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O JUÍZO DOS ÓRFÃOS E A TUTELA DE MENORES
José Carlos da Silva Cardozo
Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
CAPES/MEC
jcs.cardozo@gmail.com
O Juízo dos Órfãos e a tutela de menores nos anos iniciais do século XX (Resumo)
O Juizado de Órfãos de Porto Alegre foi uma importante instituição pública que contribuiu para a regularização social das famílias porto-alegrenses, que passavam por alguma situação de desagregação familiar, envolvendo menores nos anos iniciais do século XX. A partir dos processos de Tutela iniciados no 3º Cartório de Porto Alegre, entre os anos de 1902 a 1925, afirma-se que os valores sociais e morais possuíam importância nas decisões e desfechos para se tutelar um menor.
Palavras chave: Porto Alegre, Juízo dos Órfãos, Menor, Tutela.The Judge of Orphans and guardianship of minors in the early years of the twentieth century (Abstract)
The Judge of Orphans of Porto Alegre was an important public institution that has contributed to the social adjustment of families porto-alegrense which passed by a situation of family breakdown involving minors in the early years of twentieth century. From the Guardianship processes started in the 3rd Notary Office in Porto Alegre, between the years 1902 to 1925, will be presented to the social and moral values had importance in the decisions and outcomes to protect a minor.
Key words: Porto Alegre, judge of the orphans, minor, guardianship.
José Antônio de Figueiredo Filho,
farmacêutico, residente à Rua Garibaldi, número 22, em Porto Alegre, no dia 18
de agosto de 1916, deu entrada no 3º Cartório do Juizado Distrital da Vara de
Órfãos de Porto Alegre um pedido para tutelar uma menina. Afirmando que a menor[1] Virginia Cardozo de Lima[2],
de 13 anos de idade incompletos, órfã de pai e mãe, trabalhando de aluguel em
sua casa há quase um mês, o procurou declarando, “categoricamente”, que não
desejava mais voltar para a casa onde mora por lá ser maltratada por seus
patrões. A menor possui como parentes apenas um irmão de 11 anos de idade e
duas tias de “vida má” que lhe aconselharam a procurar “uma casa de boa família
para nela servir”.
O Juiz do caso, Sinval Saldanha, com base nas informações prestadas por uma pessoa íntegra, como um farmacêutico, em apenas 6 dias defere a solicitação de tutela a favor de José Figueiredo Filho, que, em 24 de agosto de 1916, assina o Termo de Tutela e Compromisso da menor Virginia Cardozo de Lima.
Essa rapidez deve-se ao não esclarecimento dos fatos apresentados pelo suplicante por meio da intimação dos envolvidos no caso: os patrões da menina, que não são identificados no processo, ou das tias, de “vida má”, ou mesmo da menor para ratificar ou não as afirmações de José. Isso ocorreu em função de o suplicante a tutor ter uma profissão declarada, reconhecida e residir em local fixo, pois nem mesmo o Curador Geral[3], quando solicitada sua vista[4] sobre o caso, pediu maiores detalhes a respeito das alegações, escrevendo, de forma rápida, as iniciais F.J. (Faça Justiça).
Que sociedade era essa em que o simples fato de um suplicante a tutor ter uma profissão íntegra ser pretexto marcante de confiança para receber a guarda de uma criança e essa tutela ser aceita sem maiores explicações das partes envolvidas?
O cenário
Os anos iniciais do século XX, para o Brasil, marcaram um período em que se consolidou o novo regime político-administrativo no país e se incorporou os ideais europeus de modernização pelo Estado e pela sociedade. Contudo, este não foi um período de esperança e felicidade para a grande maioria da população devido às políticas de moralização e higienização promovidas pelo Estado e pela burguesia. Sofreu-se bruscamente a força do Estado na sua ambição de tornar o país moderno o mais rápido possível como os do hemisfério norte.
O fim da escravidão, juntamente com migrações e imigrações, deu ao novo regime uma nova dificuldade ocasionada pelo aumento populacional nas cidades. Esses novos moradores, saídos das antigas senzalas e das choupanas do interior, juntamente com os imigrantes vindos de outras nações, chegavam às cidades em busca de melhores condições de trabalho e moradia. Desses, muitos não conseguiram alcançar seus anseios nos centros urbanos, sendo considerados pelo Estado como figuras ameaçadoras da ordem social. Assim, a “massa de ‘cidadãos’ pobre e perigosa, viciosa, a qual emergia da multidão de casas térreas, de estalagens e cortiços, de casas de cômodo, de palafitas e mocambos que eram a vastidão da paisagem das cidades herdadas do Império”[5].
Esses pobres começaram a receber especial atenção do Estado, mas não visando promover a solução para os problemas desses desvalidos e sim os afastando progressivamente dos centros urbanos. Cobrando altos valores pelos aluguéis, exigências sanitárias de alto custo e altos impostos, a sociedade burguesa e o Estado dificultaram o habitar dessa população nessas localidades, levando-os a se inserirem em locais periféricos a estes centros.
Os estudos de Margareth Bakos[6], em Porto Alegre, mostram esse processo, indicando que o morar muito custoso foi uma das soluções encontradas pelo Estado para afastar os pobres para longe do perímetro urbano, levando-os a residir nas periferias da cidade, onde não eram cobrados impostos ou estes eram mais acessíveis. Clarice Nunes, sobre o Rio de Janeiro, refere, em relação aos pobres, que
a presença incômoda de pobres e miseráveis acentuou-se no centro da cidade com o crescimento populacional e forçou, ainda nas décadas anteriores, o seu progressivo deslocamento para as zonas suburbana e rural. Este deslocamento, fruto de uma política de higienização do espaço urbano com suas obras de saneamento básico e demolição dos cortiços, não foi suficiente para ‘limpar’ a pobreza da cidade. Permitiu, no entanto, redimensioná-la[7].
O Estado aplicava as mesmas estratégias empregadas pelo exemplo maior de cidade moderna a ser seguida, a cidade de Paris, aonde os pobres foram aos poucos tendo que se mudar para locais que não eram privilegiados, segundo a burguesia, habitando em bairros que aos poucos foram se tornando bairros operários ou mesmo favelas. Marcando uma política de modificação centrada não somente na reorganização espacial do urbano, mas também nas posições dentro do status social.
A elite preocupava-se em influenciar a consciência popular, até mesmo daqueles que habitavam lugares afastados dos centros urbanos. Todos deveriam ter comportamentos dignos de cidadãos urbanos, tentando evitar que a população se direcionasse para os locais de jogos e prostituição, pois os jogos de azar eram mal vistos, os dirigentes sociais ameaçavam a formação dos cidadãos disciplinados e a prostituição, a integridade da família e da sociedade.
A família nesse período foi então, como na Europa, o centro das atenções do Estado. Ela era referida pelos setores privilegiados da sociedade como sendo a protetora dos valores da moral e dos bons costumes.
A família que se desejava nos anos iniciais do século XX, pela República brasileira, era a família burguesa. Quando referimos esse tipo de arranjo familiar como modelo social, compartilhamos da interpretação de Maria Ângela D’Incao ao afirma que família burguesa era
... aquela que nasceu com a burguesia e vai em seguida, com o tempo, caracterizando-se por um certo conjunto de valores, que são o amor entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial e do pai como um ser responsável pelo bem-estar e educação dos filhos, presença do amor pelas crianças e a compreensão delas como seres em formação e necessitados, nas suas dificuldades de crescimento, de amor e compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situação o distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade circundante, circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica privada em oposição a área pública; esta última é sentida pela família como sendo cada vez mais hostil e estranha, não digna de confiança[8].
Ao longo desse período, os grupos populares e médios iam tentando se moldar de acordo com os parâmetros dessa família padronizada e elitizada para poder usufruir do respeito e da valorização atribuídos a ela.
O Juizado de Órfãos[9] de Porto Alegre é um exemplo de como o Poder Judiciário estava a intervir na uniformização da conduta familiar e, principalmente, preocupado com a formação do futuro cidadão – o menor. O Juízo dos Órfãos foi, desde o período colonial até o início da República, umas das instituições mais importantes para a regularização da família e da criança, desempenhando ao longo do tempo atividades de proteção ao menor. Cuidou, num primeiro momento, dos menores da elite nas questões envolvendo suas heranças; da relação entre os menores e seus familiares ou tutores, como também de sua renda e de seus bens para depois, com a elaboração de políticas reguladoras para a nova sociedade, direcionar uma vigilância distinta para com o cuidado (abandono, saúde, educação etc.) da criança pobre. O Estado tornou esses indivíduos as figuras centrais no espaço familiar, pois as crianças seriam os futuros cidadãos e cidadãs da República brasileira. O Juizado de Órfãos, dessa forma, era um órgão essencial para se encaminhar e solucionar questões quanto ao abandono de crianças e marginalização destas.
Preocupado com o universo infantil, o Juízo dos Órfãos mediou as ações praticadas pela família, pois essa era considerada como espaço gestor dos padrões e regras de comportamento social.
Assim, a assistência à vida infantil incluía uma constante vigilância sobre os atos de seus pais. Um deslize, uma ‘falta de moral’ ou um desemprego eram suficientes para a ‘mão protetora do Estado’ interferir na vida privada e entregar a posse do menor a outra pessoa. Quando o juiz ‘comprovava’ as denúncias feitas por terceiros, ele poderia retirar dos pais a posse da criança, nomeando-lhe um tutor, ou até mesmo destituir, definitivamente os pais do pátrio poder[10].
Dessa forma, a instituição da Tutela foi um dos instrumentos empregados por este órgão jurídico para regulamentar a família.
Nesta sociedade que desejava ser moderna como as europeias havia
... toda uma ideia de adestramento dos instintos naturais e de moldagem de corpos e mentes a uma nova ordem que se impõe. Este princípio converte, sob certo aspecto, todo ‘homem novo’ a uma situação de criança: ele é alguém que se intenta conformar as habilidades, inculcar valores, coibir comportamentos e treinar segundo um parâmetro desejado. Nesse raciocínio, quanto mais cedo este processo se iniciasse, maior a probabilidade de êxito teria na obtenção de um ‘tipo ideal’. Não é de espantar, pois, que esta estratégia formativa se voltasse para a infância[11].
Assim, a família recebeu atenção, principalmente, para seus membros mais jovens, os quais possuíam um Juizado específico para tratar das questões relacionadas a estes.
Os processos do Juízo dos Órfãos
A primeira pesquisa que temos conhecimento que se direcionou sobre este órgão jurídico foi a da antropóloga Cláudia Fonseca[12], que buscou apresentar a circulação das crianças, no início do século XX, por várias casas/famílias, demonstrando que a prática, hoje tão corriqueira, nas famílias populares, de um terceiro (parente consanguíneo ou não) cuidar de um menor, já era recorrente no início deste século.
Neste estudo, Cláudia Fonseca investigou 149 processos de “Apreensão de Menores” no município de Porto Alegre. Embora o livro de Cláudia Fonseca, em que estava incluso este trabalho, tenha sido publicado somente em 1995, primeira edição; este estudo já havia sido publicado, com poucas alterações, em 1989. Dessa forma, faz mais de 20 anos que foi publicado um estudo que utilizou o Juizado dos Órfãos de Porto Alegre como fonte para pesquisar a situação das crianças nesse município[13].
Estudos posteriores, em outras localidades, direcionaram sua visão para os processos de Tutela que igualmente eram produzidos pelo Juizado de Órfãos. A Tutela era um encargo conferido pelo Juiz de Órfãos a uma pessoa (tutor) para que esta gerenciasse os bens e cuidasse da integridade física do menor[14], representando-o tanto em Juízo como fora desse. Isso ocorria quando uma criança era órfã de pai, ou quando este era ausente; o Juiz de Órfãos nomeava um tutor para cuidar da criança, exceto quando não houvesse algum nome indicado em testamento. Acontecendo mesmo que o menor tivesse ou vivesse com a mãe, pois esta era, geralmente, considerada impedida de assumir a responsabilidade jurídica de seus filhos.
A grande maioria dos estudos que utilizou essa fonte judicial (os processos de tutela) se deteve mais nas mudanças promovidas pela Lei do Ventre Livre de 1871 até a Abolição em 1888[15]. Esses trabalhos apresentaram as estratégias empregadas pelos senhores de escravos na manutenção dos serviços, tanto os praticados no âmbito do público, quanto àqueles realizados no âmbito do doméstico, através da tutela dos filhos das escravas.
Essas pesquisas têm uma problemática muito clara, a qual facilita o trabalho para investigações em outras localidades brasileiras que tiveram esse Juizado no período de 1871 a 1888. Mas nossa pretensão é justamente avançar no tempo na busca por novos fragmentos da História. Acreditamos que nosso estudo possa apresentar uma nova possibilidade de utilização desta fonte para outras questões decorrentes dos anos iniciais do século XX, para poder compreender como esta instituição judiciária influenciava a organização das famílias e suas práticas sociais, bem como zelava pela educação e saúde dos menores, dentro do período republicano, período este de grandes mudanças na sociedade brasileira.
Sabemos em relação aos processos de tutela que esses “são uma excelente fonte qualitativa porque permitem recuperar histórias de famílias pobres, principalmente em épocas de epidemias, quando os órfãos aumentam”[16].
Considerando o período de análise, verificamos várias modificações na sociedade brasileira, que foram incorporadas pelas instituições públicas como o Judiciário, com o foco de regular a sociedade frente aos novos padrões sociais.
O 3ª Cartório do Juizado Distrital da
Vara de Órfãos de Porto Alegre
O Juizado de Órfãos de Porto Alegre, no período de análise, era dividido em três Cartórios que, posteriormente, receberam o nome de Varas de Família e Sucessão do Município de Porto Alegre. Neste texto analisaremos as informações contidas nos processos abertos no 3º Cartório ou 3ª Vara do Município de Porto Alegre, correspondendo a 167 processos de tutela do total de 823 processos[17] para os anos de 1900 a 1927, ou seja, 20% do total que está depositado no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), como aponta a figura 1 abaixo.
Figura 1. Processos por Vara. |
Os dados analisados nessa fonte referem-se ao período de 1902 a 1925[18] e nos revelam uma preferência pelos menores do sexo feminino (figura 2), pois no total de 267 menores tutelados nesse período, 59% eram meninas. Esse grande número de meninas acredita-se que tenha ocorrido pela necessidade da proteção da integridade moral das menores, perpetuada pela virgindade dessas, ou também por elas ajudarem no trabalho doméstico. Pois a moral vigente na época ditava que as mulheres, ou meninas, deviam ficar “... resguardadas em casa, se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua” [19]. Embora essa não fosse a prática fiel, tendo em vista que muitas mulheres trabalhavam fora do espaço privado, a casa, o suplicante a tutor valorizava essa moralidade em suas petições.
Figura 2. Sexo
dos Menores. |
A família, dentro desse novo ideal, se tornou um dos alvos da regularização social. Ela deveria ser: nuclear, conjugal, monogâmica, buscando a disciplinaridade sexual[20]. Um de seus membros, que deveria receber atenção redobrada, era a mulher, pois, como Sandra Pesavento afirma, as mulheres são vistas pela sociedade no início do século XX sendo
... basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade inquietante, a marcar, pela sua natureza mutável um risco permanente para a sociedade da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu poder de ação, sedução, autodeterminação, o que mostrava que, não sendo postas sobre controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem social[21].
A figura 3 apresenta que essas concepções sociais sobre as mulheres se refletiam no Juizado de Órfãos, pois apenas 17% dos tutores eram do sexo feminino, ou seja dos 171 tutores que foram arrolados por este Cartório no período, apenas 29 eram mulheres, das quais a grande maioria eram avós, mulheres já de idade que corriam menos riscos de caírem ou conduzirem um menor para o lado da imoralidade, do desapego ao trabalho ou do descaso com a educação.
Figura 3. Sexo
dos Tutores. |
Ainda nesta figura 3 pode-se perceber que havia certa difusão da importância da figura masculina no cuidado para com o menor, principalmente se este fosse uma menina, para protegê-la. Dessa forma, os homens teriam um respaldo maior para conseguir a tutela de um menor, pois a grande maioria dos processos foi iniciada por indivíduos do sexo masculino, os quais tiveram a maioria de seus pedidos deferidos pelo Judiciário.
A regulamentação do inciso 10º do Novo Roteiro dos Órphãos de 1903 diz: “Perdem o direito à Tutela as mães e avós, deixando de viver honestamente, ou casando-se; e não podem reavê-la ainda que viúvem outra vez (Ord. liv. 4º, tite. 102 § 4º)[22]”. O Código Civil Brasileiro, que começa a vigorar em 1917 substituindo as Ordenações Filipinas como código jurídico, no artigo 395, inciso 3º, também coloca em linha tênue o comportamento dos pais ao apresentar que se perde o direito ao pátrio poder aquele: “que praticar atos contrários a moral e aos bons costumes”.
Dessa forma, podemos perceber que as mulheres, dentro da legislação que regulamentava a Tutela dos menores, estavam em constante vigilância, pois se estas apresentassem um comportamento desviante segundo concepções de moralidade vigente na época, ou mesmo se contraíssem novo casamento perderiam a Tutela do menor, mesmo que este fosse seu filho.
Um caso que podemos tomar como exemplo de atitude por parte do Juizado de Órfãos é o processo da menor Alice[23] de 14 anos de idade, filha natural de Marcolina da Silva.
Este processo foi encaminhado ao Juizado de Órfãos por Balbina Brühl de Albuquerque, viúva, que denunciava que a mãe da menor Alice não tinha condições “nenhuma” para cuidar da referida menor. A senhora Balbina pede que a mãe da menor seja ouvida, pois ela pode confirmar suas declarações. Quando essa foi intimada afirmou não se opor que sua filha fosse tutelada por esta senhora. Entretanto, o Juiz João Soares não dá o cargo de tutor a Balbina Brühl e indica o senhor Alfredo Melo, sujeito o qual a mãe não concorda que seja tutor de sua filha, apresentando inclusive a reclamação no processo. Mas o Juiz, no mesmo dia, responde afirmando que “independente da carta acima [pedido de destituição do tutor], intime o tutor nomeado para prestar o compromisso".
Podemos perceber que por causa da mãe não ter condições “nenhuma”, sejam elas quais forem, pois o processo não as apresenta, o Juiz não considerou sua vontade no momento de deferir a tutela de sua filha a um terceiro, mesmo que este não pertencesse ao circulo familiar da referida menor.
A figura 4 nos apresenta justamente que casos como da menor Alice, em que um terceiro que não tinha qualquer relação com o menor recebesse a tutela, não eram a exceção, pois em 51% dos casos os tutores não possuíam qualquer vínculo seja consanguíneo (pai, mãe, avós, tios, irmãos etc.), de ofício (patrão) ou mesmo espiritual (padrinho ou madrinha) com o seu tutelado.
Figura 4. Relação
com o Menor. |
Outros tantos processos foram iniciados porque a mãe contraiu segundas núpcias. O processo da menor Ernestina de Azambuja Moré[24] é um desses que exemplificam muitos outros casos que transcorreram pelo Juizado de Órfãos de Porto Alegre neste período. Nesse processo sua mãe Arabella Bittencourt de Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira que este dê um tutor para sua filha, pois ela, a mãe, contraiu segundas núpcias e dessa forma perdeu o pátrio poder sobre a referida filha. Como em outros casos, a senhora Arabella indica um familiar para, dessa forma, não perder contato com a menor e nem esta a referência familiar; indicando seu irmão, casado, Octavio Bittencourt de Azambuja. Uma estratégia legal encontrada pela mãe para não perder sua filha para outra pessoa.
Mas o caso da menor Ernestina, em que há a indicação do tutor e este recebe a tutoria, não era a regra, pois a figura 5 indica que apenas 1% dos tutores que receberam a guarda de um menor foi indicado pelos suplicantes e a grande maioria destes, 94% não possuíam indicação, ou seja, a maioria dos aspirantes ao cargo de tutor entrou pessoalmente com a solicitação da tutela para si, ou mesmo o Juiz, com a autoridade que o revestia, indicava o tutor. De toda a forma, o Juiz tinha total autonomia para investir uma pessoa com o cargo tutor, mesmo que isso viesse a romper com os laços familiares do menor, como o caso da menor Alice, visto anteriormente, em que um terceiro recebeu sua guarda.
Figura 5. Tutor
Indicado. |
A figura 6 nos apresenta a idade dos menores tutelados e essas informações evidenciam o que Silvia Arend já constatou para as famílias dos populares porto-alegrenses do início do século XX, pois “para os populares, os filhos [ou os menores tutelados], após certa idade (em torno de 7 anos), deixavam de ser ‘uma boca a mais’ para se tornar mão-de-obra”[25], podendo contribuir na renda familiar, assim explicando, um pouco, os motivos de as maiores incidências de tutelas estarem atribuídas aos menores com 13 e 15 anos de idade.
Figura 6. Idade
dos Menores. |
A maior parte dos processos foi iniciada devido ao falecimento do pai ou da mãe ou mesmo pelo menor não ter qualquer um de seus progenitores vivos (figura 7), fazendo-se necessário um adulto legalmente constituído para ser responsável legal por esse menor, “em juízo ou fora dele”, até esse completar a maior idade, quando cessa-se a autoridade e a responsabilidade legal sobre um menor, consanguíneo ou não.
Figura 7. Motivos
do pedido de tutela. |
Isso também se reflete na abertura dos processos estarem concentrados nos anos de 1923 a 1925, ou seja, 42% dos processos abertos nesse Cartório se centralizam nesses anos que, não por acaso, foram os anos posteriores à Gripe Espanhola que assolou o Estado do Rio Grande do Sul em finais do ano 1918, provocando um grande número de órfãos.
Conclusão
Temos muito que aprofundar nesta temática, mas a partir dos dados apresentados podemos observar que ocorreu, sim, um reflexo dos valores cultivados pela elite dirigente nos processos de tutela, bem como, uma forte influência masculina na legislação que regulava as questões dos menores. Este último fato foi somente rompido em 1962, com o artigo 380 do Código Civil, o qual colocou marido e mulher em termos iguais quanto ao pátrio poder e a partir do qual a viúva recasada não perderia mais o pátrio poder de seus filhos de casamentos anteriores.
Além disso, verificamos que as menores do sexo feminino possivelmente eram mais tuteladas do que os do sexo masculino em função da necessidade moral de proteção da mulher e por ela poder contribuir nos afazeres domésticos. Os homens, por não receberem tanta vigilância legal quanto às mulheres sobre os seus procedimentos, acabavam com maior frequência revestidos do cargo de tutor de um menor. O homem não era avaliado quanto a sua conduta moral e sim se este era trabalhador, dado aos vícios (jogos, bebedeiras etc.), ou se tinha lugar fixo de moradia. Já a mulher, por “viver desonestamente”, seja o que isso significasse no período, pois o termo é amplo podendo representar desde a prostituta até mesmo a simples mulher que trabalhava fora do âmbito privado, poderia perder a guarda de um menor.
O Juizado Distrital da Vara de Órfãos de Porto Alegre, dessa forma, foi de grande valor para o Estado organizar as famílias que passavam por alguma situação de desagregação familiar ou mesmo nas composições de novas estruturas familiares, já que mais da metade dos tutores não possuía vínculo com os menores e que esse Juízo, nas épocas de epidemia ou não, cuidou para que os menores tivessem um responsável legal sobre suas vidas e seus atos.
[2] Processo número 623 de 1916 do APERS.
[3] Promotor Público do Juízo dos Órfãos.
[4] Ato de falar ou tomar ciência do conteúdo de um processo.
[5] Marins, 1998, p. 133.
[6] Bakos, 1988 e Bakos, 1996.
[7] Nunes, 1994, p. 183.
[8] D’Incao, 1989, p. 10-1.
[9] O termo órfão não deve ser entendido estritamente, pois poderia representar menores órfãos de pai e mãe, bem como os “órfãos de pais vivos”, ou seja, representava igualmente aqueles que tinham seus progenitores vivos.
[10] Azevedo, 1995, p. 107.
[11] Pesavento, 1995, p. 191.
[12] Fonseca, 2006.
[13] Cláudia Fonseca publicou em vários períodos os avanços de suas pesquisas baseadas nessa fonte documental; em 1989 o artigo - Pais e Filhos na família popular; em 1995 o livro – Caminhos da Adoção, que teve sua terceira edição em 2006, e, por fim, em 2000 o artigo – Ser mulher, mãe e pobre.
[14] No período compreendido nesse texto, o início do século XX, o termo menor referia-se aos indivíduos com até 21 anos de idade, além de, “na passagem do século, menor deixou de ser uma palavra associada [somente] à idade, quando se queria definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei, para designar principalmente as crianças pobres abandonadas ou que incorriam em delitos” (LONDOÑO, 1998, p. 142), assim, além de representar indivíduos com até 21 anos de idade, a maioridade penal, esse termo ganhou um sentido pejorativo como confirmado nos estudos de Adriana Vianna (1999).
[15] Alguns pesquisadores já utilizaram esse tipo de processo como fonte primária em seus estudos acadêmicos como Gislane Campos Azevedo (1995), que embora afirme na introdução de seu trabalho e nas datas limites da pesquisa, 1871 e 1917, não se deter nessa problemática, não consegue se desvencilhar dela fazendo apenas pequenas incursões pelo século XX; Anna Gicelle Allaniz (1997); Luciana Araújo Pinheiro (2003); Maria Aparecida Papali (2003); Arethuza Helena Zero (2004) e Heloísa Maria Teixeira (2006).
[16] Samara, 2007, p. 113.
[17] É importante salientar que há a grande possibilidade de inúmeros outros casos em condições semelhantes a da instituição da Tutela, atribuída pelo Juízo dos Órfãos, não ter chegado ao conhecimento das autoridades; fato que nos apresenta uma pequena amostra da situação das crianças que passavam por alguma desestruturação familiar.
[18] 1902 é o ano de início dos processos que estão depositados no APERS e 1925 marca o fim destes já que não há registros da abertura de processos posterior a essa data.
[19] Fonseca, 2000, p. 517.
[20] Costa, 2004.
[21] Pesavento, 2008, p. 12.
[22] As citações foram transcritas respeitando-se a pontuação e a gramática original, mas atualizou-se a ortografia.
[23] Processo número 630 de 1916 do APERS.
[24] Processo número 611 de 1915 do APERS.
Referências Documentais
Impressa
Novo roteiro dos orphãos: ou guia pratica do processo orphanologico no Brazil : fundamentado na legislação respectiva, e illustrado pela lição dos praxistas, contendo muitas disposições novas a aréstos dos tribunaes, até ao presente, com o formulario de todos os processos. 3ª edição. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903. 1 p.l., [v]-vi, 276p. Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS.
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Manuscrita
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APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante 121G, autos 650-976. Caixa 004.1838. Data limite: 01/01/1878-31/12/1919.
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Edición electrónica del texto realizada por Beatriz San Román Sobrino.
Ficha bibliográfica: