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PLANEJAMENTO, GESTÃO E PARTICIPAÇÃO: A POLÍTICA URBANA E AS DISPUTAS PELO TERRITÓRIO
Jayça Lima Sant’Ana
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Gustavo de Souza Fava
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Planejamento, gestão e participação: a política urbana e as disputas pelo território (Resumo)
Resultado de pesquisas realizadas no mestrado em urbanismo na PUC-Campinas em 2007 e experiências profissionais, este artigo trata do município de Votuporanga, cidade média na região noroeste do Estado de São Paulo, Brasil.
Analisamos comparativamente, sob a ótica do método dialético, os três Planos Diretores elaborados. O primeiro em 1971, Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI); o segundo em 1995, Plano Diretor Municipal (PDM) e; o terceiro em 2006, Plano Diretor de Votuporanga – contextualizando-os historicamente e revelando as faces físicas, sociais, políticas e econômicas do município no período, as transformações nas concepções de planejamento urbano, participação popular e democracia, que resultaram em alterações nas legislações em âmbito federal, estadual e municipal.
Serviram de instrumentos investigativos, pesquisas bibliográficas, documentais, georeferenciamento, entrevistas e pesquisa de campo para observação de impactos e alterações ocorridas no território.
Planning, management and participation: the urban politics and struggles for territory (Abstract)
As a result of research undertaken during Master Degree Studies in 2007, and also professional experiences in urban planning process, this article focuses Votuporanga Municipality, a middle sized city in northwest region of São Paulo State, Brazil.
Master plans for the municipality are evaluated - 1971, 1995 and 2006, in their historical, political environmental and social context. The evolution and modifications of planning and urban management in Brazil are presented, mainly the participatory process during re-democratization period, which has been resulting in modifications of the federal, state and local bylaws.
The research is based on bibliography review, analyses of documents and legislation, territorial studies with georrefered data, interviews and field researches for environmental modifications and impacts.
Key words: master plans, urban planning, participatory process methods, territorial dynamics and urban legislation.Pequena narrativa sobre a trajetória dos Planos Diretores no Brasil de 1970 a 2010: tendo Votuporanga como pano de fundo
Atualmente Votuporanga possui 81,3 mil habitantes e uma área de 432 km², sendo cerca de 15% urbanizados.
A década 70 se inicia sob a égide da Ditadura Militar implantada na década anterior, ancorada na burocracia, na tecnocracia e no milagre econômico.
Deste modo, os Planos Diretores eram instrumentos de controle do Estado sobre os municípios que estavam muito longe de exercerem a autonomia ao qual teriam direito pelo modelo de Republica Federativa.
O Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) de Votuporanga foi elaborado por uma equipe de técnicos que compunha o Grupo de Planejamento Integrado (GPI)[1], liderado pelo engenheiro Sérgio Mota[2], contratado pela Prefeitura Municipal de Votuporanga[3]. Nele o diagnóstico elaborado aponta para diversos aspectos relacionados ao desenvolvimento do município: urbanos, demográficos, sociais, culturais, institucionais, econômicos, etc. Elaborado em pleno regime militar, o PDI é um documento norteado pela concepção vigente, em que o papel do planejamento é aplicado na manutenção do regime político e do sistema econômico ao qual estava vinculado.
O modelo político tecnocrático e o centralismo externo vigente durante o período da ditadura militar constituíam-se em divisor de águas entre os modelos de desenvolvimento nacionalista e o modelo econômico do Estado Militar de “expansão horizontal da economia”, resultado da gradual diminuição dos investimentos urbano-industriais em benefício da produção agrária, permitindo a absorção da mão-de-obra, sem o emprego de tecnologias modernas – limitando assim, os investimentos em pesquisa para o desenvolvimento tecnológico nacional – ao mesmo tempo em que permitia a contenção das pressões sociais. No Brasil esta era a ideologia vigente tanto no setor agrário, quanto na classe média tradicional brasileira.
Sendo a base do Estado Militar composta pela oligarquia agrária e pela burguesia empresarial nacional – favorável ao padrão de desenvolvimento associado ao capital internacional – a opção política adotada para o desenvolvimento, foi por um caminho que atendia às pressões desses setores e favorecia e dinâmica estamental militar ao mesmo tempo em que preservava a “ordem social”.
Em outras palavras, o poder estruturou-se de modo que a população (“as massas”) se sentisse governada. Os institutos assumiram a função que possibilitava a “participação” de parcela da sociedade nos novos padrões de organização do sistema econômico e de liderança política; no caso a parcela oficialmente chamada a “participar” foi o setor empresarial, uma vez que tal espaço de “participação” possibilitaria retardar o anseio da “classe dominante de assumir as rédeas do governo”.
As relações de classe foram reformuladas em sua base legal, social e econômica dando novas bases ao trabalhismo no país (Pereira, 1971).
Assim, a política social imposta pelo regime militar buscava acabar com a participação da classe operária e assalariada nas decisões políticas; controlar ou anular a capacidade de composição política de grupos burgueses dos setores adeptos do modelo nacionalista de desenvolvimento; restaurar o controle das classes dominantes sobre as forças produtivas por meio do controle rígido e centralizado da política salarial e dos movimentos sociais; liquidar com a política de massas alterando a lei de greve e controlando sua utilização como técnica da reivindicação econômica ou política.
Se por um lado, a industrialização era vista como expressão do crescimento econômico e a tecnocracia era o modo pelo qual o Estado se organizava e à sociedade, de modo que as técnicas se sobrepunham às idéias, que a formação profissional se sobrepunha à cultura geral. Por outro lado, a oligarquia agrária também estava entre as prioridades do regime, visto que foram criadas políticas que permitiram a formação técnica na área agrícola, a expansão das fronteiras agrícolas e a diversificação da produção para o fomento da agroindústria.
A planificação teve diferentes funções impostas historicamente e, de acordo com Pereira, 1971: 14 e 15, o Estado passa a assumir a função de agente planificador após a crise de 1929, de modo que a “história possa ser dirigida”, daí a criação de mecanismos que permitiam a intervenção do Estado na economia. A planificação capitalista acontece pela necessidade da reprodução do capital e “por acomodações históricas entre interesses de classes dirigentes”.
Deste modo, o governo militar passou a intervir na formação dos técnicos, – em prejuízo da formação mais humanística – cujo perfil era preparado para atender as demandas das empresas públicas e privadas.
É neste contexto que o Grupo de Planejamento Integrado (GPI), empresa responsável pela elaboração de Planos Diretores em vários municípios brasileiros, inclusive em Votuporanga, desenvolvia seu trabalho, metodologicamente referenciado nos conceitos de planejamento da época e de acordo com a visão de desenvolvimento oficial, que norteava todas as instituições públicas ou privadas, de modo que os planejamentos e planos diretores fossem instrumentos de soluções práticas de problemas e, ao mesmo tempo, de resultados imediatos com os quais os projetos militares de desenvolvimento nacional deveriam se implantar e consolidar na sociedade brasileira em âmbitos nacional, regional ou local.
Nesta linha, o texto do diagnóstico e as leis propostas pelo PDI-71, apontaram para um modelo de desenvolvimento vigente na época. Encontrou em alguns aspectos, ressonância na sociedade local, em outros, configurou-se como mera formalidade, sendo aprovado pela administração pública local e nunca colocado em prática, ficando esquecido por 24 anos.
Apesar do grande incentivo do Estado brasileiro para a agropecuária, inclusive com a abertura de novas fronteiras agrícolas, as cidades brasileiras continuavam a atrair cada vez mais pessoas em busca de melhores oportunidades de emprego e renda. A agricultura sofria com vários revezes, seja do ponto de vista das intempéries, seja do ponto de vista das políticas que beneficiavam os grandes produtores, deixando a pequena propriedade à mercê dos latifundiários, sempre prontos a incorporar mais terras às suas a baixos custos.
As monoculturas continuam a ganhar espaço e a revolução verde tornava-se o grande aliado dos grandes produtores[4], que passaram a mecanizar suas propriedades. As grandes safras de grãos e sucroalcooleiras, para exportação, tornaram ainda mais difícil a vida dos pequenos proprietários, agricultores familiares e de subsistência, que aos poucos se tornaram bóias-frias, morando nas cidades e trabalhando no campo sazonalmente.
Por outro lado, a indústria necessitava da importação de máquinas e insumos especializados, com isso a dívida externa brasileira crescia à medida que também se desvalorizavam as matérias-primas exportadas. A instalação das indústrias no sudeste expõe o caráter concentrador no território brasileiro.
O Estado brasileiro exerceu grande influência no alargamento dos mercados nacionais e esteve presente em todo o processo de industrialização. Porém, esteve ausente nos processos de urbanização, uma vez que os contingentes atraídos pelos empregos nos grandes centros acabaram por produzir espaços invisíveis nas cidades.
De acordo com Maricato, 2006: “A ausência do estado, particularmente do aparato judicial e institucional, dá espaço para as novas ´leis`, que são ditadas pelos ´chefes locais`.” O domínio do crime organizado e o aumento da violência urbana surgem quando a exclusão aparece, ou seja, a cidade legal se encontra se entrelaça e coexiste estabelecendo inter-relações com a cidade ilegal. Esse fenômeno é resultado de várias décadas de políticas públicas baseadas em uma matriz de planejamento que privilegiou o capital e relegaram ao segundo plano as classes trabalhadoras.
As crises financeiras internas, o fracasso do “milagre econômico” e a inflação galopante deste período enfraqueceram as bases do governo junto à classe média, que começou a dar sinais de descontentamento ao ver que o “bolo não crescia”, ou se crescia, não havia pedaços na mesma proporção dos que dele pretendiam comer[5].
Nos anos 70 e 80, na América Latina, movimentos populares buscavam se libertar das ditaduras impingidas pela influência norte americana. No Brasil, as diversas derrotas dos movimentos – inclusive a luta armada – contrários à ditadura deram origem a movimentos populares ligados a Igreja Católica, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que por meio da inserção de agentes de pastoral, padres e freiras no meio do povo, juntamente com médicos e educadores passam a formar e dinamizar processos organizativos de defesa e conquistas de direitos que marcaram a década de 1980. Surgiram diversos movimentos populares para a melhoria das condições de vida no campo e na cidade, movimentos de gênero, de raça, trabalhistas – originando as centrais sindicais, dentre elas a CUT (Central Única dos Trabalhadores) – e novos grupos políticos, que mais tarde se organizaram sob a forma de partidos, como o PT, o PSB, PSDB, entre outros. O final do regime militar foi marcado por conquistas sociais como a Anistia Política e a Abertura – “lenta, gradual e segura”. Já não era mais interessante aos investidores e aos organismos financiadores internacionais (BIRD, FMI e Banco Mundial) manter negócios com países cujos regimes autoritários atravancavam o processo de reprodução e acumulação do capital. Face e este cenário desfavorável ao regime militar brasileiro, no início desta década o movimento das “Diretas Já” ganhava as ruas, culminando com o fim da ditadura militar.
Apenas em 1988 a nova Constituição Brasileira – chamada “Constituição Cidadã” – foi promulgada e com ela o compromisso do Estado com a democracia e com a participação popular.
A partir da nova Constituição, os municípios brasileiros passaram a ser considerados entes federados, o que lhes conferiu maior autonomia e competência para gestão pública plena. Se por um lado, essa nova situação deu maior poder decisório e controle social aos municípios, por outro houve a proliferação de novos municípios sem condições de arrecadação e capacitação funcional para a gestão e administração pública. Inicia-se um período de disputas por recursos nas esferas administrativas, estabelecendo relações clientelistas e populistas a fim de obter o “desenvolvimento” a qualquer custo.
Inaugurou-se também um período de grande incentivo institucional de estímulo a participação da sociedade civil organizada nos conselhos, movimento que Albuquerque (2004), em seu texto, “Participação Cidadã nas Políticas Públicas”, chama de “conselhismo”. Em termos legais, há instituição de diversos conselhos, nas esferas federal, estadual e municipal, na maioria, vinculados à fiscalização e ao repasse de recursos para as políticas sociais locais a eles relacionadas. Começam a “pipocar” Conselhos: de Saúde, Educação, Criança e do Adolescente, Merenda Escolar, Meio Ambiente, etc.
Embora muito tenha havido inúmeros avanços sob diversos aspectos sociais, a legislação urbana carecia de instrumentos, regularização e mecanismos de participação que tornassem a as cidades locais mais democráticos e menos excludentes tanto do ponto de vista econômico como social. A ausência de metodologias de participação social no planejamento das cidades, talvez tenha sido um dos mais importantes obstáculos à realização dos processos de reforma urbana. O Estatuto da Cidade demorou cerca de 20 anos para ser aprovado e regulamentado – através dele se pretendia chegar à reforma urbana, aos processos participativos, à função social da propriedade urbana, etc.
Na Década de 1990, com o fim do bloco comunista o capitalismo tem novo impulso e amplia suas bases neoliberais por meio da globalização, ancorada aos avanços científico-tecnológicos.
O planejamento urbano também sofreu forte influência da globalização e, de acordo com Maricato (2006:11), passou a ter um novo papel com o surgimento de um novo modelo de urbanismo, cujo ícone foi Barcelona que por ocasião dos jogos Olímpicos realizou o chamado plano estratégico. Segundo a autora, apesar de parecerem democráticos e participativos, esses planos estratégicos, estão alinhados com o ideário do Consenso de Washington. A cidade submetida a este plano deve ser gerenciada como uma empresa privada, daí diversas cidades apresentarem cargos de gerentes.
Ao mesmo tempo em que surgiam novas concepções de planejamento e gestão urbanas, no Brasil a disputa entre os municípios por recursos e investimentos deu origem a uma onda de “criação de vocações” econômicas, que em diversos casos contribuiu para aumento dos déficits públicos municipais, pois o “incentivo” aos novos investimentos, especialmente os urbanos (indústrias, comércio e serviços) passou a se dar via isenção ou redução fiscal, daí as cidades, serem consideradas por diversos grupos técnicos, empresariais e políticos como uma mercadoria que deveria ser exposta e “vendida” de modo que atraísse maiores investimentos.
Neste contexto a Prefeitura Municipal de Votuporanga em 1995 propõe a elaboração de um novo Plano Diretor Municipal (PDM) a ser utilizado como instrumento de superação da estagnação econômica e como parâmetro para superação do processo de urbanização balizado pela precariedade da infra-estrutura, pelas más condições salariais da indústria moveleira e pela necessidade de conseguir outra estratégia de reprodução dos capitais amparada na política urbana.
Longe de ser compreendido como um instrumento participativo de planejamento para a melhoria das condições de vida, o PDM-95 era a esperança de novos negócios, desenvolvimento e progresso elaborado por uma equipe de profissionais com conhecimento técnico capaz de realizar uma nova leitura e dar nova dinâmica econômica ao município[6].
Com esta responsabilidade, a equipe montada pela Associação dos Engenheiros Arquitetos e Agrônomos da Região de Votuporanga (SEARVO) não dispunha de instrumentos legais que norteassem a metodologia de elaboração do Plano Diretor e nem de participação da sociedade neste processo. Assim, após 24 anos de esquecimento e obsolescência o PDI-71 voltou a ser discutido por ocasião de sua revisão, ponto de partida dos trabalhos (da equipe), o que mais tarde originou o que se constituiu no PDM de 1995,
A primeira década do novo milênio foi marcada pela consolidação da democracia no país, com isso, reformas na Constituição, novas leis que regulamentam leis da década de 80 e 90 e outras são criadas para acompanhar as novas demandas surgidas da estabilidade econômica, das políticas públicas da União para atender as demandas sociais e das novas tecnologias. A cidade como tema central do planejamento passa também por mudanças que tornam os planos diretores instrumentos de planejamento municipal, em que não apenas a zona urbana, mas a rural e a periurbana, são partes importantes a serem consideradas. Em 2003 foi criado o Ministério das Cidades, que ampliou os recursos financeiros para habitação, saneamento urbano, instrumentos de planejamento municipal e promoveu grande campanha para implementação do Estatuto da Cidade.
A legislação passou a exigir que municípios com mais de 20 mil habitantes tivessem planos diretores que condicionava os repasses de verbas a sua realização devendo ter instrumentos e metodologias de participação da sociedade. Na primeira metade da década de 2010 houve uma verdadeira corrida das prefeituras municipais a procura de equipes que fizessem ou a revisão dos Planos Diretores em alguns casos e em outros a elaboração do primeiro. Não faltaram também “empresas especializadas” a oferecer seus serviços. Nem as universidade, por meio de laboratórios e empresas juniores, (alguns criados exclusivamente para este fim) ficaram de fora desta verdadeira febre de planejamento urbano.
Sob o ponto de vista político eleitoral, como ação de impacto na sociedade, os Planos Diretores vem servindo aos interesses de autopromoção dos que se utilizam destes momentos especiais para divulgarem a sua “seriedade e compromisso” com o planejamento. Longe de se colocarem como fieis seguidores do projeto que emerge do processo, a maioria prefere se voltar ao gabinete e promover a violação das diretrizes logo após a sua aprovação. Numerosas e diversas, estas diretrizes são pouco conhecidas da população que mal percebe a diferença entre o texto desconhecido da Lei e os projetos aprovados após a sua promulgação, criando então, dois universos bastante distintos: o daqueles que dominam o conhecimento da legislação e, portanto podem manipulá-la como melhor lhe convier, e daqueles que por desconhecimento são reféns de uma elite local que se beneficia econômica e politicamente deste privilégio.
É importante destacar que neste período compreendido entre as décadas de 1960 e 1990, houve uma grande mobilidade populacional do campo para a cidade, no Brasil. Em 1960, a população urbana era composta por 44,7% do total populacional brasileiro, sendo os 55,3% população rural. Após 10 anos essas taxas se inverteram e em 2000 a população urbana já chegava a 81,2% do total da população brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1960 a 1996 a população urbana no Brasil aumentou de 31 milhões para 137 milhões, ou seja, em 37 anos as cidades brasileiras receberam 106milhões de novos moradores.
Essas cidades, porém não são homogêneas, apresentam em seus territórios morfologias diversificadas e ali se reproduzem as injustiças e a desigualdade social acompanhadas pelo acumulo de capital por meio da especulação imobiliária e apropriação privada de bens públicos como no caso da infra-estrutura urbana.
Assim, esta breve narrativa espera ter auxiliado o leitor a compreender, de modo geral, o percurso do planejamento urbano via Planos Diretores no Brasil nas últimas 5 décadas tornando mais compreensível a discussão que se segue, cujo objetivo é estabelecer uma relação entre os três Planos Diretores de Votuporanga, suas distintas ideologias e metodologias que resultaram numa real interferência na dinâmica territorial do município e, conseqüentemente na sociedade local.
PDI-71; PDM-95; PDV-06: alterações no território de Votuporanga em três momentos do Planejamento
Como já sabemos os planejamentos e Planos Diretores nos anos 70 eram instrumentos de soluções práticas de problemas e, ao mesmo tempo, de resultados imediatos com os quais os projetos militares de desenvolvimento nacional deveriam se implantar e consolidar na sociedade brasileira, em âmbitos nacional, regional ou local.
O texto diagnóstico do Plano de Desenvolvimento Integrado era bastante técnico, considerando fatores que possibilitariam o desenvolvimento do município de acordo com as concepções ideológicas de desenvolvimento da época. Seguindo a idéia de cidade pólo, apontou para a possibilidade de o município vir a ser sede regional aglutinando aproximadamente 30 municípios vizinhos em virtude das condições de infra-estrutura de comunicação viária que servia a região, em especial pelo município apresentar sua malha urbana inserida no interior da confluência entre as Rodovias Péricles Belini e Euclides da Cunha com a via férrea da Alta Araraquarence.
Dentre as questões urbanas ligadas aos serviços, o abastecimento de água, de responsabilidade da Prefeitura Municipal, atendia a cerca de 97% da área ocupada e já apresentava problemas de disponibilidade em quantidade e tratamento. A represa de captação era insuficiente para o suprimento da demanda e havia estudos apontando para duas possibilidades, sendo a primeira, a escolha de um novo manancial de água superficial para captação ou a perfuração de um novo poço artesiano, utilizando o recurso hídrico subterrâneo, opção escolhida, diante da fragilidade da rede hídrica superficial e da disponibilidade de água subterrânea tanto do Aqüífero Butucatu[7], quanto do então desconhecido Aqüífero Guarani, mais abaixo, do qual a água para o abastecimento é atualmente retirada por dois poços profundos[8].
A rede coletora de esgotos, no início da década de 1970, cobria aproximadamente 50% da área bruta e das edificações. O mesmo ocorria com a rede de captação de águas pluviais e ambos apresentavam necessidade de ampliação.
Quanto aos pontos de lançamento de ambas as redes, coincidiam com as áreas de mananciais afetadas pela erosão. No caso dos esgotos, eram – e ainda são – lançados “in natura” no Córrego Boa Vista, próximo à confluência com o Córrego do Marinheirinho – em paralelo à Rodovia Péricles Belini – e no próprio Marinheirinho, próximo à sua confluência com o Boa Vista – em paralelo com a Rodovia Euclides da Cunha – à jusante da represa de captação da Superintendência de Águas e Esgotos de Votuporanga (SAEV), sem qualquer tipo de tratamento.
Outro importante apontamento realizado pelo diagnóstico do PDI-71 foi a insuficiência das áreas verdes e de lazer no traçado urbano, aproximadamente 1,6 m2 por habitante, índice inaceitável considerando as condições climáticas da região[9].
Foram produzidos pela equipe do PDI-71: “Leis Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo, Código de Obras de Posturas, foram aprovados pela Câmara Municipal de Votuporanga no ano de 1971, apontando que o traçado urbano não deveria transpor as rodovias e a linha férrea, ficando circunscrito em uma espécie de polígono”. Quanto à vocação econômica do município, o PDI-71 recomendava a agroindústria, o beneficiamento e transformação da produção local, apontando para a forte presença da agropecuária e incipiente indústria moveleira; foram elaboradas pranchas contendo desenhos do traçado urbano e do distrito industrial em 4 fases de expansão.
Apesar de o pacote ter sido aprovado pela Câmara Municipal, a ausência da participação pode ser percebida pelo que talvez seja o melhor exemplo de desconsideração ao PDI-71 no plano físico: o loteamento do Bairro Pozzobon[10], que ao contrário das orientações do Plano, foi implantado às margens da Rodovia Euclides da Cunha, transpondo-a, próximo ao 1º Distrito Industrial, projetado pelo próprio PDI, no setor norte da cidade.
O Bairro Pozzobon foi criado a partir da implantação de um bairro industrial destinado à população de baixa renda – COHAB – trabalhadores das indústrias instaladas ali que acabou por receber grande afluxo populacional em decorrência de vários loteamentos populares que surgiram no seu entorno.
O crescimento da malha urbana de Votuporanga após o PDI-71 deu-se de maneira intensa e em desconformidade com a Lei do Plano Diretor Físico, uma vez que não houve preocupação em se rever as diretrizes e tanto a Câmara Municipal, quanto a Prefeitura trabalharam ao logo dos anos respondendo as demandas e atendendo às necessidades do mercado imobiliário local elaborando e aprovando leis complementares, substitutivas, etc. de modo a garantir a legalidade dos empreendimentos sem, contudo se preocupar com o estabelecimento de uma política urbana que atentasse para uma cidade mais equitativa, democrática e sustentável.
Em 1991 o município tinha 64297 habitantes, sendo apenas 4206 na área rural.
Em 1995, a Prefeitura Municipal de Votuporanga, contratou a Associação dos Engenheiros Arquitetos e Agrônomos da Região de Votuporanga (SEARVO) para a revisão do Plano Diretor de 1971 (PDI) e elaboração de novas leis de uso e ocupação do solo urbano. Naquele período, a legislação nacional sobre planos diretores era algo novo, pouco debatido e ainda sem regulamentações e mecanismos de aplicação, limitando-se a cumprir um preceito constitucional, referente ao planejamento urbano. O Estatuto da Cidade, não existia e o que serviu de norte para a equipe contratada para elaboração do no Plano Diretor Municipal (PDM) foram experiências individuais, formações acadêmicas – equipe multidisciplinar composta por arquitetos, engenheiros, agrônomos, jornalistas, educadores, entre outros – e as ideologias de centro-esquerda que somadas originaram um perfil bastante particular e diferenciado para a época[11].
Para a equipe o Plano Diretor deveria seguir, em sua elaboração, o modelo participativo, com audiências públicas, em que na pauta constassem os diversos temas ou setores, sobre os quais as bases do desenvolvimento municipal se dariam e a partir dos quais se organizariam os documentos e leis que seriam produzidos.
Foram organizados dois momentos da discussão denominados “Ciclo de Debates para o Desenvolvimento de Votuporanga”, para os quais foram convidados representantes de instituições locais que compunham a chamada sociedade civil organizada.
A resposta a estes momentos de participação da sociedade local foi pouco significativa, expressa pelo baixo quorum de entidades populares e pela presença de representantes de entidade locais ligadas a grupos econômicos e políticos do município, que se sentiam de alguma forma ameaçados com a perspectiva de mudanças nas bases sobre as quais estavam historicamente estruturados.
Por outro lado, também não era do interesse de pessoas do poder público local que houvesse maior participação da população no processo, pois de acordo com a perspectiva de representantes da Prefeitura Municipal, a elaboração do Plano Diretor deveria ser de responsabilidade técnica com documentos e leis que solucionassem os problemas locais. Esta visão, fruto da tradição que separa técnica e política, contribuiu para a concepção de que o Plano Diretor serviria apenas para cumprir a legislação vigente, sem o qual, a obtenção de recursos provenientes da União seria prejudicada. Logo os conflitos entre setores ligados a política e a economia local em relação à equipe do Plano, às metodologias e temas propostos para discussão começaram a aflorar. Em muitos momentos a SEARVO era obrigada a atuar como mediadora nas tensões e nos conflitos de interesses entre a visão que a administração pública possuía do que deveria ser o processo de elaboração e o resultado final – o Plano Diretor, propriamente dito – e a visão que a equipe possuía sobre os mesmos processos e produtos.
Esta mediação freqüentemente esbarrava em dificuldades geradas pela identificação (confusão) de papéis dos atores quando a mesma pessoa exercia um cargo público e participava de uma entidade de classe, por exemplo, o superintendente da autarquia municipal de água e esgotos SAEV à época, também participava do conselho do Plano Diretor formado por membros da SEARVO.
Aí, residiram algumas dificuldades em virtude da ambigüidade presente nos dois personagens representados pelo mesmo ator social. Neste caso, a questão da água no município, fundamental para o desenvolvimento local e “calcanhar de Aquiles” para a administração pública, não foi tratada com o aprofundamento necessário, nem nas audiências públicas, nem no conselho do plano, uma vez que a crise de abastecimento de água do município parecia ter sido superada com a perfuração do poço profundo na década de 1980.
Durante todo o processo de elaboração do PDM-95, a discussão pautou-se pela lógica do desenvolvimento econômico, fato que também pontuou as discussões que se seguiram no legislativo por ocasião da aprovação da Lei do Plano Diretor, de Zoneamento, do Código de Obras.
Desde a aprovação das leis derivadas do PDM-95, diversas emendas e alterações foram realizadas pelo legislativo a fim de atender às novas demandas locais. Não obstante, a participação da população pautada nas políticas públicas e ações do poder público local, referentes ao que foi estabelecido pelo Plano Diretor Municipal, ficaram restritas a grupos, cujos interesses específicos e particulares, seguiram a lógica econômica ligada às necessidades imediatas.
A Lei do Plano Diretor Municipal, 1995: 2, trazia em seu texto a explicitação da necessidade de se considerar a função social da cidade, reforçando a importância da equidade na distribuição entre os custos e os benefícios dos investimentos públicos, “estabelecendo os limites entre o direito de propriedade do solo e o direito de construir, recuperando para a coletividade parte da valorização imobiliária resultante da ação do Poder Público”; a necessidade de se realizar a regularização fundiária e da produção habitação de interesse social. Quanto ao meio ambiente, o Plano fala de preservação, de proteção e de recuperação do meio ambiente e da paisagem urbana.
Em seu artigo 3º, a Lei do Plano nº 02829/95 diz:
“O Plano Diretor deve ser marco inicial no processo permanente de planejamento municipal, contar com a cooperação das associações representativas da população e buscar compatibilizar, o planejamento local com os dos municípios vizinhos, garantindo a efetiva integração regional” (Lei do PDM -1995 pág. 2).
A Lei do Plano de 1996 estabelece as diretrizes sobre a agropecuária; Industria; comércio e serviços; saúde; educação; cultura e patrimônio histórico e arquitetônico; esporte e recreação; turismo, bem estar social; preservação ambiental e; urbanização. Também previa a criação do Conselho do Plano Diretor, vinculado ao poder executivo e a criação de um banco de dados informatizado sobre o município, aberto à população para consulta.
Além da Lei do Plano, também foram elaborados e entregues os seguintes produtos: Código de Obras, Lei de Zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo e mapas que compõem sua base cartográfica.
O PDI-95 tem como característica o hiato existente entre o processo de discussão e elaboração das leis que gerariam o Estatuto da Cidade e seus instrumentos e a demanda municipal que motivou a criação da equipe do Plano, uma espécie sintonia política com o que se discutia nos movimentos populares e nos espaços democráticos ligados às questões da reforma urbana a parecia presente na metodologia adotada e nas premissas de que papel deveria cumprir o território urbano para a sociedade. Porém ainda não existia, no país, clareza sobre quais seriam os instrumentos legais que viabilizariam a concretização de tais preceitos, deste modo, as discussões e mesmo as propostas acabavam ficando numa dimensão muito mais teórica e ideológica do que propriamente técnica, uma vez que em 1995, numa cidade média como Votuporanga, com suas tradições sócio-culturais e políticas, esses preceitos estavam muito distantes da realidade local, portanto, quase intangíveis para a época.
Porém, alguns dos instrumentos utilizados conseguiram modificar aspectos importantes da dinâmica do território, antecipando o modelo espacial da expansão que viria a acontecer, especialmente pela instituição do perímetro urbano ampliado e pela classificação das parcelas do território em zonas de uso. Foram instituídas as Zonas de Especial de Interesse Social, que apontaram quais parcelas seriam prioritárias e especialmente consideradas pelo poder público, segundo novos critérios de uso e ocupação.
Quanto à expansão e ocupação da malha urbana, na década de 1990, houve forte valorização dos loteamentos na zona norte da cidade, primeiramente planejados para atender as camadas de baixa renda da população, que passaram a ser procurados pela classe média local, fato que provocou alterações na distribuição da população trabalhadora no território intra-urbano de Votuporanga, fato possível de ser observado na tabela a seguir.
O perímetro urbano foi pensado pelo PDM-95 como um polígono ampliado objeto da projeção do crescimento esperado da cidade para o horizonte temporal de 20 anos. Os estudos indicavam que se mantendo a dinâmica de crescimento populacional média dos 50 anos anteriores e a densidade habitacional observada naquele momento (1995) a cidade ocuparia uma área de cerca de 40 km2. Este deveria ser o perímetro planejado, objeto do zoneamento e das diretrizes do sistema viário. Desta forma o crescimento urbano seguiria padrões de comportamento e desenho previamente elaborados e fixados em lei.
Daquilo que se apresentou no anteprojeto da Lei do Plano Diretor, apenas o extremo nordeste foi retirado do perímetro oficial sob a alegação de que seria um exagero imaginar que a cidade atingiria tamanha dimensão em 20 anos. Contudo a Câmara de Vereadores aprovou recentemente por unanimidade a ampliação do perímetro no extremo nordeste – reincorporando o que havia sido suprimido da Lei do PDM-95 – preparando-se para receber grandes investimentos privados em habitação popular[12].
O processo de elaboração do Plano Diretor de Votuporanga (PDV) em 2005 se deu em virtude da necessidade legal de revisar os Planos Diretores, pelo menos a cada, dez anos[13]. Assim, Prefeitura Municipal contratou uma equipe técnica multidisciplinar formada por engenheiros, arquitetos, sociólogos, geógrafos, advogados, entre outros, para este trabalho, em conformidade com as diretrizes e preceitos previstos no Estatuto da Cidade e com a responsabilidade de fazê-lo de modo participativo, lançando mão dos instrumentos legais de gestão do território urbano.
Mesmo com o suporte de uma legislação tão abrangente como o Estatuto da Cidade, diversos equívocos se apresentaram na metodologia de elaboração do PDV-06, a começar pelos mecanismos de participação. O município foi dividido em 4 partes, ou macro zonas e a população foi convidada a participar das audiências públicas do Plano Diretor pelo site da Prefeitura Municipal, pelo carro de som, rádios e panfletos. Não houve preparação, envolvimento ou outro tipo de contato mais próximo a população. O material utilizado mais se assemelhava a uma publicidade informativa de que o poder público local estava realizando um Plano Diretor e de que ele era participativo por regulamentação do Estatuto da Cidade. Mas não se constituiu em um instrumento de formação, que levava a população à tomada de consciência sobre as questões cotidianas que deviam ser discutidas e para as quais deveriam ser apresentadas propostas de solução ou, pelo menos de enfrentamento dos problemas urbanos. Este material não era educativo apesar de ter uma organização didática, não levava o leitor a refletir sobre as questões da cidade ou o estimulava a participar das audiências públicas.
Afastando-se da perspectiva de revisão do PDM-95, a nova equipe preferiu romper com as propostas de zoneamento e instituiu parâmetros para um modelo espacial – contradizendo um dos princípios fundamentais dos Planos Diretores que buscam a consolidação de uma cidade mais adensada e sustentável. Assim, foram fixados tamanhos mínimos de lote – maiores do que os praticados tradicionalmente – não apontando quais parcelas do território são zonas de especial interesse; criando áreas de lazer como unidades de conservação sem a devida fixação de recursos para as desapropriações, entre outros.
Dessa forma, o Plano voltou-se ao modelo anterior de planejamento, de constituição de modelos ideais de cidade, utilizando-se o planejamento como um ferramental ideológico, distanciado da cidade real. (Villaça, 2005)
Estudos demográficos realizados em Votuporanga demonstraram que a taxa de fertilidade atingiu, nos últimos anos, índices próximos aos europeus (1,7) e média de 3,09 indivíduos para o módulo familiar. Como aumentar o custo do solo para famílias menores? A principal demonstração de que a ausência da participação popular permitiu a manipulação foi a instituição do Coeficiente de Proporcionalidade Básico 2 para a área central e 1 para outras áreas da cidade. Essa alteração revela que a “influencia da opinião pública” se deu a partir das necessidades do poder econômico e político local, golpeando o principio de isonomia entre os proprietários urbanos e afastando a possibilidade de obtenção de recursos oriundos do imposto progressivo e operações urbanas para alimentar o fundo municipal, cujo objetivo é o investimento em infra-estrutura para áreas menos desenvolvidas do território urbano.
Sobre isto o Estatuto da Cidade é claro ao dizer que:
“Perpetua-se uma dinâmica altamente perversa sob o ponto de vista urbanístico – de um lado, nas áreas reguladas, são produzidos ‘vazios’ e áreas subutilizadas; de outro, reproduz-se ao infinito a precariedade dos assentamentos populares” (p.25).
O plano dividiu a cidade em diferentes macro-zonas de uso e o conceito de Zona Mista foi amplamente utilizado mais com o único critério, o de solucionar as dificuldades em se delimitar as diferentes características de usos que ocorrem na cidade, abandonado a proposta de agrupamento e organização dos usos compatíveis.
O principal resultado dessa lei criada a partir do PDV-06 é a paralisação dos processos de licenciamento para a abertura de empreendimentos de todos os tipos, criando grandes impasses. Desde uma oficina mecânica até um grande loteamento de interesse social passam meses aguardando uma solução de continuidade, uma vez que os órgãos da administração não conseguem aplicar a Lei sem impedir o conflito entre vizinhos ou provocar a ira dos empresários.
Por anos a cidade adaptou-se ao conceito de Zonas de Predominância de Uso (zona mista), porém com vocação muito bem definida. Os usos impactantes foram direcionados para as áreas mais próximas dos eixos rodoviários e distritos industriais, assim, poucos conflitos ainda permaneciam em 2006. Atualmente os problemas de incompatibilidade de usos, aumentam as demandas dos processos administrativos na Prefeitura por modificações pontuais na Lei. Assim amplia-se a ilegalidade e a informalidade na produção do espaço urbano, ampliando a desigualdade no acesso aos serviços e de constituição de cidadania (Santos, 1993).
Recentemente a Associação dos Profissionais da Construção Civil de Votuporanga (APCV) entidade que se originou de uma dissidência da SEARVO – Associação dos Engenheiros Arquitetos e Agrônomos da Região de Votuporanga solicitou ao atual prefeito o restabelecimento imediato da Lei 2830 (Parcelamento, Zoneamento Uso e Ocupação do Solo) de 1996 (PDM 95). Os termos do ofício são contundentes no que diz respeito à inoperância da Lei atual e dos absurdos por ela causados.
Ao se tratar de áreas ambientalmente frágeis, também se optou pela facilidade do discurso conservacionista estabelecendo como áreas restritas à ocupação 60 metros entorno das nascentes de corpos d’água que abastecem a represa de captação. O discurso ecológico serviu apenas para encobrir a dificuldade em se lidar com a pressão de ocupação de uma área cujas regulamentações de ocupação devem ser, de acordo com a legislação, realizada sob condições especiais de uso e ocupação, valendo-se de manutenção, fiscalização e emprego de tecnologias objetivando evitar conseqüências desastrosas, tanto do ponto de ambiental, quanto urbanístico. A urbanização com condições especiais não só é possível, como menos dispendiosas do que a criação de mega estruturas de lazer e desapropriações como vinha sendo proposto pela equipe do PDV-06. Por outro lado, esse discurso “ambientalmente correto” foi feito de costas para um problema crescente no município que são as plantações de cana-de-açúcar e as usinas de álcool instaladas no entorno.
Figura 1. Represa de captação de água da SAEV. |
O perímetro traçado pela lei em 2006 procurou eliminar áreas já em expansão na tentativa de proteger a represa de abastecimento. A proposta do parque vinha com a argumentação baseada num antigo discurso local de que um parque de lazer de grandes proporções seria o desejo popular. Tal argumentação não considera que usos inadequados das dependências do parque podem ser tão ou mais nocivos à conservação da represa do que a ocupação do entorno. Além do que, não há vinculação entre o projeto e a capacidade orçamentária do município de desapropriar, construir e manter uma estrutura de reserva com tais proporções, que já tem processo de urbanização em andamento, como se pode ver na fotografia acima, disponível no site da Prefeitura.
Ao mesmo tempo em que se retirou essa área do perímetro consolidado, foram mantidas outras muito menos importantes para a expansão urbana como as que se localizam a sudoeste do município com poucas conexões viárias ao polígono central.
Atualmente multiplicam as tentativas de reformar o plano por meio de leis reparadoras, emendas ou substitutivos. Também tem se adotado como alternativa se retomar as conceituações do PDM-95 naquilo que for mais conveniente.
Essa sobreposição de leis que não passaram por ampla discussão pública seja pelas audiências, seja pelo próprio plenário legislativo tem se constituído em entraves sociais que tendem a ser solucionados por parâmetros econômicos, especialmente os vinculados aos interesses dos especuladores imobiliários.
Nas zonas industriais, outro se não, aponta para outro equivoco de ordem urbanística. A zona dos denominados Parques Empresariais vai ocupar uma região aonde a possibilidade de implantação de projetos habitacionais populares vinha se consolidando. Apenas parte desta área a Noroeste do perímetro urbano possui vantagens de localização das plantas industriais relacionadas aos requisitos contemporâneos de proximidade dos eixos rodoviários.
É fundamental salientar que a ausência de participação popular no processo de elaboração dos Planos Diretores não só ameaça os interesses da parcela mais carente no que se refere às ações de uma justa distribuição dos benefícios da urbanidade, mas também permite que se instale a inoperância e a desestruturação das políticas de planejamento e a gestão urbana.
Conclusão
Durante o processo de análise e estudos foi possível perceber que o modelo de planejamento e gestão do território é historicamente calcado mais na autoridade técnica do que na participação popular e que algumas considerações sobre problemas urbanos são comuns aos três Planos Diretores de Votuporanga ( 1971, 1995 e 2006). Mas o fundamental quem sabe, seja que a disponibilidade política para a participação ainda está muito aquém do que exige a legislação brasileira e do que é necessário para que haja a produção de cidades mais democráticas, equânimes e sustentáveis, seja do ponto de vista econômico, social ou de uma ordem urbanística menos predatória.
O PDM 95 talvez tenha sido o que obteve os melhores êxitos graças a vários aspectos, mas entre eles destaca-se a participação – ainda que aquém do esperado – da sociedade organizada e da forma como foram conduzidos os trabalhos técnicos, a metodologia de elaboração manteve o diálogo permanente com as representações da sociedade local como um todo. Há o aspecto da formação ideológica dos membros da equipe técnica que em sua reflexão podem omitir ou privilegiar determinados pontos conforme a compreensão das questões abordadas. Também a forma como se apresentaram os dados para a discussão aberta que pode ampliar ou refrear o debate, mas o fato é que ele existiu e foi realizado com todos aqueles que se dispuseram a fazê-lo. É, portanto, possível questionar a metodologia, a participação em termos quantitativos, mas não é possível afirmar que não houve empenho em envolver a sociedade local em seus diversos seguimentos.
Em 2005, ano da elaboração do PDV-06, a cidade vivia o apogeu de uma administração que a retirou de uma de suas piores crises. É possível que este fato tenha amortecido o impacto do Plano Diretor sobre os setores populares pela crença de que as coisas seriam realizadas conforme aquela administração publica vinha procedendo.
A equipe responsável pela elaboração do Plano se manteve reclusa e discutiu seletivamente com um pequeno grupo de profissionais da SEARVO. Muitas das determinações legais que regulamenta a elaboração de planos não foram totalmente cumpridas, como recomendado, por exemplo, não se colocou em discussão e nem existiu para a apreciação da comunidade a uma metodologia que, como determina o Ministério das Cidades deveria ser discutida e aprovada em Audiência Publica. Esse fato denuncia a precariedade do projeto e a sua validade como instrumento da política urbana com apoio popular. Mais do que isso, sua legitimidade é passível de questionamento, o que tem sido feito sistematicamente quando por motivos de discrepâncias, impasses ou disparidades. Novas emendas ou substitutivos ao texto da lei são feitas ou, mais constrangedor ainda, setores solicitam que volte a vigorar este ou aquele artigo da lei de 1996, para ver solucionada uma questão de ordem prática.
Deste modo, nota-se a ausência de instrumentos para fiscalizar e coibir os descumprimentos e as distorções das legislações, facilitando a adoção o modelo vigente de planejamento e gestão local que é a do poder do capital especulativo imobiliário. A partir dos levantamentos realizados neste estudo, algumas questões revelam-se inquietantes e, ao mesmo tempo, estimulantes na busca de propostas de metodologias locais de participação e constituição de processos contínuos de planejamento, quais sejam:
1) O processo de participação deve ser vivenciado e apropriado por todos os atores sociais envolvidos em espaços para que os diferentes segmentos e seus representantes possam realizar o debate estendido à sociedade; 2) O Poder Público deve ter compromisso com a formação ampla e irrestrita da população para que esteja instrumentalizada e mobilizada para a participação e deve assumir seu papel de mediador dos conflitos sociais na condução do processo, sem abandonar sua função técnica; 3) O processo participativo de planejamento e gestão da cidade deve servir de estímulo e fomento ao surgimento de espaços de discussão, reflexão e participação popular na gestão e planejamento local para que a cidade seja cada vez mais produto de sua sociedade e menos instrumento de exclusão.
É importante destacar que os obstáculos a participação popular em Votuporanga não se constitui em um caso isolado, longe disso, é recorrente nas pequenas e médias cidades brasileiras que vivenciam situações sociais, culturais, políticas e econômicas que oprimem e limitam a participação do cidadão com mecanismos de clientelismo, coerção e manipulação. Por isso muitas situações podem parecer semelhantes quando lançadas em âmbito geral, mas são bastante singulares no seu contexto local.
Historicamente, a exclusão social ocorre na medida em os instrumentos de participação são utilizados para manipular a legislação e criar a desigualdade no território urbano; espraiam na periferia os conjuntos habitacionais e condomínios residenciais, mantém vazios urbanos nas áreas centrais, favorecendo a especulação imobiliária, ignorando ocupações irregulares, reproduzindo a lógica perversa do capital no território.
Os Planos Diretores deixaram suas marcas em Votuporanga e este artigo procurou pontuá-los, discuti-lo e analisá-los com suas conseqüências na dinâmica do território, na produção do espaço urbano e na sociedade local a quem, – seja pelo legitimo direito à cidade, seja por imposição da legislação brasileira – todos estes processos deveriam priorizar, pois segundo Chico de Oliveira (2002), “a luta pela cidadania é a forma mais moderna, contemporânea, do conflito de classes”.
Notas
[2] Sérgio Mota, Engenheiro Civil de formação, dirigiu grandes empresas de consultoria, foi Ministro de Telecomunicações no governo FHC de 1994 a 1998 e comandou o processo de privatização empresas estatais de telecomunicações.
[3] O Prefeito Municipal na época era o Sr. Ernani de Matos Nabuco, eleito pela ARENA, partido de suporte político do governo militar.
[4] Revolução Verde é o nome do desenvolvimento e utilização de insumos agrícolas (inseticidas e adubos químicos) que garantiam maior produtividade, beneficiando especialmente às monoculturas de produtos destinados à exportação. Atualmente, com a evolução tecnológica a utilização dos transgênicos é o modo como as grandes indústrias, que anteriormente dominavam o mercado de insumos, dominam o mercado de sementes acentuando a dependência dos produtores em relação aos monopólios de patentes.
[5]Expressão do Então Ministro da Economia Delfim Neto que explicava a demora em se realizar a distribuição de renda argumentando que seria necessário primeiro o bolo crescer para só depois reparti-lo.
[6] A percepção política das elites e profissionais locais no Brasil quanto ao ambiente urbano é a um ambiente de negócios imobiliários nos quais os proprietários e os legisladores tem ganhos garantidos. Assim geralmente a gestão municipal, longe de qualificar – se para implementação dos serviços públicos locais e interesses comuns, subordina-se a essa lógica. Bueno, 2007; Vainer, 20000
[7] A época não havia informações disponíveis sobre o Aqüífero Guarani, o que provoca certa confusão quanto ao nome do aqüífero explorado para o abastecimento de água de Votuporanga, notadamente nos documentos da autarquia municipal SAEV (Superintendência de Águas e Esgotos de Votuporanga e CETESB, 2004).
[8] O primeiro poço profundo perfurado foi na Vila Muniz na década de 80 e o segundo, em 2004, no Bairro Pozzobon.
[9] A classificação do clima na região, segundo Koopen AW (clima tropical),temperatura média nos meses mais quentes é cerca de 37ºC, e no mês mais frio 10ºC, ficando a temperatura média anual por volta dos 24 ºC, de acordo com o Diagnóstico do Plano Diretor Municipal de 1995.
[10] O Bairro Pozzobon, recebeu esta denominação em homenagem ao empreendedor imobiliário local e ex-Prefeito Municipal por 3 vezes, o Sr. Mário Pozzobon. O que popularmente é chamado de “Pozzobon” compreende também os bairros Brisas Suaves, Santa Amélia, Votuporanga I, Pró-Povo, Jabuticabeiras, Loteamento Jd. Morini, Loteamento Vl. Residencial Bortoloti, Parque Rio Vermelho, Parque das Nações I e II, COHAB Cris, Jd Residencial do Prado, Jardim N.S. Aparecida, Jd. Stª Iracema, Conj. Habitacional Ver. José Nunes, Jardim Canaã, Conj, Habitacional João Albarelo, Loteamento Pq. Residencial Colinas e Vl. Célio Honório Junior, em sua maioria bairros surgidos entre as décadas de 80 e 90, após a abertura do Loteamento Pozzobon.
[11] Apesar de a Constituição Federal conter artigos garantindo a função social da propriedade e afirmado diversos direitos, como à saúde, ambiente saudável, serviços públicos, seu texto fez remeter a formalização a leis específicas federais e municipais, através do Plano Diretor. Com vimos anteriormente o Estatuto da Cidade foi aprovado somente em 2001. Portanto, entre 1988 e 2001 os municípios que procuraram implementar a reforma urbana através de seus planos locais, muitas vezes tiveram revezes políticos e legais devido à falta da regulamentação. Nesse sentido a experiência do PDM-95 em Votuporanga foi pioneira. (Sant’Ana, 2007)
[12] Este fato se deve aos programas de habitação de interesse social do Governo Federal, especialmente do “Minha Casa, minha vida” da Caixa Econômica Federal.
[13] Estatuto da Cidade: Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001 que estabelece diretrizes gerais da política pública urbana. 2ª ed. Instituto Polis – São Paulo, 2002. pág.58.
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