como empregada doméstica a srta N que trouxe em sua companhia a menor B. que contava dias de nascimento, subnutrida, doente e filha de pai ignorado. Dias após a admissibilidade da genitora de B., como doméstica, esta deixou-a aos cuidados daquela família, na certeza moral e fática de que eles dariam um amparo moral, educacional e material a referida menor...” (adoção- pronta. Processo de adoção simples de 1980)
“... mãe da criança doou ao casal de patrões, sua filha com menos de 30 dias de nascida, alegando não ter condições financeiras de criá-la...” (adoção-pronta. Processo de adoção simples de 1983)
“... a mãe solteira trabalha como doméstica na casa dos requerentes. (...) a mãe resolveu dar o filho para o casal por considerar essa a melhor providência para o futuro do filho. Vai conviver com pessoas que muito têm feito por ele...”(adoção-pronta, processo de adoção plena de 1987).
“... trabalho como empregada doméstica, moro em local alugado e as dificuldades são muitas. Por vezes não há dinheiro para comprar o leite para minha filha. Prefiro entregar minha filha para este casal (ex-patrões) que terá condições melhores que as minhas, para criar e educar a menina. (...) a genitora tem visitado a criança com certa freqüência...” (discursos da genitora em processo de adoção-pronta no ano de 1993. A adoção foi concedida em 5 meses).
Percebe-se nos relatos acima, nas histórias tornadas vivas, o sentimento de impotência dessas mulheres-mães que não encontram, nas redes estatais, apoio e referência. Assumem, ainda como seus, os discursos da desqualificação (‘não sei o que fazer’, ‘não trabalho’, ‘não tenho ninguém por mim’, ‘não tenho como ficar com ela’, ‘as dificuldades são muitas – não há dinheiro para o leite’) produzidos pelos saberes competentes, dentre eles a mídia e os especialistas.
Sintetizando...
A “adoção-pronta” no Município do Rio de Janeiro, junto à 1a. Vara da Infância e da Juventude, tem sido a forma mais usual de (re)parentalidade de crianças e jovens oriundos das classes sócio-econômicas menos favorecidas. Emerge, via de regra, do processo de exclusão social vivido por mulheres-mães desempregadas ou sub-empregadas, sem companheiro estável, que excluídas das redes de abrangência do Estado são colocadas à margem da sociedade de consumo e da assistência e proteção construindo e aumentando o contingente do que aqui chamamos de pobres de cidadania.
Pensar, nessa ótica, a afirmação da “adoção-pronta” pelos discursos atribuídos aos genitores ou mesmo aos especialistas deve considerar, necessariamente, os estudos dos analisadores sociais que produzem subjetividades e histórias de vida, não individuais ou identitárias como propõem determinados enfoques teóricos, mas sim, histórias coletivas, serializadas e coladas a uma condição social. Lembra-nos Orlandi[34] “o sujeito- de –direito não é uma entidade psicológica, ele é efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista” (p.51). Devemos, portanto problematizar e colocar em análise os discursos e as redes que tecem os fios de alguns processos de inclusão/filiação social.
Em ultima instância, como nos aponta Ayres[35] é preciso desconstruir mitos e discursos que incorporam à mãe pobre a subjetividade de incompetência e naturalizam a perda do poder familiar.
Sintetizando, podemos pensar, sob a ótica da rede de relações psicossociais, o ato de entrega dos filhos aos cuidados de terceiros, como um recurso de inclusão social acionado por genitores excluídos?
[2] Com o Código Civil de 2002 este conceito, pátrio poder ou poder paterno, foi substituído por poder familiar. Essa expressão equipara as responsabilidades de pai e mãe na educação dos filhos, afastando a conotação patriarcal Para maiores informações ver Novo Código Civil, Cap. V – Do poder Familiar. Entretanto, utilizamos aqui o termo pátrio poder pois era o que vigorava à época estudada.
[3] Programa criado pelo Governo do RJ através da lei estadual no.3499 de 8 de dezembro de 2000 que propõe remuneração a funcionários públicos que adotem crianças. Para maiores informações ver Diário Oficial do Estado do RJ no. 233 de 11 de dezembro de 2000 – parte I)
[4] Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social, vinculado ao Laboratório de Subjetividade e Política (LaSP) e desenvolvido no Departamento de Psicologia e Serviço de Psicologia Aplicada da UFF. Tem por finalidade estudar a gênese e as relações de saber–poder que atravessam as diferentes instituições presentes nos estabelecimentos que compõem as Políticas para a Infância e a Adolescência.
[5] Diniz, 1999.
[6] Diniz, 1999, p.13.
[7] Marques, 2000.
[8] Marques, 2000, p.32.
[9] Fávero, 2000.
[10] Dentre as formas de adoção-pronta, foram encontrados no período referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (1990-1994), três processos na modalidade de adoção por cônjuges.
[11] Nessa categoria, encontramos processos de requerentes que desejam adotar um bebê e ainda não o possuem.
[12] Mariano, 2003, p. 29.
[13] Cunha, 2001, p. 81.
[14] Santos, 1998, p. 2.
[15] Instituição aqui tomada segundo a Análise Institucional francesa, ou seja, práticas que tornadas naturais ganham estatuto de verdade. Nessa lógica a instituição é concreta pois é constituída de ações que podem ser interrogadas a partir da observação do cotidiano, dos rituais ou dos discursos. Ou ainda, uma forma histórica produzida e reproduzida pelas práticas sociais que, em seu processo de hegemonização, produzem um esquecimento desta própria gênese, redundando em generalização.
[16] Boswell, 1993, p. 28.
[17] Ferreyra, 2001, p. 305.
[18] Moro, 2001, p. 243.
[19] Boswell, 1993, p. 292.
[20] Boswell, 1993, p. 34.
[21] Boswell, 1993.
[22] Townsend, 1993.
[23] Graffigna, 1999, p. 41.
[24] Maior “favela urbana” do estado do Rio de Janeiro que, em 1992, face às suas abrangências foi considerada oficialmente como bairro. Ver www.rocinha.com.br.
[25] Retratos do Rio, O Globo, 19/05/01, p.3. O Jornal “O GLOBO” publicou, semanalmente, no período de abril a maio de 2001, no encarte Retratos do Rio, parte dos dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
[26] Gilberti et al., 1998, p. 3.
[27] Fávero et al., 2000.
[28] Levy, 1995.
[29] Levy, 1995, p. 10.
[30] Freston & Freston, 1994, p. 6.
[31] Gilberti et al., op.cit., p. 2.
[32] Santos, 1998, p. 3.
[33] Levy, 1995, p. 9.
[34] Orlandi, 2002.
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Ficha bibliográfica: