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Índice de Scripta Nova

 

AVALIAÇÃO DA DINÂMICA DO USO DA TERRA NA BACIA DO ARROIO SANTA BÁRBARA – PELOTAS (BRASIL), NO PERÍODO DE 1953 A 2006

Adriano Luís Heck Simon
Universidade Estadual Paulista
adrianosimon@yahoo.com.br

Gracieli Trentin
Universidade Estadual de Campinas
gracitrentin@yahoo.com.br

Cenira Maria Lupinacci da Cunha
Universidade Estadual Paulista
cenira@rc.unesp.br

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Avaliação da dinâmica do uso da terra na Bacia do Arroio Santa Bárbara – Pelotas (Brasil), no período de 1953 a 2006 (Resumo)

A dinâmica de uso da terra vincula-se aos ciclos do sistema socioeconômico. Assim, este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de avaliar as transformações no uso da terra ocorrida na Bacia do Arroio Santa Bárbara (Pelotas – Brasil), ao longo de 53 anos (1953 – 2006), destacando elementos do sistema socioeconômico que contribuíram para este processo. A análise desta dinâmica ocorreu a partir da elaboração de mapas de uso da terra dos anos de 1953, 1965, 1995 e 2006. As transformações espaciais ocorridas na bacia Santa Bárbara representam um processo regional, que aponta para a diminuição das áreas de pastagem em função do aumento das terras de cultura. Tal situação deriva da crise na pecuária voltada para o charque e da ascensão da indústria de alimentos em Pelotas que efetivou a expansão da área urbana, a redução das áreas de mata nativa e o aumento dos corpos de água artificiais.

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Evaluación de la dinámica del uso de la tierra en la cuenca del arroyo Santa Bárbara – Pelotas (Brasil), en el período de 1953 a 2006 (Resumen)

La dinámica de uso de la tierra se vincula a los ciclos del sistema socioeconómico. Así, este trabajo fue desarrollado con el objetivo de evaluar las transformaciones en el uso de la tierra ocurridas en la cuenca del arroyo Santa Bárbara (Pelotas – Brasil), a lo largo de 53 años (1953–2006), destacando elementos del sistema socioeconómico que contribuyeron para este proceso. El análisis de esta dinámica ocurrió a partir de la elaboración de mapas de uso de la tierra de los años de 1953, 1965, 1995 y 2006. Las transformaciones espaciales ocurridas en la cuenca Santa Bárbara representan un proceso regional que apunta para la disminución de las áreas de pastoreo y en función del aumento de las tierras de cultura. Tal situación se deriva de la crisis en la pecuaria encaminada para el charque (cecina) y de la ascensión de la industria de alimentos en Pelotas, que hizo efectiva la expansión del área urbana, la reducción de las áreas de flora nativa y el aumento de los cuerpos de agua artificiales.

Palabras clave: dinámica de uso de la tierra; ciclos socioeconômicos; expansión urbana; alteraciones del espacio rural; Pelotas (Brasil).

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Land use evaluation in Santa Bárbara watershed – Pelotas (Brazil) from 1953 to 2006 (Abstract)

Land use dynamics is a consequence of socioeconomic system cycles. In this context, this work was developed aiming to evaluate land use alterations in Santa Bárbara watershed (Pelotas – Brazil), during 53 years (1953 – 2006), evidencing socioeconomic elements that contributed to this process. For land use dynamic analysis, maps of 1953, 1965, 1995 e 2006 were elaborated. Spatial changes that happened in Santa Bárbara watershed represent a regional process: pasture areas had decrease while culture lands had a gradual increase. This conjuncture is a consequence of the crisis in livestock destined to salted and dried meat production and of the food industry growth in Pelotas that impelled urban expansion, forest area reduction and artificial water reservoirs increase.

Key words: land use dynamic, socioeconomic cycles, urban expansion, rural space changes, Pelotas (Brazil).

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As atividades humanas inseridas no contexto urbano-industrial e agropecuário encontram-se em constante articulação ao longo do tempo histórico, em decorrência do aperfeiçoamento das técnicas de apropriação e exploração dos recursos naturais. A ação do homem sobre o meio onde vive torna possível a manutenção da estrutura e das propostas do sistema capitalista, resultando em organizações espaciais representadas por usos da terra voltados para diversas prioridades.

A dinâmica das organizações espaciais ocorre como conseqüência da sucessão dos ciclos temporais do sistema socioeconômico, que desencadeiam, da mesma forma, a evolução da ocupação e do uso da terra. Estas fases de evolução social e econômica determinam novas características ao sistema ambiental, a partir da transformação dos recursos naturais que adquirem caráter de importância econômica durante determinado período de produção e desenvolvimento das sociedades.

Christofoletti (1999, p. 158) afirma que os recursos naturais são sensíveis ao contexto no qual são utilizados. Os componentes existentes na superfície terrestre não surgem como recursos naturais apenas por serem encontrados no sistema ambiental, mas passam a essa categoria quando ganham relevância em função da intervenção humana, pelo conhecimento de sua existência, pela noção de como podem ser tecnicamente utilizados e pela sua integração à determinada necessidade da sociedade e do capital em determinado momento histórico.

Assim, o mesmo recurso natural não é perene em sua importância ao longo do tempo nem possui a mesma relevância em todas as regiões. Esses fatores incidem sobre as formas de ocupação e uso da terra, bem como sobre sua dinâmica, uma vez que o fato do valor dos recursos naturais não ser igual no espaço e no tempo promove a evolução diferenciada dos ciclos socioeconômicos, que reflete na dinâmica das organizações espaciais.

Ross (1995) ressalta que o uso da terra pode significar um retrato estático das manifestações dinâmicas desencadeadas pelas relações socioeconômicas de um território com os elementos do sistema ambiental. Apesar do caráter estático, a interpretação desse retrato – em um único período ou em séries cronológicas – revela características que reproduzem a evolução histórico-temporal do fragmento espacial em estudo, possibilitando também uma visão futura e a estruturação de estudos geográficos que visam analisar a gênese de alterações ambientais derivadas de usos não planejados da terra.

Atualmente, existe um consenso de que as alterações temporais no uso da terra são as maiores condutoras de mudanças ambientais locais, regionais e globais, justamente pela sua intervenção direta nas condições climáticas – a partir da remoção da cobertura vegetal original – nos ciclos biogeoquímicos, na biodiversidade e, o mais importante, sobre as atividades humanas (Lambin et al., 1999).

Cada período histórico possui uma representação espacial das formas de uso da terra que atenderam, em outras ocasiões, e respondem, atualmente, a um ideal socioeconômico dominante. O estudo da evolução destas formas de uso da terra e a compreensão de sua dinâmica apontam uma série de informações que permaneceram “impressas” cronologicamente no espaço geográfico e revelam elementos da dinâmica socioeconômica que contribuíram e ainda atuam no processo de desenvolvimento e articulação das organizações espaciais.

Em face das considerações realizadas até o momento, este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de identificar e analisar a dinâmica de uso da terra ocorrida na Bacia do Arroio Santa Bárbara (RS), ao longo de 53 anos (1953 – 2006), procurando reconstituir elementos da evolução do sistema socioeconômico e suas derivações socioambientais locais e regionais.

A dinâmica de uso da terra desencadeada na bacia do Arroio Santa Bárbara exemplifica um processo histórico local e regional, ocorrido tanto no município de Pelotas como na maior parte dos municípios localizados na transição de dois importantes domínios naturais gaúchos: a região serrana (Planalto Sul-riograndense) e as áreas planas marginais a Laguna dos Patos (Planície Costeira Interna) (Radambrasil, 1986). Nesta região do estado do Rio Grande do Sul, o processo de ocupação ocorreu de forma diferenciada, sendo influenciado por ciclos econômicos agrícolas e industriais que transformaram os padrões e a espacialidade dos usos da terra ao longo de 53 anos.

Analisar a característica desse processo concede respaldo à compreensão de inúmeras situações verificadas na atualidade como: a expansão da área urbana sobre terras úmidas; a inversão dos padrões agrícolas, derivada da gênese e desenvolvimento da indústria de alimentos da região de Pelotas e a característica peculiar das áreas agrícolas voltadas à produção de arroz irrigado, que contribuíram para significativas alterações nos elementos do sistema ambiental. Neste sentido cabe ressaltar, em um primeiro momento, as características geográficas da bacia do Arroio Santa Bárbara, a fim de diagnosticar sua situação socioambiental, concedendo uma visão da conjuntura do local onde se desencadeou a dinâmica das organizações espaciais bem como as conseqüentes alterações ocorridas.

Caracterização geográfica da área em estudo

A bacia hidrográfica do Arroio Santa Bárbara localiza-se na porção sudoeste do município de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul e ocupa uma área de aproximadamente 83 Km² (Figura 1). Insere-se no conjunto de bacias hidrográficas do sistema lagunar Patos-Mirim – o mais importante sistema lagunar brasileiro – desaguando no Canal São Gonçalo, elo entre as formações lacustres citadas.

 

A área apresenta atributos peculiares quanto ao relevo por estar situada na interface de dois domínios morfoestruturais gaúchos (Figura 2): o Escudo Cristalino Sul-riograndense – mais precisamente na unidade geomorfológica do Planalto Rebaixado Marginal – e os Depósitos Sedimentares do Quaternário, entre as unidades geomorfológicas da Planície Alúvio-Coluvionar e Planície Lagunar (Radambrasil).

No primeiro domínio prevalecem litologias mais resistentes como o Granodiorito Equigranular (Philipp, 1991), enquanto no segundo ocorre a Formação Graxaim, que abrange o conjunto de Arcózios predominante na Planície Costeira Interna (Radambrasil, 1986; Delaney, 1965).

 

Essa característica geológico-geomorfológica leva à formação de sistemas pedológicos diferenciados (Figura 2), interferindo também na composição da cobertura vegetal original e nas características do sistema hidrográfico. Estes fatores tiveram fundamental importância no processo de ocupação e uso da terra na área em questão ao longo dos 53 anos analisados, pois influenciaram duas fases de povoamento que ocorreram primeiramente nas faixas de campo da região de planície e posteriormente na região serrana do Planalto Sul-riograndense (Simon, 2007, Salamoni, 2000).

 

Entre os sistemas hidrográficos que compõem o município de Pelotas, a bacia hidrográfica do Arroio Santa Bárbara caracteriza-se por apresentar um dos maiores índices de ocupação urbana. Pelotas é um dos mais importantes municípios gaúchos, pois congrega a função de pólo geo-econômico da região Sul, e exerce influência sobre um universo de 1,2 milhões de pessoas, em 19 municípios. A população estimada do município é de 342.513 habitantes (IBGE, 2006) e a área urbana efetiva de Pelotas corresponde a cerca de 30 Km², dos quais 20,32 Km² estão inseridos na bacia do Arroio Santa Bárbara, abrangendo, atualmente, parte dos bairros Fragata, Três Vendas e Simões Lopes, além de uma porção considerável da zona central e do Distrito Industrial de Pelotas (Figura 3).

Procedimentos metodológicos

A identificação da dinâmica de ocupação e uso da terra nos cenários de 1953, 1965 e 1995 ocorreu a partir da interpretação de pares estereoscópicos de fotografias aéreas. Foram utilizados os seguintes aerolevantamentos: fotografias aéreas do ano de 1953 (escala aproximada de 1:40.000); fotografias aéreas do ano de 1965 (escala aproximada de 1:60.000); e fotografias aéreas do ano de 1995 (escala aproximada de 1:25.000).

O procedimento inicial para a elaboração dos mapas constou da obtenção dos dados sobre o uso da terra, identificados nos pares estereoscópicos de fotografias aéreas. Estas informações foram representadas em layers de papel poliéster – semelhante ao papel vegetal quanto a sua transparência, porém não sofre dilatações e, assim, evita distorções dos resultados levantados a partir da análise das fotografias aéreas. Nesse layer foram destacadas as parcelas dos distintos usos da terra, a rede hidrográfica, a malha rodoviária e ferroviária de acordo com os princípios de fotointerpretação lançados por Ceron e Diniz (1966).

As classes de uso da terra foram reconhecidas de acordo com a classificação metodológica proposta por Anderson et al. (1979). Tal metodologia foi sugerida para a identificação do uso da terra por meio de dados de sensoriamento remoto, possuindo, segundo os autores citados, resultados de boa qualidade em se tratando de informações provenientes de fotografias aéreas, situação também verificada por Curan (1985) e Pereira et al. (1989).

Concluídas as atividades de fotointerpretação, os layers com as informações sobre o uso da terra foram transferidos para o meio digital e inseridos no software AutoCAD MAP 2000 em formato raster. Depois de alinhadas e georreferenciadas, as imagens foram posicionadas em segundo plano para que a vetorização dos nós, das linhas e dos polígonos pudesse ocorrer, considerando-se a base cartográfica da área.

Já a representação cartográfica do uso da terra para o ano de 2006 foi realizada a partir da utilização de imagens orbitais do software Google Earthä. O procedimento adotado para a identificação das classes de uso da terra no cenário mais atual seguiu o mesmo roteiro da elaboração dos mapas dos anos de 1953, 1965 e 1995, no que se refere à metodologia empregada para a classificação dos tipos de uso da terra e às técnicas de cartografia digital. Entretanto, a interpretação dessas imagens ocorreu diretamente na tela do computador, uma vez que as mesmas não apresentam estereoscopia. Trabalhos de campo foram realizados posteriormente, a fim de conferir maior controle e fidelidade aos dados mapeados.

No ambiente do software Google Earthä foram determinados dois pontos a partir de coordenadas UTM selecionadas, geralmente posicionadas em nós como cruzamentos de estradas e vias férreas, além de avenidas principais na área urbana consideradas mais adequadas para o georreferenciamento em decorrência de sua menor mutabilidade no tempo. Após o alinhamento de todas as imagens em formato raster, prosseguiu-se com a vetorização das classes de uso da terra.

Resultados e discussão

A aplicação do sistema de classificação de uso da terra proposto por Anderson et al. (1979) permitiu a identificação de onze diferentes classes de uso da terra na bacia hidrográfica do Arroio Santa Bárbara: área urbano/industrial; terras de cultura; silvicultura; pastagens; matas ciliares e florestas de encosta; corpos de água (lagos e reservatórios); terras úmidas cobertas por vegetação rasteira; terras úmidas cobertas por higrófitas e hidrófilas; alagados (terras alagadas pelo Reservatório Santa Bárbara); minas a céu aberto, pedreiras/minas de cascalho e as áreas de transição.

A Figura 4 apresenta a evolução dessas classes de uso da terra ao longo dos 53 anos compreendidos pela presente análise. A avaliação das transformações no uso da terra evidencia a maior dinâmica espacial de seis classes, vinculadas diretamente aos ciclos econômicos desencadeados no cenário local e regional, são elas: área urbano/industrial; terras de cultura; pastagens; matas ciliares e florestas de encosta; corpos de água (lagos e reservatórios); terras úmidas cobertas por vegetação rasteira.

 

Essas seis classes de uso da terra foram analisadas de forma detalhada, procurando compreender a sua evolução espacial dentro do contexto das mudanças socioeconômicas que ocorreram no cenário urbano e rural da bacia do Arroio Santa Bárbara e do município de Pelotas. Dentro desta análise específica, tais classes foram confrontadas, a fim de demonstrar a inversão nos padrões de uso da terra e as conseqüentes derivações deste processo.

As demais classes de uso da terra foram consideradas coadjuvantes diante da dinâmica ocorrida pelo fato de possuírem articulação espacial secundária, atrelada à evolução das classes de uso que apresentaram maior destaque nas transformações sucedidas ao longo de 53 anos.

No entanto, essas classes secundárias não foram desconsideradas, uma vez que desempenharam importante papel diante das alterações ocorridas, como no caso das áreas de transição, que indicam a passagem de um uso da terra para outro (revelando possíveis tendências), e também as áreas destinadas à silvicultura que, embora não analisadas de forma específica neste trabalho por apresentarem uma dinâmica muito reduzida, atuaram como barreiras no processo de expansão da cultura do arroz, por ocuparem notáveis extensões da bacia em questão. As classes coadjuvantes foram referenciadas ao longo do texto, procurando ressaltar elementos-chave de sua dinâmica que contribuíram para a evolução espacial das classes de uso da terra mais significativas.

A avaliação da dinâmica de uso da terra destacou em um primeiro momento as alterações ocorridas no cenário rural da bacia Santa Bárbara. Logo a seguir, foram analisadas as transformações decorrentes da evolução urbana pelotense nos limites da bacia. Por fim, são analisadas ainda duas classes de uso da terra que, em decorrência das dinâmicas agropastoril e urbano-industrial, apresentaram evoluções espaciais peculiares, pois indicam as significativas alterações ocorridas sobre os elementos do sistema ambiental da bacia Santa Bárbara.

 

Cabe ressaltar ainda que identificação e análise das alterações derivadas da dinâmica de uso da terra na bacia do Arroio Santa Bárbara ocorreu a partir de sua compartimentação em setores de análise, identificados na Figura 5. Estes setores foram delimitados de acordo com as características do sistema ambiental – em especial a geologia, a geomorfologia e os solos (Cunha; Silveira, 1997; Radambrasil, 1986), além do comportamento do uso da terra (Simon, 2007) e sua utilização no texto ocorreu no intuito de facilitar a localização dos fenômenos, auxiliando a interpretação dos documentos cartográficos.

A decadência da atividade pastoril e a ascensão da agricultura: evolução dos padrões econômicos locais

A dinâmica de uso da terra desencadeada na área rural da bacia do Arroio Santa Bárbara evidencia as complexas mudanças ocorridas nos padrões de ocupação espacial ao longo dos 53 anos compreendidos pela presente análise. As transformações mais pronunciadas envolvem as classes de uso da terra agrícola (terras de cultura) e pastoril (pastagens), tendo ocorrido à expansão da primeira sobre a segunda.

A Figura 6 representa a dinâmica dos usos da terra agrícola e pastoril na bacia hidrográfica do Arroio Santa Bárbara. Nela é possível constatar o predomínio das áreas de campo destinadas à criação de gado no cenário de 1953, as quais ocupavam uma área de aproximadamente 19,65 Km².

 

A criação de gado nos campos meridionais do Brasil estimulou o processo de ocupação, povoamento e integração do estado do Rio Grande do Sul com o restante do território brasileiro. As atividades pastoris desenvolvidas nas áreas de campo tiveram fundamental importância no processo de formação territorial da maior parte dos municípios localizados na região sul gaúcha, sobretudo do município de Pelotas, pois fortaleceram a economia regional, contribuindo para a organização dos principais núcleos urbanos.

A história da atividade pastoril no Rio Grande do Sul teve início com o bloqueio da vinda de escravos para o país, no século XVII. Tal conjuntura incitou as bandeiras paulistas a invadirem as reduções indígenas situadas à margem esquerda do Rio Paraná com o objetivo de capturar índios para o trabalho nas regiões açucareiras (Pesavento, 1997).

Os constantes ataques às reduções fizeram com que os padres abandonassem essas zonas de tensão, avançando sobre território gaúcho em 1626. Todavia, a ação dos bandeirantes não tardou a reiniciar, e por volta de 1640, houve o abandono das terras do atual estado do Rio Grande do Sul.

Os jesuítas levaram os índios para os territórios hoje compreendidos pela Argentina e Paraguai, deixando o gado que se reproduziu em larga escala. A liberdade e a quantidade dos rebanhos originaram o fundamento econômico básico de apropriação da terra gaúcha: a captura e aproveitamento da matéria-prima oriunda do gado não-domesticado (Pesavento, 1997, p. 9).

Tal atividade, realizada por vários grupos sociais, consolidou-se e demonstrou-se rentável. Das estâncias onde era desenvolvido esse trabalho originaram-se as Sesmarias – grandes lotes de terra que fragmentaram as áreas de campo do interior gaúcho em direção à fronteira com o domínio espanhol, a oeste. O município de Pelotas originou-se historicamente da concessão de um lote de sesmaria ao Coronel Thomaz Luiz Osório, em 1758.

De acordo com Vieira (1994), a ocupação inicial dessa imensa parcela de terra foi realizada por portugueses ilhéus, fugitivos das ameaças espanholas que ocorriam na vila de Rio Grande e pautava-se na produção escassa de gêneros agrícolas – trigo em especial. Em um segundo momento houve a ascensão das atividades pecuária e saladeiril com o surgimento das charqueadas e a produção do charque a partir do aproveitamento dos rebanhos de gado, sendo Pelotas considerada o berço das primeiras charqueadas gaúchas.

O charque é a carne salgada e seca originada do abate do gado, utilizado como alimento dos escravos em todo o Brasil e em países que adotavam o sistema escravista (Prefeitura Municipal de Pelotas, 2006). A criação do gado abatido nas charqueadas era realizada nas extensas zonas de campo localizadas no interior do município, área que engloba também a bacia do Arroio Santa Bárbara.

A análise do processo histórico de ascensão e desenvolvimento da atividade saladeiril torna possível a compreensão do predomínio das zonas de campo sobre as áreas agrícolas nos primeiros cenários de uso da terra analisados – 1953 e 1965 (Figura 6). Embora o término do século XIX e início do século XX já tivessem acompanhado o declínio da produção do charque, a criação de gado nos campos sulinos, especialmente na região de Pelotas, ainda era significativa em decorrência da instalação de inúmeros frigoríficos e curtumes, que utilizavam o gado criado nas estâncias. Conforme destaca Pesavento (1985, p. 12) “as charqueadas tradicionais praticamente desapareceram em meados da década de 1940, e muitas delas foram transformadas em cooperativas produtoras de carne processada e também de charque”.

A análise do cenário de 1965 (Figura 6) destaca o início de uma inversão nos padrões espaciais de uso da terra na zona rural da bacia Santa Bárbara, a partir do declínio das áreas ocupadas por campos e do aumento contínuo das terras agrícolas. A ampliação dessas últimas áreas tanto na área em estudo como no município de Pelotas decorre do desenvolvimento de um novo perfil socioeconômico regional impulsionado principalmente pelo desenvolvimento da indústria de alimentos.

A base desta indústria abrangia duas ascendentes zonas agrícolas: na região serrana de Pelotas – que na bacia Santa Bárbara engloba o setor de nascentes (Figura 5) –, instalaram-se pequenas e médias propriedades de agricultura familiar derivadas do processo de ocupação por imigrantes europeus a partir de 1848. Nestas propriedades eram produzidos gêneros agrícolas como pêssego, aspargo, alfafa, batatas, abóbora e mandioca (Simon, 2007).

Nos terrenos situados na Planície Costeira interna – correspondente ao setor de transição de litologias da bacia Santa Bárbara (Figura 5) –, as extensas áreas de campo foram dando lugar à implantação de culturas adaptadas à má drenagem dos solos de origem sedimentar. O arroz foi introduzido em larga escala e, acompanhando seu ritmo de implantação, indústrias para seu beneficiamento começaram a surgir juntamente com fábricas de processamento de frutas e olerículas.

Segundo Araújo (2002), a indústria de alimentos que se estabeleceu no Rio Grande do Sul, sobretudo na região de Pelotas com maior vigor a partir do início da década 1970, correspondia ao último nível da cadeia do agronegócio e englobava um conjunto de atividades bastante heterogêneo, caracterizado pelo simples beneficiamento de produtos agropecuários, até atividades tecnologicamente complexas e de maior agregação de valor às matérias-primas oriundas das práticas agrícolas.

Apesar da consolidação da indústria de alimentos gaúcha ter ocorrido ainda no período entre a proclamação da república em 1889 e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 (Lagemann, 1978), somente nas décadas de 1970 e 1980 foram verificadas as primeiras transformações no perfil econômico local, decorrentes do desenvolvimento deste setor industrial no município de Pelotas. Dessa forma, a continuidade do processo de expansão das áreas agrícolas sobre as zonas de campo constatadas na bacia Santa Bárbara adquiriu maior expressividade nas décadas conseguintes às analisadas nos anos de 1953 e 1965.

Assim, os cenários de 1995 e 2006 (Figura 6) representam as derivações da evolução do perfil socioeconômico regional e local, indicando a expansão significativa das terras de culturas voltadas à demanda da indústria de alimentos sobre áreas de pastagem, as quais se destinaram, em um período socioeconômico anterior, à criação de gado.

A diminuição espacial das áreas ocupadas por pastagens na bacia do Arroio Santa Bárbara de 19,65 Km² em 1953 para 3,55 Km² em 2006 e o aumento das terras de culturas – 8,22 Km² em 1953 para 25,66 Km² em 2006 (Figura 4) não se caracterizam como dinâmica unicamente local, tendo ocorrido ao longo de toda a faixa situada entre o Planalto Sul-Riograndense e a Planície Costeira Interna. Esse processo é reflexo da crise no ciclo do charque – que originou e fortaleceu a sociedade pelotense por mais de um século –, e da ascensão das práticas agrícolas voltadas à indústria de alimentos de Pelotas.

A dinâmica desencadeada entre os usos da terra agrícola e pastoril evidencia a imbricada relação dos ciclos econômicos na distribuição espacial das atividades humanas, pois a capacidade de conversão destas ao longo do tempo histórico tende a refletir diretamente sobre as características de uso da terra. Importa ressaltar ainda que as transformações do espaço rural no município de Pelotas e na bacia do Arroio Santa Bárbara tiveram papel decisivo sobre o desenvolvimento urbano local, haja vista que a partir do momento em que os modelos agrícolas associam-se às práticas industriais, constitui-se o cenário ideal para o avanço estrutural e populacional do aglomerado urbano, pois a incipiente indústria pelotense passou a absorver maior parte da mão-de-obra advinda da exclusão efetivada pelo novo perfil agrícola que também estava em constante desenvolvimento.

Outrossim, a partir do momento em que a atividade orizícola aliou-se à indústria, acabou se tornando elemento central da cadeia produtiva. Os conseqüentes lucros derivados dessa atividade desencadearam o aumento das áreas de cultivo que acabaram por se expandir sobre outros usos além das áreas de campo. Esse é o caso da evolução das áreas de arroz irrigado sobre as terras úmidas cobertas por vegetação rasteira, situadas a leste do setor de transição de litologias (Figura 5 e Figura 6).

Nessa porção da bacia, as características pedo-geomorfológicas e hidrológicas, contribuíram para a expansão de lavouras de arroz irrigado ao longo dos 53 anos abrangidos pela investigação, demonstrando a capacidade antrópica na alteração do sistema ambiental em detrimento da dinâmica do sistema socioeconômico (Figura 6). Durante o ciclo do charque, as áreas de terras úmidas cobertas por vegetação rasteira citadas, embora dominadas por pastagens de baixa qualidade, eram destinadas à criação de gado. Uma vez que os padrões agrícolas locais iniciaram o processo de transição, a ocupação dessas áreas úmidas passa a ocorrer no sentido de aproveitar a má drenagem dos solos para o estabelecimento de lavouras de arroz.

No primeiro caso, as atividades pecuárias ocorriam sem grandes alterações nos elementos do sistema ambiental (relevo e hidrografia em especial). Já no que tange as lavouras de arroz, as mesmas são estabelecidas a partir de intensas modificações na morfohidrografia das terras úmidas localizadas sobre terrenos sedimentares (Simon, 2007).

Expansão da estrutura urbana sobre as terras úmidas: derivações do processo de industrialização

A pressão exercida pelas atividades agropecuárias sobre as terras úmidas cobertas por vegetação rasteira na área rural da bacia Santa Bárbara, embora espacialmente significativa, diferenciou-se do processo de expansão da estrutura urbana de Pelotas, também desencadeada sobre essas zonas de deposição recente e verificada ao longo dos 53 anos analisados. A consolidação do núcleo urbano pelotense ocorreu primeiramente nos patamares leste e oeste, marginais aos limites da bacia, onde a característica plana dos terrenos propiciou a organização do sítio urbano (Figura 5 e Figura 7).

A evolução espacial de Pelotas nos limites da bacia Santa Bárbara, entretanto, foi dinamizada a partir da década de 1950, quando se iniciaram as obras de drenagem das terras úmidas cobertas por vegetação rasteira, localizadas no setor de várzea da baixa bacia (Figura 5).

As terras úmidas localizadas na baixa bacia Santa Bárbara inserem-se no conjunto de zonas de deposição recente características da Planície Lagunar Sul-riograndense, regionalmente denominadas de “banhados” (Cunha & Silveira, 1997). Estas terras úmidas formavam um sistema de concentração de água efêmero, para onde convergia a maior parte do escoamento da bacia de captação do Arroio Santa Bárbara. A interferência das oscilações do lençol freático exercia aspecto relevante sobre esse sistema hidrológico, controlando o regime de escoamento dos canais e as fases de desenvolvimento da vegetação rasteira (Simon, 2007).

Contudo, as terras úmidas localizadas no setor de várzea da baixa bacia exerciam um entrave ao processo de expansão urbana pelotense, uma vez que se apresentavam adversas à estruturação de loteamentos, avenidas e ruas que possibilitariam a interligação entre as duas áreas primeiramente urbanizadas junto aos patamares marginais leste e oeste. A solução para essa questão, considerada adequada pelo poder público municipal, estaria na drenagem dessas terras úmidas.

Diante dessa situação, que primava pelo desenvolvimento econômico de Pelotas, no início da década de 1950 foram arquitetados e firmados projetos que propunham a drenagem das terras úmidas do setor de várzea, por meio de obras de engenharia que incluiriam a transposição, a canalização e a retilinização do Arroio Santa Bárbara, além da construção do Reservatório Santa Bárbara (próximo ao limite norte do setor de várzea) (Figura 3 e Figura 5), haja vista que a demanda de água também não atendia mais a crescente população pelotense. Tais obras incluíram também a construção de avenidas com o intuito de conectar as duas áreas primeiramente urbanizadas, possibilitando o avanço de loteamentos, em princípio, regulares.

Dessa forma, as terras úmidas cobertas por vegetação rasteira, localizadas no setor de várzea da baixa bacia do Arroio Santa Bárbara, foram palco de grandes transformações nos elementos naturais, sobretudo na morfologia original e na rede hidrográfica. As alterações efetivadas possibilitaram a evolução da área urbana pelotense ao longo da série temporal analisada (Figura 7), porém não surtiram o efeito esperado no que tange a característica das habitações, uma vez que essas áreas, após drenadas, foram ocupadas por lotes irregulares e equipamentos urbanos cuja localização considera-se extremamente inadequada. A exemplo desses equipamentos podem ser citados o aterro municipal de Pelotas e a lagoa de estabilização de esgotos do Bairro Fragata.

A Figura 7 representa as características da dinâmica de uso da terra desencadeada na baixa bacia Santa Bárbara, apontando para a gradual evolução da estrutura urbana pelotense e a conseqüente redução das terras úmidas cobertas por vegetação rasteira ao longo de 53 anos.

 

Figura 7. Dinâmica do uso da terra urbano-industrial e das terras úmidas na bacia do Arroio Santa Bárbara (1953-2006).

 

Constata-se que no ano de 1953 as terras úmidas ocupavam uma extensão de 14,52% da área total da bacia, localizando-se, sobretudo, no setor de várzea da baixa bacia e no limite leste do setor de transição de litologias (Figura 1 D e Figura 4). A área urbanizada inserida na bacia Santa Bárbara correspondia a 15,69% da área total e envolvia as terras úmidas do setor de várzea, partindo dos patamares leste e oeste em direção ao setor de várzea (Figura 5 e Figura 7). Havia um certo  equilíbrio entre as áreas urbanizadas e as terras úmidas, uma vez que a possibilidade de expansão da estrutura urbana era precária diante das imposições efetivadas pelas áreas de banhado.

Conforme pode ser observado na Figura 7, no ano de 1953, ao sul do setor de várzea, já havia um elo entre as áreas urbanizadas existentes nos patamares leste e oeste da bacia, decorrente da maior aproximação entre tais patamares. Esta era a única ligação entre os bairros da cidade e, diante do contínuo crescimento populacional de Pelotas, havia a necessidade de dinamizar as conexões e relações espaciais, sociais e econômicas da cidade.

A análise da dinâmica de uso da terra direcionada para a evolução da área urbana sobre as terras úmidas no ano de 1965 (Figura 7) aponta para a sensível diminuição destas na área da bacia Santa Bárbara (12% da extensão total), sendo tal redução espacial mais significativa na porção leste do setor de transição de litologias e no setor de várzea da baixa bacia. Neste último, o avanço da estrutura urbana teve impulso direto das obras de drenagem das terras úmidas do setor de várzea, adquirindo características mais dinâmicas, uma vez que as terras drenadas possibilitaram a constituição de aterramentos e cortes para a efetivação de ruas, avenidas e lotes urbanos.

Tal situação pôde ser verificada durante as atividades de fotointerpretação, onde se constatou a evolução das obras de canalização e a fase inicial de construção de importantes avenidas e rodovias que, nos cenários de 1995 e 2006, despontariam como as principais conexões regionais e de fluxo urbano pelotense: Avenida Getúlio Vargas, Avenida Theodoro Müller, Avenida Pinheiro Machado, Avenida Bento Gonçalves, Avenida Duque de Caxias, BR 392 e BR 116 (Figura 3).

Em relação à dinâmica de ocupação urbana, o uso da terra no cenário de 1965 revela uma evolução pouco expressiva sobre as terras úmidas do setor de várzea (Figura 7). Isso porque as obras de engenharia efetivadas no sentido de atender o avanço da estrutura urbana pelotense somente surtiriam efeito após sua integralização. Assim, os cenários de 1953 e 1965 representam as fases iniciais de alteração espacial e estrutural das terras úmidas bem como de avanço, embora sensível, da estrutura urbana. A maior expressão na dinâmica urbana pelotense sobre as terras úmidas, constatada nos anos posteriores, foi desencadeada pelo processo de industrialização ocorrido no município que colaborou para o aumento populacional.

Dessa forma, os cenários de 1995 e 2006 representam as derivações da dinâmica de uso da terra sucedidas entre as áreas urbanizadas e as terras úmidas, destacando características espaciais oriundas do processo histórico de organização espacial da bacia Santa Bárbara, decorrente de ciclos socioeconômicos que interferiram diretamente nas características naturais para consolidar seu avanço espacial.

No que se refere aos anos de 1995 e 2006 (Figura 7) é possível verificar expressivas alterações no uso da terra na baixa bacia Santa Bárbara, principalmente no que diz respeito ao avanço da estrutura urbana sobre áreas anteriormente identificadas como terras úmidas. Em 1953, a superfície ocupada pela estrutura urbana na bacia Santa Bárbara correspondia a 13,02 Km², sendo que em 2006 a área total ocupada por instalações urbanas era de 20,32 Km².

As atividades de fotointerpretação permitiram constatar que nos patamares leste e oeste as áreas atualmente ocupadas pela estrutura urbana estiveram freqüentemente acompanhadas por áreas de transição, “que indicam a passagem de uma classe de uso da terra para outra” (Anderson et al., 1979). Essas áreas de transição apresentaram um comportamento variável durante o período analisado, possuindo dimensões areais e concentrações espaciais consideráveis nos cenários de 1953 e 1965, sugerindo que transformações no uso da terra se encontravam em andamento. Já nos mapeamentos de 1995 e 2006, verificou-se, a partir das atividades de fotointerpretação, a gradual fragmentação dessas áreas de transição, bem como a sua substituição, sobretudo pela estrutura urbana pelotense.

Essa situação possibilita diagnosticar que as áreas de transição nos patamares leste e oeste cederam espaço à expansão urbana em direção ao setor de várzea, fato constatado durante as atividades de fotointerpretação dos cenários de 1953 e 1965. Durante os trabalhos de campo nos patamares leste e oeste verificou-se que as áreas de transição presentes atualmente nessa porção da bacia continuam caracterizadas pela mescla da estrutura urbana com aspectos rurais.

A dinâmica de uso da terra verificada na baixa bacia Santa Bárbara expõe a capacidade de intervenção antrópica sobre os aspectos físico-ambientais, provocando a alteração estrutural e processual dos elementos naturais a fim de consolidar a expressividade espacial do sistema socioeconômico. A tentativa do poder público em buscar novas conexões para a área urbana de Pelotas a partir da viabilização de obras de engenharia sobre as terras úmidas, acabou não atingindo os objetivos pré-definidos, pois desencadeou problemas estruturais vinculados à ocupação irregular das áreas drenadas, confluindo na depreciação dessas áreas em face de sua localização e características físicas – terrenos inconsolidados e marginais à região central de Pelotas (Simon, 2007).

Outra questão refere-se à indisponibilidade de equipamentos urbanos básicos que viabilizariam a evolução da cidade no setor de várzea, confluindo, possivelmente, na maior valorização e ocupação ordenada da área. No entanto, o descaso com essas áreas, que dinamizariam as conexões urbanas da cidade de Pelotas, contribuiu para a ocupação irregular por populações de baixa renda, oriundas do processo de industrialização pelotense que selecionou mão-de-obra qualificada, excluindo muitos trabalhadores advindos do êxodo rural, os quais buscavam melhores condições na atividade industrial local.

Pressões sobre o sistema ambiental: a dinâmica da cobertura vegetal original e dos corpos de água

A dinâmica de uso da terra ocorrida entre os corpos de água e a vegetação nativa na bacia do Arroio Santa Bárbara seguiu padrões coadjuvantes às alterações espaciais desencadeadas com os principais usos da terra nas áreas urbana e rural. Contudo, a análise das mudanças na cobertura vegetal original e nos corpos de água revela informações que complementam o processo histórico de evolução das atividades locais, ocorrido ao longo de 53 anos.

A sensível redução das áreas de mata nativa deriva do processo de ampliação das zonas agrícolas nos setores de transição de litologia e de nascentes, bem como, em menor grau, da expansão urbana ocorrida na baixa bacia Santa Bárbara. A avaliação da dinâmica das áreas de vegetação nativa ocorrida ao longo de 53 anos pode ser verificada a partir da análise da Figura 8, que ressalta a diminuição de 0,45% da área total dessa classe de uso da terra, equivalente a 0,37 Km².

 

No setor de nascentes da bacia do Arroio Santa Bárbara, bem como em toda a zona de transição entre o Planalto Sul-riograndense e a Planície Costeira Interna, a presença de áreas de vegetação nativa encontra-se comumente associada aos fundos de vale dos principais canais de drenagem, uma vez que nas vertentes suavemente convexas e nos topos por vezes planos dessa região é comum a ocorrência de áreas de campo nativo, decorrentes das características geológicas, geomorfológicas e pedológicas da área (Simon, 2007; Rambo, 1994).

Ainda de acordo com Simon (2007), as florestas nativas identificadas nos fundos de vale dos principais canais fluviais da bacia do Arroio Santa Bárbara, possuem um papel importante no equilíbrio da dinâmica geomorfológica e fluvial. Elas atuam na contenção do escoamento pluvial oriundo das vertentes, contribuindo para a assimilação das descargas de água e sedimentos, evitando a chegada precoce e em grande escala desses materiais ao leito dos arroios.

Assim, em virtude da importância das matas nativas para o equilíbrio morfodinâmico da bacia Santa Bárbara, considera-se que a redução de sua distribuição espacial, embora quantitativamente sensível, possa surtir efeitos significativos sobre os processos erosivos que se desencadeiam na área. Tal situação diz respeito à diminuição do tempo de chegada do escoamento pluvial aos canais de drenagem e do conseqüente assoreamento dos mesmos em decorrência do intenso acúmulo de materiais no leito dos arroios. Como resultado desses distúrbios, as áreas destinadas às atividades agrícolas tendem a sofrer maior ação dos processos denudacionais, derivados dos reajustes nos processos morfogenéticos, causando perdas para os agricultores.

As áreas de mata nativa encontradas nos fundos de vale da bacia do Arroio Santa Bárbara vêm sofrendo pressão direta do avanço das atividades agrícolas. Essa influência ocorre tanto por parte das atividades agrícolas familiares, desenvolvidas no setor de nascentes, como das áreas de cultivo do arroz irrigado, no setor de transição de litologias (Figura 3, Figura 6 e Figura 7). A expansão das zonas agrícolas ultrapassou o limite das áreas antes ocupadas por pastagens, ampliando-se também sobre as matas nativas, situadas nos fundos de vale dos principais canais de drenagem, causando a redução gradual dessa classe de uso da terra.

As novas possibilidades decorrentes da crescente indústria de alimentos que se instalava em Pelotas – e que se utilizava, sobretudo da produção agrícola regional e local – estimularam a atividade rural tanto na região serrana da bacia (produção de frutas e olerículas) como nas áreas de relevo suave da Planície Costeira Interna (produção de arroz irrigado). O aumento anual das áreas agrícolas acabou desencadeando a constante remoção da vegetação nativa em muitas propriedades, visto que a ampliação das lavouras significava aumento na produção e nos lucros decorrentes desse processo aos produtores rurais.

A evolução urbana de Pelotas também contribuiu para a paulatina eliminação dos resquícios de vegetação nativa encontrados na baixa bacia Santa Bárbara. Já em 1953 (Figura 8) os fundos de vale, que nos cenários conseguintes seriam ocupados pela estrutura urbana pelotense, haviam sido desmatados. Fragmentos de cobertura vegetal original identificados nos cenários de 1965, 1995 e 2006 (Figura 8) são decorrentes de projetos de reflorestamento com espécies nativas em área urbana. Esses projetos acabaram degradados em função do avanço de habitações irregulares, compostos por autoconstruções, conforme verificado durante a realização dos trabalhos de campo na área.

Cabe ressaltar que a Figura 8 evidencia o aumento espacial das áreas de vegetação nativa no intervalo entre os cenários de 1953 e de 1965 (1,87 Km² para 2,15 Km²). Tal situação é decorrente de dois fatores principais: (1) o aumento da escala das fotografias aéreas de um cenário para outro (1953 – 1:60.000; 1965 – 1:40.000), que possibilitou maior identificação de detalhes das classes de uso da terra na bacia Santa Bárbara; (2) no cenário de 1965 a drenagem das terras úmidas localizadas no setor de várzea da baixa bacia já haviam surtido consideráveis efeitos. Assim, muitas áreas que prevaleceram com as características arbustivas e arbóreas inalteradas após a drenagem das terras úmidas foram classificadas, no cenário de 1965, como zonas de mata nativa.

A sensível dinâmica ocorrida com as áreas de vegetação nativa contrasta com a amplitude da dinâmica dos corpos de água na bacia do Arroio Santa Bárbara. Essa classe de uso da terra compreende reservatórios de pequeno, médio e grande porte, com significativa expressão na área em estudo, bem como em toda a extensão das terras situadas entre o limite do Planalto Sul-riograndense e da Planície Costeira Interna gaúcha.

A análise dos cenários de uso da terra dos anos de 1953, 1965, 1995 e 2006 evidencia um considerável acréscimo areal dos corpos de água: 0,30 Km² em 1953 para 3,53 Km² em 2006. O aumento desta classe de uso é conseqüência direta das alterações desencadeadas nos padrões agrícolas regionais e locais, e também ocorreu como conseqüência do crescimento populacional na cidade de Pelotas.

A inserção da cultura do arroz irrigado nas zonas de relevo plano com solos mal drenados da Planície Costeira Interna gerou a organização de um complexo sistema agrícola, que envolveu a alteração das irregularidades das vertentes a partir da anulação dos caimentos topográficos e do escoamento superficial. O arroz irrigado é cultivado em canchas de cultivo situadas em um mesmo nível topográfico sendo que quanto maior a inclinação da vertente mais compartimentada ela será para que as canchas de cultivo mantenham a água sob o mesmo nível, propiciando a produção ideal (Althoff & Kleveston, 1996).

Os açudes são construídos para que uma reserva de água esteja sempre disponível para o abastecimento das lavouras de arroz irrigado dentro das canchas de cultivo. Esses açudes são, via de regra, construídos de forma a interceptar os canais fluviais, evitando baixas de reserva mesmo em períodos de estiagem. Como a análise da dinâmica de uso da terra evidencia o aumento nas áreas agrícolas de cultivo de arroz irrigado, conseqüentemente, aumentam também os corpos de água que estão associados ao complexo agrícola estruturado para tal cultivo, conforme se verifica na Figura 8.

No setor de nascentes o aumento dos corpos de água está atrelado às atividades agrícolas familiares bem como à fruticultura voltada à indústria de alimentos que se desenvolveu na cidade de Pelotas. Nessa porção da bacia, os açudes geralmente são utilizados para criação de peixes, bem como para a irrigação das lavouras de frutas, sobretudo em períodos de baixa pluviosidade.

Entretanto, a evolução espacial dos corpos de água tem como principal vetor a dinâmica de uso da terra ocorrida em área urbana. Os planos elaborados para a drenagem das terras úmidas localizadas no setor de várzea da baixa bacia Santa Bárbara previam a construção de um reservatório de água com duas funções principais: num primeiro momento esse reservatório concentraria todo o escoamento fluvial oriundo dos setores de nascentes e de transição de litologias. Após concentrada no reservatório, a água escoaria por um canal artificial principal, retilíneo, que seccionou a zona de terras úmidas do setor de várzea. Desta forma, as terras úmidas não mais receberiam grande parte do escoamento superficial da bacia de captação, sendo, gradativamente drenadas para a ocupação por lotes urbanos (Simon, 2007).

A segunda função do reservatório era ambiciosa e baseava-se na futura instalação dos novos lotes urbanos nas terras, então drenadas, localizadas no setor de várzea da baixa bacia. De acordo com os planos do poder público municipal, ao propiciar o aumento da área urbana pelotense deveriam existir estruturas que comportassem o conseqüente aumento populacional. Assim, o reservatório Santa Bárbara, inaugurado em 07 de setembro de 1968, viria a suprir a necessidade por água tratada, e em suas adjacências fora construída a Estação de Tratamento de Água de Pelotas, sob responsabilidade do Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas – SANEP. O lago formado pelo reservatório corresponde a aproximadamente 2,7 Km² e justifica o salto de evolução espacial apresentado pelos corpos de água na bacia do Arroio Santa Bárbara (Figura 8).

Desse modo, observa-se a estreita interligação e o papel de destaque que as zonas de vegetação nativa e os corpos de água representaram à dinâmica desencadeada entre as principais classes de uso da terra na área em estudo. O aumento dos corpos de água esteve associado à transição dos ciclos econômicos no município de Pelotas e na bacia Santa Bárbara, que marcou a passagem de uma sociedade predominantemente voltada e estruturada à atividade pecuária para a atividade agrícola que fomentaria o processo de industrialização e o aumento populacional do município de Pelotas. Ao mesmo tempo, as pressões agrícolas influenciaram a sensível diminuição das matas nativas, que já ocupavam extensões espacialmente restritas da bacia, colaborando para que reduções em áreas de importância ambiental continuem ocorrendo.

A área urbana pelotense presenciou um crescimento estrutural e populacional derivado da transição entre os ciclos econômicos supracitados, se rearticulando para desenvolver-se diante das novas relações sociais e econômicas que se encontravam em ascensão. Dessa forma, as zonas de mata nativa e os corpos de água aparecem novamente como intrínsecos coadjuvantes da dinâmica ocorrida entre as terras úmidas e a área urbana, uma vez que o aumento de lotes urbanos, planejados ou irregulares, avançou sobre fragmentos isolados de matas nativas e reservatórios de grande porte tiveram que suprir a demanda de água atrelada a uma população crescente.

Considerações finais

A dinâmica de ocupação e uso da terra ocorrida na bacia hidrográfica do Arroio Santa Bárbara encontra-se diretamente vinculada à evolução dos padrões socioeconômicos do município de Pelotas e da região sul do estado do Rio Grande do Sul, onde os ciclos econômicos foram caracterizados pela transição da atividade pecuária – mantenedora da sociedade do charque – para os cultivos agrícolas associados ao processo de industrialização, com destaque para a indústria de alimentos que se desenvolveu no município de Pelotas.

Esta condição determinou a transformação dos padrões de ocupação do espaço geográfico, desencadeando significativas alterações no perfil agrícola da bacia Santa Bárbara e do município de Pelotas. O ciclo do charque passou por contínuo declínio e as atividades agrícolas adquiriram maior importância econômica, especialmente após a introdução da cultura do arroz irrigado nos terrenos planos e mal drenados da Planície Lagunar gaúcha.

A dinâmica do uso da terra ocorrida no espaço rural repercutiu diretamente sobre o espaço urbano-industrial pelotense, uma vez que o incremento populacional contribuiu para a ampliação do aglomerado urbano. Tal expansão foi acompanhada por uma série de planos de desenvolvimento urbano arquitetados pelo poder público, que visavam a ocupação de áreas consideradas estanque, como as zonas cobertas por vegetação rasteira, denominadas regionalmente de banhados.

Assim, a expansão urbana promoveu a drástica redução espacial das áreas de terras úmidas, características da Planície Lagunar gaúcha, lançando mão de obras de engenharia que transformaram os elementos do sistema ambiental da bacia Santa Bárbara, alterando os ciclos naturais para promover a evolução do aglomerado urbano.

Esta redução foi particularmente maior na bacia do Arroio Santa Bárbara, uma vez que se trata do sistema hidrográfico pelotense com maior índice de ocupação antrópica e evolução da estrutura urbana.

Tais obras de engenharia, no entanto, não atingiram seu objetivo e confluíram em problemas infra-estruturais urbanos decorrentes do descaso na implantação de políticas de ocupação adequadas, que resultaram em um processo de ocupação desordenada – desencadeado, sobretudo, pelos excluídos do processo de industrialização e inversão do perfil agrícola na bacia Santa Bárbara e no município de Pelotas.

As novas características do espaço rural e urbano-industrial promoveram, ao longo dos 53 anos compreendidos por esta análise, alterações significativas na cobertura vegetal original da bacia Santa Bárbara, que já cobria escassas áreas. Esta situação é resultado do aumento gradual das áreas de cultivo que ocorre principalmente sobre as faixas de mata ciliar presentes nas margens dos principais leitos fluviais.

O acréscimo no número de reservatórios artificiais também pode ser compreendido como efeito das alterações no perfil agrícola e urbano-industrial da bacia do Arroio Santa Bárbara. Na área rural, a inserção de um maior número de corpos de água artificiais vincula-se ao complexo produtivo do arroz irrigado, que demanda constante reserva hídrica em períodos secos e úmidos. No contexto urbano-industrial, por sua vez, a construção de reservatórios de grande porte decorreu da necessidade de água potável por parte da crescente população pelotense, principalmente no auge da industrialização, na década de 1970.

Por fim, constatou-se um complexo arranjo espacial desencadeado pela dinâmica do uso da terra ocorrido ao longo de 53 anos na bacia do Arroio Santa Bárbara. Tal intervalo de tempo mostrou-se significativo para análises que pretendem compreender a interferência dos ciclos econômicos no processo de alteração das características do espaço geográfico a partir das transformações no uso da terra.

Além disso, o tempo compreendido pela presente análise demonstrou que, apesar de se tratar de um período de transição entre dois ciclos econômicos distintos, já é possível verificar uma estagnação na dinâmica de uso da terra tanto no espaço rural como no espaço urbano-industrial. Tal afirmação encontra respaldo na pequena dinâmica espacial ocorrida entre os anos de 1995 e 2006 e que abrange os principais usos da terra discriminados para a bacia Santa Bárbara.

Desta forma, pode-se antever uma tendência de estagnação no ritmo da dinâmica espacial da bacia do Arroio Santa Bárbara para os próximos períodos, caracterizada por baixos níveis de expansão urbana e evolução espacial pouco significativa das culturas do arroz irrigado. Esta desaceleração não resulta de um processo de paralisação econômica, mas pelo contrário, pode apontar a maturidade alcançada pelo novo ciclo econômico, onde o atual uso da terra responde pela estrutura que mantém o sistema socioeconômico.

 

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