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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIV, núm. 331 (87), 1 de agosto de 2010
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

MARECHAL HERMES E AS (DES) CONHECIDAS ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL: O PARADOXO DA VITRINE NÃO-VISTA

Nelson da Nóbrega Fernandes
Universidade Federal Fluminense
nobregat@terra.com.br

Alfredo César Tavares de Oliveira
Secretaria Estadual de Educação do  Rio de Janeiro
alfcesar@uol.com.br

Marechal Hermes e as (des) conhecidas origens da habitação social no Brasil: o paradoxo da vitrine não-vista (Resumo)

Nos trinta anos que antecederam a 1ª Guerra Mundial observa-se o início da intervenção do Estado na questão da habitação. Primeiro, na Europa, e logo, na América do Sul, o fracasso das soluções liberais forçou medidas intervencionistas como a regulação de alugueis e, especialmente, a produção estatal de casas populares. Contudo, na visão consagrada no Brasil, somente após 1930, com Getúlio Vargas, é que o Estado passou a intervir diretamente na questão produzindo conjuntos habitacionais, pois antes o regime liberal da República Velha vetou permanentemente tal solução. Este trabalho faz uma revisão deste paradigma, analisa suas origens e persistências, através do reconhecimento da construção de vilas proletárias, no Rio de Janeiro, pelo governo do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), e propõe que a maior delas - que aqui é pensada como uma vitrine não-vista -, seja tombada como marco histórico da habitação social no Brasil.

Palavras chave: habitação social, Marechal Hermes, Rio de Janeiro.

Marechal Hermes and the (un) known origins of the social housings in Brazil: the paradox of the unseen showcase (Abstract)

The State intervention related to housing issues began in the thirty years prior to the World War I. First, in Europe, and soon in South America, the failure of liberal solutions forced the State do adopt interventionist measures such as rent regulation and, specially, the building of popular houses. However, according to the traditional approach in Brazil, it was only after 1930, by Getúlio Vargas’ government, that the State began to directly intervene by building housing estates. This solution had been strongly refused by the Old Republic’s liberal regimen. This research reviews this paradigm; analyses its origins and persistence by recognizing the construction of proletarian villages in Rio de Janeiro by Marechal Hermes da Fonseca’s government (1910-1914); and suggests the largest of such villages – which is considered here as an unseen showcase – to be put under government trust for being a historical landmark of the social housing in Brazil.

Keywords: social housing, Marechal Hermes, Rio de Janeiro.

Este trabalho é parte de estudos mais amplos sob a evolução urbana do Rio de Janeiro, que tem entre suas hipóteses a idéia de que o chamado subúrbio carioca abrigou, ao longo de cento e cinqüenta anos de urbanização, diversos projetos, experiências e espaços, originais e mesmo paradigmáticos para outras cidades e para a urbanização da sociedade brasileira, o que se explica essencialmente por sua geografia: terras abundantes nas cercanias da capital e cidade mais importante do país até meados do século XX.  Assim, fazendo parte do principal território do governo central e pólo da economia nacional, é compreensível que muitas das experiências originais que modernizaram o país tenham criado suas primeiras raízes nas terras fartas e acessíveis do subúrbio carioca.

Estudamos a produção do espaço urbano moderno no subúrbio carioca através da produção dos espaços de instituições e de praticas inovadoras, tanto hegemônicas quanto populares, que ali se localizaram, se integraram e se desenvolveram. Já mostramos como esses bairros do Rio de Janeiro estão nas origens de uma das mais emblemáticas instituições culturais do Brasil moderno: as escolas de samba (Fernandes. 2001). Tentaremos agora fazer o mesmo com a habitação social, lembrando a este colóquio que o subúrbio carioca, datando de meados do século XIX, é uma das áreas urbanas modernas mais antigas do país, mais ou menos contemporânea ao subúrbio ferroviário de grandes cidades dos países do Norte; seu tecido contém diferentes camadas de urbanização brasileira, e nos termos de Milton Santos, é uma formidável “acumulação desigual de tempos”, uma mina a espera de muitos estudos e revelações.

As vilas de Hermes e as origens da habitação social no Brasil

Além de designar o militar, oitavo presidente eleito da república brasileira, Marechal Hermes é também o nome de um bairro do Rio de Janeiro, cuja origem está em uma das três vilas proletárias que foram idealizadas e parcialmente construídas durante a sua presidência (1910-1914), quando aconteceu o que pode ser reconhecido como a primeira intervenção federal na questão da habitação no Brasil.

Começaremos observando aquela vila que Hermes inaugurou em 1913, ao lado do Jardim Botânico, na Gávea, no que era então o limite da periferia urbana no setor sul da cidade, densamente ocupado por operários associados à presença de três grandes fábricas têxteis -  Corcovado, Carioca  e São Felix. Hermes achou  por bem batizar esta primeira vila proletária como o nome de sua recém falecida esposa, Orsina da Fonseca.

A intervenção de Hermes procurava marcar três pontos cardeais da cidade. Assim, outra Vila Proletária foi anunciada para o que era então a periferia do norte da cidade, em Manguinhos (Brazil Ferrocarril, março de 1911, nº 15, ano II), próximo ao ex-imperial bairro de São Cristóvão e ao porto moderno recém-inaugurado, em uma zona da cidade que estava então em franca industrialização, servida por bondes e pelas estradas de ferro Leopoldina, Auxiliar e Rio D’Ouro. A localização desta segunda vila proletária revela a busca de associar moradia e trabalho com acessibilidade, mas não se tem noticia que Hermes tenha erguido uma parede em Manguinhos. Contudo, como um dos fios invisíveis que ligam Hermes a Vargas na história da habitação social no Brasil – aspecto que será desenvolvido mais adiante-, é possível que tenha sido nestes mesmos terrenos que Vargas construiu, no princípio da década de 30, um dos seus primeiros conjuntos habitacionais, anterior à fase dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), erguidos nos anos 1940 e 1950.

O terceiro projeto vislumbrado por Hermes foi implantado na periferia oeste da cidade, às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil, em terrenos vizinhos à Vila Militar. Para a época, e mesmo hoje, foi um projeto grandioso, um bairro idealizado para 5000 pessoas, ou seja, de dimensões equivalentes aos maiores conjuntos dos IAPs construídos 30 anos depois. Ao ver este projeto de habitação social, com escolas, hospitais, teatro, escola técnica, enfim um grande bairro planejado como até então nunca se havia visto, Oliveira (2009) apresentou a instigante hipótese de que a Vila Proletária Marechal Hermes projetava uma espécie de “vitrine”, de marca na paisagem de um projeto político, dos compromissos de seu idealizador para com os grupos proletários que o apoiavam. Embora até hoje seja gritante o contraste entres as morfologias urbanas do bairro de Marechal Hermes e a da maioria dos bairros do subúrbio carioca, - a primeira planejada pelo Estado, monumental, com todos os serviços, inclusive cinema e teatro; a segunda, liberal, medíocre, feia e desorganizada, obra de descuidados loteamentos, da especulação de particulares e da omissão da prefeitura -, este bairro singular é quase desconhecido da literatura urbana em geral é da habitação social, no Rio de Janeiro e no Brasil. Felizmente, seus imponentes sobrados, suas espaçosas ruas sombreadas pelos verdes e generosos oitis, foram magistralmente captadas pelas lentes de Carlos Diegues  e podemos vê-los em seu belo filme “Chuvas de Verão” (1978).

Há um persistente desconhecimento, quase um silêncio, sobre primeira intervenção federal na habitação durante o governo do Marechal Hermes. Silêncio que se revela e se atualiza ainda  mais no que é uma das mais importantes obras já escrita sobre “as origens da habitação social no Brasil”, na qual, Bonduki (2004, p. 71), em primeiro lugar, ignora as vilas de Hermes para registrar iniciativas menores, como as 105 unidades habitacionais da rua Salvador de Sá, construídas em 1906, por Pereira Passos, no Rio de Janeiro, e as  escassas 40 casas que foram erguidas em 1926,  no Recife, pela Fundação A Casa Operaria.

Desconhecendo Marechal Hermes Bonduki (op. cit., p. 163) comete uma série de erros de avaliação sobre as origens da habitação social no Brasil. O primeiro deles é atribuir aos conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, nos anos 40 e 50, o pioneirismo “em programas inovadores onde se associavam edifícios de moradia com equipamentos sociais e recreativos, áreas verdes e de lazer, sistema viário etc, (...) verdadeiros núcleos urbanos [nos quais] procurou-se criar um espaço capaz de propiciar um novo modo de vida operário, moderno, coletivo (...)”. Pelas dimensões e qualidade das infra-estruturas e dos serviços previstos para as vilas de Hermes, especialmente os projeto de Manguinhos e Marechal Hermes, ali já podemos enxergar ao menos esboços de tais princípios

Associado a esta perspectiva vem a conclusão de Bonduki de que antes de 1930 “inexistiu a própria idéia de conjunto habitacional”, muito menos produzido pelo Estado. Dando o exemplo da Vila Maria Zélia - construída por Jorge Street em 1919, integrada a sua industria têxtil no bairro de Belém, em São Paulo -, Bonduki observa que o assunto mal interessou ao setor privado, salvo em casos excepcionais, como o de vilas operárias e cidades empresas, nos quais o controle político e moral do trabalhador pelo capital justificava tal investimento. De fato, o desconhecimento das Vilas de Hermes permite tal conclusão e reafirma um sólido paradigma do pensamento da habitação social no Brasil, ou seja, de que “a concessão de favores ao setor privado foi a única medida aceita pelo Estado para incentivar a produção habitacional. (...) Construir casas,  ‘assumindo o papel de capitalista’, era incompatível com a concepção liberal do Estado vigente até 1930” (Bonduki, op. cit. p. 40).

A soma deste paradigma com o desconhecimento das Vilas de Hermes leva Bonduki  (p. 65, 67) a mais um engano neste aspecto das origens da habitação social no Brasil, quando atribui a Vila Maria Zélia um certo pioneirismo. “Com caráter autoritário e moralizador, esta vila foi precursora dos conjuntos residenciais propostos, com outra visão, pelos arquitetos do movimento moderno e por Vargas, através dos” IAPs. E como decorrência vem também a substituição de Hermes por Street no papel de pioneiro na construção de conjuntos residenciais modernos no Brasil. Como veremos mais adiante, os primeiros alicerces  da habitação social no Brasil estão relacionados a outro lugar e personagem. 

A coerência histórica, política e econômica de um pensamento que ancora tudo em 1930, da qual quase sempre somos todos descendentes, encontra sustentação mais empírica na literatura urbana carioca que se referiu as Vilas de Hermes, bibliografia que por sinal Bonduki não analisou suficientemente. Caso contrário, não poderia exibir desconhecimento das vilas de Hermes. Mas a verdade é que nós mesmos, tão preocupados em interpretar o subúrbio carioca a partir dele e  não de fora dele, já olhamos para as Vilas de Hermes (Fernandes, 1996) sem lhes dar a importância que damos agora, vendo-as com os mesmos olhos da perspectiva tradicional  apresentada, por exemplo,  por Carvalho e Lobo (1989), Abreu (2003, p.3), que igualaram as intervenções na habitação de Pereira Passos e  do Marechal Hermes.

Diferente dessa perspectiva tradicional, nós entendemos que estão nas Vilas de Hermes as origens da intervenção do Estado na habitação social no Brasil; as ações de Hermes neste campo são distintas daquelas de Passos, e a tomamos como um prenúncio, uma espécie de antecipação do que veio a suceder com a habitação no período Vargas. Nossa crítica a Bonduki é grata a reavaliação que ele faz das origens da habitação social no Brasil, já que foi inspiradora para repensarmos Marechal Hermes e reafirmar nossas hipóteses sobre a importância nacional do subúrbio carioca e seus espaços. Por outro lado, desconhecendo ou desconsiderando as Vilas de Hermes, Bonduki redimensionou o problema de sua opacidade ou quase invisibilidade para o pensamento sobre as origens da habitação social no Brasil, escavando uma lacuna que justifica  mais ainda este trabalho.

O Marechal Hermes da Fonseca, seu governo e suas vilas proletárias

O reconhecimento da importância das Vilas de Hermes como marco da habitação social nos obriga a reexaminar, ainda que de modo muito limitado, certos aspectos do governo Hermes da Fonseca, pois em diversas ocasiões ele destoa da essência liberal que pautou os governos da República até 1930, por exemplo, promovendo a intervenção do Estado em questões sociais como a habitação. O reconhecimento das criações de Hermes necessita o mínimo de reconhecimento de seu criador, que parece ter sido um personagem muito mais complexo e interessante do que tem sido visto pelos olhos da tradição historiográfica brasileira. Olhos que também não viram nada de excepcional em um governo que, no Brasil e no mundo capitalista, em pleno período de hegemonia das oligarquias liberais, tomou a questão da habitação como uma questão social, tal qual faziam as correntes políticas que em todo mundo clamavam pela intervenção do Estado neste e em outros problemas que flagelavam as massas urbanas das grandes cidades, misérias que serviam de combustível para explosão de motins, dos crimes, das doenças e das epidemias, para o desenvolvimento da Revolução.

Poucos trabalhos, a exemplo de Batalha (1986), Lobo e Carvalho (1989), Castro (2005) se detiveram mais atentamente ao governo de Hermes da Fonseca e suas vilas proletárias. E num plano mais geral, a bibliografia tem se caracterizado por certo vício ou consenso em torno a uma interpretação quase sempre simplificada e que não explora as especificidades, contradições e limites de um governo que, até certo ponto, por suas intervenções, foi um hiato no liberalismo que predominou na Primeira República[1]. Diferentes aspectos podem explicar este consenso simplificador. A crença de que a candidatura de Hermes da Fonseca era apenas uma solução alternativa e improvisada ao conflito entre as oligarquias mineira e paulista na sucessão presidencial de Nilo Peçanha e, portanto, despojado de projeto político, é uma delas.

O desinteresse pelas vilas proletárias se justifica num pensamento que diminui a presença de Hermes da Fonseca no cenário político da Primeira República e desqualifica o seu protagonismo em iniciativas políticas, econômicas e sociais destinadas ao aparelhamento do Estado e das infra-estruturas do país como base de um projeto nacional – desenvolvimento da siderurgia, modernização das forças armadas, estradas de ferro, educação, proteção ao menor etc. A produção de moradia operária é uma delas. O projeto da Vila Proletária Marechal Hermes - nas franjas da fazenda Sapopemba, na qual Hermes ergueu a Vila Militar, em 1908, quando ainda era Ministro da Guerra -, incluía a construção de creches, escolas primárias e técnicas, maternidade, hospital e outros serviços públicos importantes para o funcionamento do que sindicalistas reformistas, como Mariano Garcia[2], conhecidos pejorativamente como amarelos[3], chamavam de cidade operária.

A pouca simpatia dada a Hermes pode ser também debitada à repressão a importantes revoltas populares, como o massacre dos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata (1910), durante os primeiros dias de seu governo, que foi repetida em outro conflito marcante como a Guerra do Contestado (1912-1915), em Santa Catarina. Pelos mesmos equívocos cometidos este conflito foi percebido como uma reedição da Guerra de Canudos (Iglesias, 1993, p. 213; Ribeiro, 1985, p. 232). Neste particular, desgraçadamente Hermes não se distinguiu da maioria dos governos em toda a nossa história e a Revolta da Chibata e a Guerra do Contestado foram episódios sangrentos que manchariam qualquer biografia política. De qualquer forma, as visões tradicionais  sobre o governo de Hermes da Fonseca  o tratam com ligeireza e de maneira esquemática, suas obras e suas alianças políticas são pouco problematizadas (Carone, 1973), (Ferreira, 1989), (Iglesias, 1993).

Segundo Batalha (1986), pelo lado da história do movimento operário o pensamento se deixou seduzir pela corrente anarco-sindicalista,  para o qual as vilas proletárias não tiveram qualquer relevância, pois sendo uma bandeira dos sindicatos reformistas não poderiam ter maiores conseqüências. Os pesquisadores parecem assumir a mesma antipatia que os anarquistas tinham pelo sindicalismo amarelo, especialmente quando viam o seu fortalecimento pelo apoio ao nome de Hermes da Fonseca para a presidência da República, e posteriormente, com a retribuição do governo com o patrocínio do IV Congresso Operário, em 1912, realizado no palácio Monroe e rotulado como congresso pelego[4].

Como muitos governos, inclusive os atuais, é claro que Hermes estava tentando domesticar os trabalhadores, conforme Carone (1973), Ribeiro (1985), Dulles (1977), Fausto (1977) e Gomes (2005), mas isto, especialmente aos olhos de hoje, não deve significar que estes sindicatos não fossem sujeitos de suas próprias histórias e não tivessem suas bandeiras de lutas, que por sinal estavam sintonizadas com um amplo leque de idéias que acabaram sendo hegemônicas nos “gloriosos 30 anos”. Apesar de patrocinado pelo governo, o IV Congresso Operário de 1912 não deixou de ser importante, aprovou  ações em prol  dos direitos sociais, como a jornada de trabalho de oito horas, pelo descanso semanal, pelos acordos coletivos de trabalho, pensão para a velhice, seguro para doenças, salário mínimo, obrigatoriedade do ensino primário, regulamentação do trabalho do menor e da mulher (Dulles, 1977, p. 32),  (Neto, 1977, p. 46).

Deve ficar claro que não estamos querendo aqui reinventar o Marechal Hermes ou os sindicatos reformistas, cujas virtudes  e limites se explicam também pelo modo como os interpretamos em suas condições históricas. O que queremos é apenas não adotar certos reducionismos que desconhecem as singularidades do personagem e do governo, especialmente o seu anti-liberalismo, que o tornava logicamente sensível  e temeroso à questão social e aos anseios populares. Assim, no campo do abastecimento de gêneros de primeira necessidade, Hermes incentivou a formação de cooperativas de consumo e das feiras livres, o que provocou uma verdadeira "guerra" entre o seu governo e os comerciantes da cidade, defendidos em seus interesses pelo Jornal do Commercio. Segundo Dulles (1977, p.33), o jornal acusou Pedro de Toledo, Ministro da Agricultura, de ser subversivo, anarquista e contrário ao comércio legalmente estabelecido. Apesar da aguerrida oposição dos comerciantes e de setores liberais, o prefeito Bento Ribeiro, indicado para o cargo por Hermes da Fonseca, acabou por autorizar, em 1912, as feiras livres em bairros populares.

Conforme o caso, as vilas de Hermes não anunciam nenhuma novidade ou não foram sequer reconhecidas em termos da produção estatal da moradia operária por Farah (1983), Elia (1984), Pechman (1985), Fernandes (1996), Abreu (2003) e Bonduki (2004), que não distinguiram sua importância em termos das origens da intervenção do Estado na habitação no Brasil. Estas ações não poderiam ser caracterizadas, evidentemente, como uma intervenção sistemática na questão habitacional, entretanto, as palavras que Hermes dirigiu para os trabalhadores nas comemorações do dia do trabalho, em 1913, no canteiro de obras, advertiam que ali estava a origem do que deveria ser um “programa”. “E esses edifícios que os rodeiam nesse momento não são mais que o começo de um programa que há de trazer definitivamente o conforto de que precisa o operário brasileiro” (O Paiz, 2/5/1913).

Na realidade, a intervenção do Estado na questão da habitação vinha sendo reivindicada não só pelo clamor dos sindicatos reformistas. Entre os círculos oficiais e no âmbito do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores, Everardo Backheuser, em 1906, desacreditou completamente a política liberal de dar incentivos à iniciativa privada e recomendou a firme intervenção estatal. Além disto, alertou, apontando para a Revolta da Vacina, para o potencial politicamente explosivo que o tema representava para a capital federal. Conforme Bonduki (op.cit), em São Paulo, na década de 1910, os técnicos do Departamento Estadual do Trabalho indicaram a construção de casas para os operários e já vimos que  em Recife  existia uma Fundação A Casa Operária. E no final da República Velha a intervenção estatal continuou na agenda política e urbana, sendo uma das recomendações feitas a prefeitura pelo urbanista Alfredo Agache para reformar a cidade do Rio de Janeiro (Batalha, 1986, p. 51). De qualquer modo, reafirmando a fidelidade aos princípios liberais no período anterior a 1930, até Vargas nenhum dos governos que sucederam Hermes ousaram ao menos ocupar e concluir a Vila Proletária Marechal Hermes.

As vilas proletárias de Hermes da Fonseca: o paradoxo da vitrine invisível

O interesse de Hermes pela questão social e a habitação operária é manifesto pelo menos desde as suas viagens de 1908, à Alemanha, e de 1910, à França, que antecederam o exercício da presidência. Segundo Castro (2005, p. 18), o marechal “trouxe elaborados dossiês sobre as modernas organizações sindicais e operárias, de direções corporativas do trabalho e da previdência social desses dois países, além da Inglaterra, Suíça e Holanda”. Trouxe também lembrança dos graves conflitos que dilaceravam  a Europa, pois em 3 de outubro de 1910, quando estava em Lisboa e no exato momento  em que recepcionava o Rei Manuel, em um banquete a bordo do Couraçado São Paulo, assistiu os republicanos derrubarem a monarquia, ao bombardeio do palácio do rei por navios da marinha portuguesa (McCann, 2007, p. 157).

Tudo isto deve ter contribuído para que Hermes tenha tornado as vilas proletárias uma preocupação permanente em seu governo. Nos quatros anos de sua presidência ele zelosamente comemorou o primeiro de maio na Vila Marechal Hermes ainda em construção, fazendo discursos para seus aliados sindicalistas, mostrando-lhes que a cada ano podiam ver a concretização de suas preocupações para com a moradia da classe operária  Por isto mesmo,  logo que assumiu a presidência, em dezembro de 1910, criou a Comissão de Construção das Vilas Proletárias e nomeou o tenente-engenheiro Palmyro Serra Pulcherio para sua chefia. Este havia se destacado na construção da Vila Militar, inaugurada em 1909, um dos alicerces do projeto de reformulação e profissionalização do Exército, um longo processo que foi iniciado por Hermes da Fonseca quando ocupou a pasta do Ministério da Guerra, no governo de Afonso Pena (1906-1909).

Segundo a Revista Brazil-Ferro-Carril (março de 1911, nº 15, ano II), em princípios de 1911, o jornal Folha do Dia expôs em sua redação a planta de uma “villa operária que o Governo Federal, por iniciativa do Presidente da República, vai mandar construir em terrenos próximos a  Manguinhos”. Seu tamanho, “duas ou três mil casas”, e a moderna infra-estrutura prevista, como em Marechal Hermes, recebeu o comentário de o que se pretendia era construir “uma verdadeira cidade.” Como já havíamos dito, Hermes ali nada construiu e ainda não sabemos quais foram as razões.

Em abril de 1911, o tenente Pulcherio concluiu os desenhos do projeto  da Vila Proletária Marechal Hermes e, em  novembro, o expôs no Clube de Engenharia (Castro, op. cit., p.18, 19). Previsto com 738 prédios de 1 ou 2 pavimentos, habitações para 1350 famílias e para solteiros, edifícios para serviços públicos e comércio, o projeto assim foi detalhado:

O projeto é um tabuleiro de xadrez, dividido em quatro partes pela avenida 1º de Maio e pela rua Bento Ribeiro. Na interseção das duas vias principais, centro geométrico do bairro, há uma praça circular (XV de Novembro), na qual foram projetadas quatro escolas primárias, mostrando a centralidade da educação no pensamento de seus construtores. Mas, curiosamente, no desenho dos “Quarteirões do Sudoeste”, observamos que há uma igreja que não se encontra na planta do projeto e muito menos foi construída, o que sugere que Pulcherio elaborou diferentes versões até chegar a um desenho final. Para a Vila Proletária Marechal Hermes reservou-se um terreno com 1000 metros de frente para a ferrovia e  600 metros de fundos,  onde foram erguidas as casas e infra-estrutura que até hoje distinguem o bairro de Marechal Hermes de sua vizinhança imediata.

Como fruto de um empreendimento que em muito superava o que até então se tinha feito em termos de moradia operária, as casas de Hermes ostentavam aluguéis que, segundo Mariano Garcia, eram mais caros do que fora prometido em 1911 porque os valores  superavam em muito a capacidade financeira de um operário, cujo limite estava em 30$. E de fato o aluguel da casa de tipo I foi fixado em 60$, a do tipo II a 50$ e a do tipo III a 40$. As habitações do tipo V e VI seriam quartos destinados a solteiros e custariam 10$ ao mês (Jornal do Commércio, 1/5/1914).  

Para ocupar as casas das vilas o operário teria que apresentar o certificado de proletário, ter boa conduta e ser chefe de família. O desconto do aluguel seria em folha, sendo os proprietários das fábricas fiadores e responsáveis pelo pagamento. A boa conduta exigida pelas normas para ocupação das residências certamente excluía certos setores populares, notadamente, anarquistas. Era vedado ao operário montar em sua residência qualquer tipo de oficina, o que fazia com que tivesse como única fonte de renda a venda de sua força de trabalho ao capital ou ao Estado.

Prevenindo julgamentos apressados contra Hermes, deve-se ressaltar que este tipo de controle dos moradores das vilas proletárias não era uma planta exótica do “hermismo”, pois era praticada também no caso dos conjuntos residenciais controladas pelo capital, como na Vila Maria Zélia, em que o trabalho e a moradia estavam na mão do mesmo do dono. De qualquer modo, muito antes de Hermes  e nos EUA, a company town de Pullman, construída nos arredores de Chicago, na década de 1880, já determinava férrea e unilateralmente os hábitos privados,  a sindicalização, os salários e os  alugueis pagos pelos trabalhadores da fabrica de vagões ferroviários: “(...) o poder da  Companhia  é absoluto  - ‘há uma população de oito mil almas e ninguém que aí vive se atreve a expressar abertamente sua opinião a cerca da cidade onde vive’ – e só se pode dela escapar emigrando (...)”  (Co, 1975, p. 211).

As obras em Marechal Hermes foram paralisadas em finais de 1913, quando o senador Pinheiro Machado tornou-se hegemônico no governo e promoveu a demissão de defensores das vilas como Francisco Salles, Ministro da Fazenda, Pedro de Toledo, Ministro da Agricultura e Palmyro Serra Pulcherio, diretor da comissão da construção das Vilas Proletárias. Mesmo incompleta, a Vila Proletária Marechal Hermes foi inaugurada em 1° de maio de 1914. A utopia da moradia operária construída pelo Estado para um grupo seleto de operários, com seus caros aluguéis e severos regulamentos poderia ao menos ter se constituído em um marco, um vestígio que fosse, para a memória da habitação social no Brasil, especialmente depois de 1930, mas isto ainda não aconteceu.

Enquanto a Vila Marechal Hermes resistiu e permanece firme como um desconhecido testemunho para as origens da habitação social no Brasil, um monumento que o IPHAN deve tombar o mais breve possível, a pequena vila operária que Hermes da  Fonseca inaugurou em 15 de novembro de 1913,  na Gávea, é praticamente imperceptível na morfologia do bairro atual. De original só restaram as duas escolas e poucos sobrados bastante modificados. A construção de uma vila proletária na Gávea não foi uma idéia que partiu do Presidente, como nos outros dois casos, mas decorrente de uma reivindicação de um grupo de trabalhadores apresentada diretamente a Hermes da Fonseca, em primeiro de maio 1911, quando o marechal-presidente lançava a pedra fundamental da Vila Proletária Marechal Hermes (Correio da Manhâ, 2/5/1911).

Em primeiro de maio de 1912, Hermes fincou a pedra de lançamento do pequeno conjunto de 72 residências, que foi inaugurado em 15 de novembro do ano seguinte. O presidente fez questão de batizá-la com o nome de sua esposa, Orsina da Fonseca. Investigamos as afirmações de Lobo e Carvalho (op. cit.) de que nenhuma das vilas proletárias de Hermes foi concluída, mas não encontramos qualquer evidência de que isto tenha ocorrido na Gávea.  Ao contrário da Vila Marechal Hermes, na Vila Orsina da Fonseca o projeto parece ter sido edificado plenamente, as obras foram inclusive aceleradas. Para tanto foram deslocados para a Gávea operários que trabalhavam em Marechal Hermes. Lobo e Carvalho não perceberam a importância que a habitação tinha nas concepções políticas de Hermes e o empenho presidencial na realização daqueles projetos, oportunidade que pode ser aproveitada por completo na Gávea, o que foi facilitado por suas pequenas dimensões. Esta falta de percepção das especificidades do governo de Hermes é o que possibilita colocá-lo, em matéria de habitação social, no mesmo nível de Pereira Passos.

Na vila da Gávea as setenta e duas residências foram construídas segundo dois tipos.  O tipo A contava com três quartos, duas salas, cozinha, banheiro, quintal, e custava 60$000 de aluguel mensal. As residências do tipo B foram dotadas de dois quartos, duas salas, cozinha, banheiro e quintal, e custava 50$000 de aluguel mensal. Como um portal, valorizando a perspectiva do conjunto arquitetônico, duas escolas primárias foram colocadas na entrada da vila operária. O regulamento que ordenava a moradia neste caso foi idêntico ao proposto por Palmyro Pulcherio para a Vila Marechal Hermes (O Paiz, 16/11/1913).

No dia da inauguração lideres dos sindicatos reformistas discursaram agradecendo ao presidente. Mariano Garcia afirmou que o trabalhador tinha razão em estar divorciado da República, mas com o apoio de governos como o de Hermes a coisa seria outra. Aproveita para denunciar o ódio dos grandes proprietários e de alguns aliados de Hermes pelas vilas proletárias, pois não desejavam vê-las construídas.

E Getulio Vargas continua e completa Marechal Hermes

Após a inauguração da Vila Proletária Marechal Hermes, em primeiro de maio de 1914, as obras para a sua conclusão ficaram paralisadas até que Getúlio Vargas autorizasse a transferência de sua posse para o Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), em 28 de fevereiro de 1931, com o objetivo de reformar os casarões abandonados, terminar os que estavam incompletos e construir casas econômicas. E assim as vilas de Hermes se situam mais uma vez no tempo e no espaço, retoma pela segunda vez seu lugar na paisagem das origens da intervenção estatal na habitação social no Brasil.

Mas isto será novamente invisível aos olhos de nossos investigadores do urbano carioca e da habitação social no Brasil, muitos dos quais prisioneiros de um modo de ver liberal que busca apenas provar a ineficácia e insuficiência da intervenção do Estado nas questões sociais no país, especialmente quando amparadas em rançosas e auto-explicáveis  posições anti-getulistas ou anti-populistas. É assim que não enxergamos “a vitrine” que Hermes havia colocado estrategicamente à frente da mais importante ferrovia do país; uma construção que deve ter causado fortes impressões em quem descortinava um lugar que antes do avião foi passagem obrigatória para aquelas elites de São Paulo, Minas e outros Estados que se dirigiam à capital do país viajando de trem. Este “out-door” permaneceu quase invisível durante muito tempo, até ser descoberto e conceituado por Oliveira (2009) como uma “vitrine” das intenções políticas do marechal-presidente.

Oliveira (op. cit.) nos mostra com a vila Proletária Marechal Hermes não  só  o paradoxo de uma vitrine não vista, mas também descobre que ali está um fio que liga Hermes a Vargas nas origens da intervenção do Estado na habitação. Mostram isto as primeiras iniciativas de Getúlio Vargas na produção estatal da habitação, que começaram no inicio da década de 30, exatamente por onde Hermes da Fonseca havia terminado. Provavelmente, em Benfica, bairro próximo ao de Manguinhos, nos mesmos terrenos onde Hermes imaginou construir uma das vilas proletárias, Vargas edificou algumas habitações; mas com certeza, com a conclusão da Vila Proletária Marechal Hermes, com projetos diversos e atualizados aos novos tempos, podemos dizer que Vargas continuou Hermes, ou que Hermes antecipou Vargas.

Precisando um pouco mais nosso ponto de vista, se assim foi é porque Vargas viu, evidentemente, a Vila Proletária. Contudo, apesar de continuar Hermes, de completar sua obra, respeitando e modernizando os princípios do projeto original, como veremos, Vargas não parece ter reivindicado ou aceito o papel de co-autor ou continuador daquela iniciativa, de tal modo que suas intervenções por ali são quase desconhecidas da literatura ou não conferiram maior notoriedade ao bairro. Ali, até onde sabemos, não há nada que se chame Getúlio Vargas, embora exista ainda no Teatro Armando Gonzaga uma placa alusiva ao seu comparecimento, em 1954, na solenidade de inauguração. A esta altura especulamos que se Vargas continuou Hermes, não fez questão fez questão de reconhecer estes laços com a República Velha. Tal silêncio deve ter contribuído muito para opacidade que sofre a vitrine de Hermes na paisagem da cidade e na memória da habitação social.

Entre as medidas iniciais tomadas por Getúlio Vargas intervindo na habitação está o recomeço da construção da Vila Proletária Marechal Hermes através do Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), que ali encontrou um quadro urbano desolador, depois de quase 20 anos de obras paralisadas e com apenas 42 casas efetivamente ocupadas, 24% das 170 casas prontas entregues por Hermes em 1914. Durante duas décadas deixou-se 128 casas vazias em uma cidade em explosivo crescimento do “déficit habitacional” e de favelização. Esta inação justifica as acusações de Mariano Garcia contra o desprezo e ódio com que os liberais viam as vilas de Hermes. Foi assim que os governos que sucederam o marechal-presidente durante a República Velha trataram a sua “vitrine”: arruinando-a. A prefeitura chegou a recusar o serviço de recolhimento do lixo a seus moradores, alegando que ali se tratava de território federal. Talvez por falta de alunos e professores e de melhor lugar para acantonar os militares da aviação do vizinho Campo dos Afonsos, em 1919 suas duas escolas lhes serviram de quartel (Figura 6). Em 1934, o Globo (1/5/1934) afirma que o longo abandono  havia deixado a Vila Marechal Hermes em ruínas.

Mas este quadro já estava em mudança, e O Globo informa que as intervenções que o IPFPU estava concretizando prometiam outra realidade. Com a construção de 49 novas casas e a conclusão de outras 42 inacabadas, a “(...) Rua Treze de Maio do primitivo estado de ruínas em que se achava, logo se transformou numa das belas avenidas desta capital (...)”.  O Instituto começava as obras de mais 300 casas econômicas, o que era na verdade um novo conjunto residencial, denominado Vila 3 de Outubro.

Em Benfica e, sobretudo, em Marechal Hermes, está a maior parte das 576 unidades habitacionais construídas pelo governo federal entre 1930 e 1936, no Rio de Janeiro, números que por sinal foram reconhecidos por Bonduki (op. cit., p. 103). Contudo, como a preocupação de Bonduki, a sua linha de raciocínio, é demonstrar que “as CAPs [Caixas de Aposentadorias e Pensões] pouco fizeram em termos de habitação nesse período”, para situar na criação dos IAPs e suas carteiras imobiliárias “o surgimento das políticas de habitação social no Brasil”, no que estamos de acordo, ele não se detém na produção destes conjuntos, não os examina como dado empírico e qualitativo, não podendo então perceber que nestas escassas centenas de habitações estavam laços de continuidade e ruptura na evolução da habitação social no Brasil  Em Marechal Hermes, entre 1930 e 1936, não só foram continuados e mantidos aspectos do projeto de Hermes, mas, principalmente, ali já se começou a ensaiar e a praticar alguns dos princípios da habitação social modernista, que hoje, graças justamente a Bonduki e sua análise qualitativa da produção dos IAPs, sabemos que foi e está entre o que de melhor se produziu no mundo. Pela segunda vez a análise das origens da habitação de Bonduki  não tocou em Marechal Hermes, o que para nós é um enigma, já que em nossa opinião seu grande ensinamento foi justamente a critica de que a maior parte dos analistas do urbano e da habitação social no Brasil parece nunca ter posto os pés nos conjuntos produzidos pelos IAPs nas principais cidades brasileiras. Pois só analisando empírica e qualitativamente a produção habitacional, como fez Bonduki com a era Vargas, é que podemos compreender que o que foi produzido, com todas as suas limitações, foi de grande  importância.

Ainda através de O Globo (1/5/1934) podemos ver que alguns dos princípios, das inovações e soluções desenvolvidas por engenheiros e arquitetos modernistas, que foram destacadas por Bonduki na análise da produção dos IAPs, já começaram a ser desenvolvidas em Marechal Hermes. Em 1934,  estudando a redução de custos da habitação, o IPFPU construiu “a título de experiência, uma pequena residência com compartimento de estar conversível em quarto e sala de jantar, justapondo-se às paredes os móveis que permitem a conservação da peça para as três finalidades”. Os móveis desta residência eram especiais, não existindo no mercado, e portanto deveriam integrar as próprias residências. Não por acaso este tipo de solução foi o mesmo aplicado nos “apartamentos de área mínima” do Conjunto do IAPI do Realengo, inaugurado em 1943, sobre o qual Bonduki derrama evidências convincentes de suas qualidades funcionais e estéticas modernas, acolhendo as observações de que a disposição intercalada das varandas na fachada do bloco de principal do conjunto era comparável “enquanto solução ao projeto de Gropius para a residência estudantil da Bahaus, em Dassau (1926)”.  Bonduki blinda seus elogios ao mostrar que na primeira obra publicada sobre a arquitetura brasileira – Brazil Builds Architeture New and  Old (1652-1942), New York: Museum of Modern Art, 1943 –, Philip F. Goldwin já valorizava o Conjunto de Realengo como um exemplar notável da produção arquitetônica modernista brasileira, a ponto de publicar fotos de 1942 que registram a obra em fase final de conclusão.

Ensaiando as mudanças na arquitetura e as novas diretrizes para a produção da habitação social, o IPFPU promoveu, em 1933, concurso público para outro plano de urbanização das áreas desocupadas da Vila Marechal Hermes, modificando o que foi elaborado em 1911. Porém, o concurso acabou por não atingir seus objetivos, pois a comissão julgadora, em que estavam Saturnino de Brito, Affonso Eduardo Reydi e Celso Kelly, recusou os dois trabalhos apresentados, argumentando em seu Relatório que estes desconheciam as vantagens do zoneamento, foram descuidados com os espaços de recreação e o saneamento do Rio Tinguá. Nas palavras da comissão:

“Nenhum dos concorrentes apresentou projeto digno de nota, sob o ponto de vista da urbanização. Ambos limitaram-se a prolongar e reproduzir o traçado existente, sem justificar propriamente a razão. Tratando-se de um bairro residencial de vastas proporções, o traçado merecia sugestões que tornassem o aspecto da "Vila" menos árido e menos rígido. A simples inspeção dos dois Ante-Projetos, sente-se o desinteresse e a reprodução automática de um elemento já existente, isto é a parte já construída” (cf., Oliveira, 2009, p. 136).

Importam aqui perceber os cuidados tomados pela comissão com a qualidade do projeto que deveria ser continuado segundo novos princípios. De toda a forma, até onde sabemos sem um plano, a ocupação do restante da Vila acabou por ser uma continuação do traçado urbano de Pulcherio, guardando também o principio de oferecer um espaço residencial qualificado por sua infra-estrutura e serviços, o que foi levado adiante em dois momentos durante  a era Vargas. Na década de 1930, antes da criação dos IAPs, o IPFPU construiu mais de 300 casas econômicas, inaugurou em 1934 um moderno cinema em um edifico de traçados arrojados, o Cine Lux, e o coreto da praça XV de Novembro, em 1936 inaugurou o hospital Carlos Chagas.

A segunda fase de conclusão da ocupação dos terrenos da Vila Marechal Hermes  ocorreu nas décadas de 1940  e 1950, após a transformação do IPFPU em Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (IPASE), em 1938, ou mais especificamente, após a constituição da carteira predial do IPASE, em 1941, que lhe possibilitou recursos para desenvolver projetos em vários pontos da cidade. Assim, nos últimos terrenos da vitrine de Hermes, o IPASE edificou 589 casas com diferentes tipologias, três conjuntos habitacionais, um teatro, um ginásio e uma maternidade, mantendo notavelmente as mesmas preocupações com a qualidade do espaço que vinha sendo produzido desde os tempos do marechal-presidente.

Em 1948 foi inaugurado o primeiro dos três conjuntos habitacionais do IPASE em Marechal Hermes, o Conjunto Comercial, um projeto de Carlos Frederico Ferreira, cuja intervenção pretendeu criar um novo núcleo de comércio e serviços para o bairro. Neste sentido, localizou o conjunto em terrenos na praça central, que no plano original estavam destinados para duas escolas primárias, e planejou o pavimento térreo dos três blocos de edifícios para lojas comerciais. Com cinqüenta e quatros unidades este conjunto não se destaca por suas proporções. Mas ele tem a assinatura de Carlos Frederico Ferreira, apontado por Bonduki como um dos grandes responsáveis pela qualidade de muitos dos grandes projetos habitacionais da era Vargas. Fazer parte do acervo de projetos do arquiteto já lhe daria destaque. Mas nesta pequena intervenção a qualidade das contribuições de Ferreira para o espaço da habitação social não se deixou de manifestar, pois nos parece que ele aproveita centralidade física do Conjunto Comercial para, sem grandes rupturas e buscando continuidade e integração, reordenar a função comercial no projeto original da Vila Proletária, ao mesmo tempo e nos mesmos terrenos que ampliava o espaço residencial e comercial do bairro.

O segundo conjunto construído pelo IPASE em Marechal Hermes, inaugurado em 1949, foi o 3 de Outubro, que como já vimos vinha sendo anunciado desde os tempos do IPFPU. Projeto do arquiteto Carlos H. Porto, resultou num conjunto de 14 blocos de 3 pavimentos, com 252 unidades, de 2 e 3 quartos com varanda e dependências de empregada. 

O terceiro conjunto desta série foi inaugurado em 1954. Situado na divisa com o bairro de Bento Ribeiro é conhecido simplesmente como “do IPASE”. Está também mais distante da estação ferroviária e do centro comercial. Entre os três conjuntos residenciais este é o maior, possui dez blocos de apartamentos, com 360 unidades de dois quartos e apresenta um padrão mais modesto que os outros, não comportando varanda ou quarto de empregada.

Com mais de mil unidades habitacionais construídas, o IPASE não deixou de realizar o sonho de Hermes de que sua Vila concluída viria abrigar 5000 pessoas. A construção do Ginásio José Acioly, em 1948, e da Maternidade Alexandre Fleming, em 1956, não deixa dúvida de que durante todo este tempo foi mantido o principio de produzir um bairro bem servido de infra-estrutura e serviços. O toque final de Vargas na vitrine de Hermes veio em 1954, quando 40 anos após a sua inauguração, finalmente foi entregue o teatro que constava em seu projeto original, mas agora em um edifício de um dos maiores arquitetos modernistas brasileiros, Afonso Eduardo Reidy, ambientado em jardins do não menos renomado Burle Max.

Podemos agora reafirmar que Marechal Hermes, o personagem e o bairro, são precursores dos grandes conjuntos residenciais para a história da habitação social no Brasil E isto contribui para sedimentar nossas hipóteses de que podemos encontrar na produção do subúrbio carioca - sem grandes escavações mas com olhos capazes de enxergar vitrines não-vistas-, espaços e experiências originais e mesmo paradigmáticas que importam à geografia e à sociedade brasileira.

Assim, após 40 anos, Vargas concluiu o projeto do Marechal Hermes. Em 2014 este bairro completará um século e, apesar do abandono, da destruição do Cine-Lux, e de intervenções desastradas como as do Rio Cidade, sua agradável e acolhedora morfologia urbana se mantêm intacta. A estação ferroviária, as ruas e calçadas largas, os sobrados, as casas, as escolas, o teatro e os conjuntos habitacionais de Marechal Hermes são testemunhos singulares das origens da habitação social no Brasil. É preciso retirar o pano

que sempre cobriu esta “vitrine” e que impede a leitura deste espaço como páginas em que estão inscritas notáveis esforços em nome do direito a moradia em nossa sociedade. É urgente que a consciência da habitação social e do patrimônio no Brasil, particularmente o IPHAN, aproveite a proximidade do centenário da Vila Proletária Marechal Hermes para promover a sua preservação e o seu tombamento como Patrimônio da Habitação Social no Brasil.

 

Notas

[1] O que não impediu Hermes tomar medidas liberais, como no caso da reforma  da educação de Rivadávia Corrêa, que deu total liberdade e autonomia aos estabelecimentos educacionais, desoficializando o ensino (Oliveira, 2009, p. 70).

[2] Mariano Garcia foi trabalhador da indústria de cigarros e, em 1885, fundou o jornal O Operário, para divulgar os princípios do Partido Socialista. Nos primeiros anos do século XX, esteve à frente da Gazeta Operária, jornal de defesa do trabalhador e de críticas ao anarquismo. Garcia foi um dos principais organizadores do Congresso Operário de 1912, patrocinado pelo governo Hermes e tido como congresso pelego pelos anarquistas (Fausto, 1986, p. 52).

[3] Sindicatos "amarelos" eram os sindicatos conhecidos como aqueles que optavam por ações dentro dos limites da lei, procurando junto ao governo resolver suas reivindicações.

[4] Destaca-se, neste congresso, a criação da Confederação Brasileira do Trabalho (CBT), um misto de central sindical e de partido político que pretendia, via parlamento, ver contemplado as demandas dos trabalhadores.

 

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Arquivos

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Ficha bibliográfica:

FERNANDES, Nelson da Nóbrega y Alfredo César Tavares de OLIVEIRA. Marechal Hermes e as (des) conhecidas origens da habitação social no Brasil: o paradoxo da vitrine não-vista. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (87). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-87.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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