Menú principal
Índice de Scripta Nova
Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788.
Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XI, núm. 245 (3), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica

A “GEOGRAFIA CRÍTICA” E A CRITICA DA GEOGRAFIA

Ana Fani Alessandri Carlos
Professora Titular do Departamento de Geografia
Universidade de São Paulo
anafanic@usp.br


A "geografia crítica" e a crítica da Geografia (Resumo)

Diante de um mundo em crise, as soluções possíveis passam, necessariamente, pela potência analítica capaz de revelar as contradições que explicitam a dinâmica da realidade, assim como pela necessidade de superar a produção ideológica do conhecimento que tem permitido a reprodução do sistema ao fundar a idéia de uma “Geografia aplicada” ao planejamento, sob a orientação do Estado. As transformações na Geografia revelam que o pensamento crítico e radical, condição da compreensão do mundo, que avançou muito no Brasil nos anos 70/80, acha-se agora em refluxo. A Geografia está inundada pelo pensamento neoliberal que impõe a eficiência e a competência – qualidades intrínsecas à burocracia – como objetivo último. Assim, a atividade de pesquisa se vê submetida às exigências do mercado, recolocando a questão do papel do geógrafo na compreensão da sociedade atual.

Palavras-chave: espaço, produção do espaço, Geografia, metageografia


“Critical Geography” and the critical of the Geography (Abstract)

In the presence of a world in crisis, the possible solutions pass necessarily through the analytical potency capable to disclose the contradictions that make explicit the dynamics of the reality, as well as through the necessity of surpass the ideological production of the knowledge that has allowed the reproduction of the system by establishing the idea of a Geography applied to the planning, under the orientation of the State. The transformations in Geography bring out the fact that the critical and radical thought, condition of the understanding of the world and that has advanced so much in Brazil in the 70´s and 80´s, is now flowing back. Geography is flooded by the neoliberal thought which imposes the efficiency and the competence - intrinsic bureaucracy qualities - as objective last. Thus, the research activity is submitted to the requirements of the market, restoring the question of the role of the geographers in understanding the current society.

Key words: space, production of space, geography, metageography


O momento histórico que estamos vivendo, não raramente, é definido como crítico. Diante da crise concreta – que envolve vários níveis da realidade, apresentando-se como crise social, econômica, ecológica e cultural – surge a necessidade imperiosa de se buscar caminhos para sua superação. Mas à crise prática associa-se, ainda, uma crise teórica, fato que nos faz lembrar a idéia de Morin (2004:91) segundo a qual atualmente se agravam todas as incertezas, da ecologia à ação, do desafio, da estratégia, de todas as contradições éticas; crises que favorecem e estimulam as interrogações, a tomada de consciência, as buscas de soluções novas e, nesse sentido, ajudam as forças regeneradoras (criativas), embora ao mesmo tempo favoreçam soluções  patológicas e a busca de soluções imaginárias ou quiméricas. Na ambivalência da crise, o importante para a ética é não ceder à histeria, pois é nos momentos de crise que há degenerescência e regeneração da mesma.

Ainda segundo o autor, um certo utopismo banal ignora as impossibilidades, isto é, a relação entre possível e impossível, que é variável segundo as condições históricas, o que significa que a incerteza em reconhecer o possível e o impossível varia em função de cada situação concreta.

A interpretação da realidade ilumina seus conflitos latentes, o que impõe desafios para sua compreensão, pois a crise real e concreta decorre dos conflitos gerados pelo movimento das contradições, que exige um projeto capaz de orientar as estratégias que permitam pensar um conjunto de possibilidades. Isso traria, nos termos apontados por Marx, a exigência de um projeto ético/estético, fundado numa teoria social, fundamentada em um conhecimento crítico e radical. 

Deste modo, um debate sobre as soluções possíveis diante de um mundo em crise passa, necessariamente, pela potência analítica das ciências sociais, capaz de revelar as contradições que explicitam a dinâmica da realidade. Portanto antes de se buscar soluções que permitam a reprodução do sistema capitalista, faz-se necessário encontrar as possibilidades de sua superação – e, de fato, o desenvolvimento do capitalismo provou, concretamente, que ele não tem uma “missão civilizatória”.

A atual situação da Geografia revela que o pensamento crítico e radical, condição da compreensão do mundo e que assinalou mudanças profundas nos anos 70 e 80 no Brasil, encontra-se agora em refluxo. Em muitos casos, a geografia foi invadida pelo pensamento neoliberal que impõe a eficiência e a competência – qualidades intrínsecas à burocracia – como objetivo último, fazendo com que esta ciência ganhasse uma expressão ideológica o que recoloca a questão do papel (responsabilidade) do geógrafo na compreensão da sociedade atual. Tal mudança foi feita sem uma profunda e rigorosa crítica das possibilidades e limites do pensamento de Marx, bem como da chamada “geografia crítica”, fundada nesta perspectiva teórico-metodológica.

É indispensável afirmar que existem várias possibilidades e caminhos para pensar o mundo através da Geografia. No momento crítico atual, porém, não há consenso sobre estas possibilidades, mas como todo consenso é autoritário (na medida em que destrói ou subjuga a diferença), este momento adquire riqueza indiscutível. Todavia o diálogo entre estas correntes, não se faz sem imensas dificuldades, uma vez que é difícil reconhecer a crítica como imanente ao ato de conhecer.

Este texto apresenta um debate inicial necessário, embora não suficiente[1] e dialoga com alguns poucos artigos que se propõe a fazer uma crítica (direta ou velada) à Geografia Crítica, e tem como objetivo estabelecer um debate teórico-metodológico, que ao desvendar os conflitos reais, iluminando as contradições permita elaborar um projeto ético.


A crítica da chamada “Geografia crítica”
[2]

Um problema que parece central neste debate, é que a Geografia abdicou do marxismo sem uma crítica aprofundada sobre o modo como esta perspectiva permitiu construir uma compreensão da realidade, de seus limites e possibilidades. Muitas críticas partem do pressuposto, generalizante e, nem sempre correto, de que a geografia crítica reduziu a obra de Marx a um dogma ou ao plano político, concluindo como decorrência, que, com a derrocada do socialismo, o marxismo certamente pereceria. A crítica grosseira identifica o projeto utópico de Marx com o socialismo real, mas sem levar em conta, que Marx escreveu sobre uma realidade, certamente diferente da nossa e que, portanto, nunca se tratou (por parte de Geografia crítica) de buscar em sua obra conceitos e temas de modo a construir “um discurso para justificar as pesquisas geográficas”. Marx legou um método de análise da realidade e com isso permitiu o deslocamento da produção do conhecimento dos planos epistemológico ou ontológico para a compreensão da prática social em seu movimento real e virtual construindo uma filosofia da praxis.

O artigo de Diniz (2002), é um bom exemplo do raciocínio que quero traçar, uma vez que contempla uma síntese dos elementos da crítica comumente feita à “Geografia crítica”[3]. Sem deixar de apontar o aspecto positivo do artigo, que coloca em debate a Geografia, algumas ressalvas são, todavia, necessárias. O texto se propõe fornecer alguns subsídios para a “reflexão aprofundada sobre a crise do marxismo”, apontando a necessidade de rever “não apenas os postulados básicos do discurso (sic) científico do marxismo ou as insuficiências da perspectiva materialista ortodoxa no trato da temática cultural, mas também a urgência de reavaliar a visão que a Geografia tem da sociedade capitalista e das relações sociedade/espaço, nesse contexto histórico concreto”. Todavia, a elaboração da crítica requer como premissa o conhecimento do assunto e aqui se identifica automaticamente, o pensamento de Marx com a “leitura enviesada” que alguns geógrafos fizeram da obra do mesmo. A ausência de rigor e a generalização sobre este legado para a Geografia desembocam num discurso ideológico e preconceituoso. Escreve o autor que “o problemático, nessa comunidade de influência marxista, é o fato de que o marxismo, que informa os trabalhos de muitos geógrafos, ainda é o marxismo dogmático característico das décadas de 70 e 80” (Diniz, 2002:86). Um marxismo que segundo o autor simplesmente se “utilizou as categorias de Marx”, “referenciando seus estudos em Marx”, criando um “discurso científico marxista” (p. 86) ou  mesmo um “jargão Marxista” (p. 101), mas nunca um conhecimento crítico e radical da realidade brasileira tendo como espinha dorsal o materialismo dialético.  Parece ser despropositada, também, a generalização de que a influência do marxismo na Geografia tenha sido, exclusivamente, de vertente político-ideológica. É bem verdade que a obra de Marx foi reduzida, dogmatizada e desconhecida por muitos geógrafos que se “pretendiam marxistas”, mas isso não é passível de generalização.

Se Diniz acerta quando constata em Milton Santos a proposta de elaborar uma visão crítica da sociedade ancorada no legado marxista, erra ao acreditar que autores como Lacoste, Harvey e Soja, apenas se utilizaram intensamente de conceitos e teorias de “extração marxista” com o intuito de “incorporar o marxismo à Geografia” ou mesmo “reduzindo a idéia de ideologia aquela falsa consciência”. Ora, o leitor atento desses autores certamente chegará a uma outra conclusão, por exemplo, a de que estes autores pensaram a realidade com os fundamentos teórico-metodológicos herdados por Marx, prolongando ou mesmo superando algumas de suas idéias. O problema central, sem dúvida, é o fato de que muitos geógrafos “ditos marxistas”, efetivamente, abdicaram de formular uma crítica radical à sociedade desigual na qual vivemos, crítica esta capaz de revelar  a dialética do mundo.

A sociedade do século XXI coloca-nos questões muito diferentes daquelas vividas por Marx no século XIX e, portanto, não se trata de “buscar em Marx” (como muitos, efetivamente, fizeram) as respostas para as novas questões com as quais nos deparamos, nem de ignorá-lo pelo fato de que produziu suas idéias no século XIX. A ciência nasce da prática e como tal, muda, transforma-se, tem uma história e o “saber adquirido se coloca em questão e o momento de dúvida pertence ao saber como aquele de afirmação” (Lefebvre, 1980:75). Todo pensamento se manifesta histórica e socialmente em seu contexto. Estamos diante da necessidade da construção do conhecimento pelo processo crítico, momento de explicação determinado historicamente que se supera constantemente, e que requer um pensamento que contemple o virtual, pois “é  o impossível que guia o conhecimento do possível“.[4] Isto significa que a análise crítica deve focar o escondido ou apenas esboçado, para  iluminar os resíduos. Nessa perspectiva, o conhecimento é radical porque vai até as raízes das ações dominantes, dissimuladas, enfocando o movimento dialético entre contradições e termos conflitantes.

É esclarecedora a idéia de Heller (1983) de que a crise faz parte do marxismo e não deve ser considerada como uma tragédia: “Honestamente não me sinto em crise, talvez, porque simplesmente, escolhi o meu próprio Marx. E, com base nessa interpretação, busco definir suas alternativas filosóficas. O marxismo se encontra diante de problemas difíceis, mas que surjam esses problemas!  Com efeito, há também tarefas terrivelmente fáceis; é muito fácil, por exemplo, pôr fim de um só golpe aos direitos de liberdade; pensar em resolver tudo por meio de uma ditadura; tudo isso é absurdamente fácil. Conseguir construir uma sociedade plenamente democrática e socialista ao contrário é um trabalho muito difícil.  Não pode ser imaginado de modo romântico”.

Diniz, no artigo supra citado, ignora o fato de que a proposta utópica de Marx só é possível com o “fim do Estado” e não com seu fortalecimento, que é o projeto hegeliano e também generaliza de maneira incorreta que “os geógrafos marxistas defendem a natureza reflexa do espaço frente à sociedade”.

É possível que a crítica do autor à Geografia econômica (marxista) encontre eco por haver, em muitos aspectos, uma leitura economicista da obra de Marx, bem como uma insistência em explicar o mundo moderno a partir das teorias que explicavam a realidade do início do século XX, sem necessidade de pensar nos desdobramentos destas, mas a menção aos estudos urbanos[5] carece de argumentação, principalmente se considerarmos o fato de que ao contrário do que afirma o autor, o materialismo dialético e a noção de “produção” tal qual analisados por Marx (noção esta cujo conteúdo o autor ignora, pois a reduz, como muitos outros geógrafos[6], a apenas uma de suas determinações) permitiu a construção da passagem da noção de “organização do espaço” para aquela de “produção do espaço”, muito diferente da idéia de reflexo da sociedade tal qual apontada pelo autor. Isto porque a noção de produção se vincula à produção da humanidade do homem e diz respeito às condições de vida da sociedade numa multiplicidade de aspectos, e como é, por ela, determinado. A noção de produção tal qual proposta por Marx aponta, por sua vez, para a reprodução e evidencia a perspectiva de compreensão de uma totalidade que não se restringe ao plano do econômico, mas abre-se para o entendimento da sociedade em seu movimento mais amplo, o que pressupõe uma totalidade mais ampla e muda os termos da análise espacial. Noção ampla envolve a produção e suas relações mais abrangentes, e significa, neste contexto, o que se passa fora da esfera específica da produção de mercadorias, e do mundo do trabalho (sem, todavia, deixar de incorporá-lo) para estender-se ao plano do habitar, ao lazer, à vida privada, guardando o sentido do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reprodução da sociedade. Neste sentido, a noção de reprodução abre como perspectiva analítica o desvendamento de uma realidade em constituição.

Assim, a produção como categoria central de análise abre a perspectiva de analisar, antes de mais nada, a vida humana, pois aponta, em cada momento um determinado grau de desenvolvimento da história da humanidade, o que significa dizer que a produção se define com as características comuns em diferentes épocas. A noção de produção se sustenta, neste aspecto numa realidade concreta, em relações reais que se desenvolvem no bojo de um movimento real. Como a noção tem um caráter histórico, mais do que pensar numa produção específica, o conceito em Marx  é globalizante e aponta tendências contraditórias - renovação/conservação/ preservação/ continuidade/ rupturas - esse é o movimento delineado por Marx nos Grundrisse. Como a produção envolve o movimento da reprodução, a análise da prática espacial atual revela a produção/reprodução do espaço e isto nos permite prolongar a obra de Marx. Nesse sentido, a produção ilumina a reprodução, que em seu sentido amplo permite compreender o lugar do cotidiano e do turismo no mundo moderno, em sua dimensão espacial. A noção de produção, por outro lado, articulada, inexoravelmente, àquela de reprodução das relações sociais lato senso - num determinado tempo e lugar - num plano mais amplo apontando para o sentido filosófico do termo “produção em Marx”.

Para Lefebvre, a produção atravessa no século XX um período de modificação qualitativa, pois antes a produção quantitativa predominava quase que exclusivamente (coisas e objetos), e a partir dos anos 60, começa-se, a produzir, cada vez mais, imagens, textos, signos, compondo um conjunto de produção imaterial - o que vai caracterizando, no entanto essa produção é sua ambigüidade, isto, é a produção de imagens, signos permite sonhar, inventar, mas na maioria dos casos esta produção imita e simula uma realidade já existente. Neste aspecto, a relação produção-reprodução-repetição pesa sobre a prática social, esboçando-se um conflito entre a produtividade (repetitiva) e a criatividade[7]. Assim, o conceito de reprodução renovado e estendido ganha papel importante na teoria espacial.

Com efeito, longe de encarar os desafios impostos pela obra de Marx, muitos “geógrafos marxistas” preferiram o fácil caminho de sua negação sem maiores críticas.


A crise da Geografia

O primeiro problema com o qual nos deparamos é o estabelecimento dos sintomas dessa crise. Um ponto que parece importante hoje, como ponto de partida para a reflexão, é o abandono do marxismo sem uma crítica profunda e conseqüente capaz de enfocar seus limites, bem como a necessidade de sua superação. Tal comportamento acarretou o abandono de conquistas importantes no sentido de permitir a construção de uma teoria crítica a partir da Geografia.

A crítica superficial da “geografia crítica” desembocou num preconceito que impede qualquer perspectiva de diálogo. Assim, o que poderíamos chamar de uma crise do marxismo (na Geografia) chegou mesmo a produzir o preconceito contra o pensamento teórico e a negação de qualquer contribuição deste pensamento na construção do pensamento geográfico.

É indiscutível que a realidade atual revela profundas metamorfoses sinalizando a necessidade de desvendamento do conteúdo e sentido destas transformações que são conseqüências da realização do capitalismo no plano mundial, como momento da reprodução da sociedade, saída da história da industrialização que permitiu ao mesmo tempo o desenvolvimento do mundo da mercadoria, a generalização do valor de troca, o desenvolvimento das comunicações, a expansão da informação, a redefinição das relações entre os lugares, bem como da divisão do trabalho no seio da sociedade. A extensão do capitalismo no espaço, ele próprio tornado mercadoria, faz da produção do espaço um pressuposto, condição e produto da reprodução social no mundo moderno; elemento definidor dos conteúdos da prática sócio-espacial, modificando as relações espaço-tempo da vida social, redefinindo antigas contradições e produzindo novas. É assim que à transformação do espaço se alia a necessidade da compreensão pela Geografia desse movimento/momento da realidade, posto que o dinamismo no qual está assentado o processo de conhecimento implica em profundas transformações no pensamento geográfico. Assim, a transformação do espaço exige a transformação da Geografia enquanto processo de superação, e esse processo requer explicação.

Um segundo elemento definidor deste momento critico é sinalizado pelo entendimento da realidade enquanto ecossistema, o que reduz a ação social e histórica da sociedade àquela (in)definida da “ação antrópica”. Como decorrência deste raciocínio, o espaço é reduzido a um  quadro físico inerte, passível de sofrer maior ou menor intervenção humana, construindo  um processo de “naturalização da sociedade”, isto porque a  idéia de ecossistema naturaliza, um fenômeno que em essência é social – a produção do espaço como condição e produto da realização da vida humana.

Nesta orientação a análise desemboca numa fórmula mágica, a busca do “desenvolvimento sustentável”, como caminho único possível de resolver os desequilíbrios do ecossistema em função das ações que degradam a qualidade ambiental e, com isso, a busca de um “novo equilíbrio”. Assim as contradições que estão no cerne da realidade são banalizadas, pela idéia de ecossistema, como modelo (fechado) de inteligibilidade do mundo que, ao apontar uma ordem estabelecida, apela para sua manutenção. Neste ponto a sistematização evita o diferente  e desemboca, necessariamente, na  busca de uma  harmonia, e de uma ordem a ser estabelecida. Nesta postura  encobre-se o fato de que sociedade não artificializa a natureza, mas  produz “um mundo” à sua imagem e semelhança: desigual e contraditório, impondo a necessidades de desvendar  o conteúdo das relações sociais a partir da consideração das práticas espaciais em conflito.

Atualmente, os pesquisadores defrontam-se com problemas postos pelo processo de reprodução do capital que, ao se realizar, criou profundas contradições dentre elas o que se chama de degradação da natureza, mas com isso também produziu estratégias e um discurso sobre a sua conservação, ambos como decorrência de sua necessidade de continuar o processo de acumulação submetido ao jogo da maximização do lucro das empresas. Isto significa dizer que a busca desenfreada do lucro trouxe profundas transformações na natureza, degradando-a, e com isso reproduzindo-a como raridade. Assim, a natureza tornada rara torna-se “novamente mercadoria” e nesta condição retorna ao mercado e bons exemplos desta nova realidade são a construção e venda dos condomínios fechados bem como o turismo ecológico.

O terceiro elemento repousa no fato de que o pensamento crítico e radical, condição da produção de um conhecimento geográfico do mundo em que vivemos e que avançou muito no Brasil nos anos 70 e 80, agora se encontra em refluxo e este é a meu ver o significado mais profundo da crise constatada pela presença de um “certo preconceito” contra a teoria. Como conseqüência disto, ocorre o esvaziamento do tempo lento da reflexão submetido ao tempo veloz que nos faz “produzir por produzir”. “Aqui a obrigação de produzir aliena a paixão de criar”[8] e é assim que aos poucos a atividade de pesquisa – presa ao universo empírico -  é capturada pelas exigências do mercado que sob o manto da “competência” recoloca a questão do papel do geógrafo na sociedade atual, num outro patamar.

O apelo ao mercado que “encanta” muitos geógrafos cria a falsa impressão de que nossa atividade quando aliada a ele se volta para a sociedade, quando na realidade caminha na direção da instrumentalização do conhecimento para o mercado e revela o caráter utilitário da ciência produtora de informação. Esse parece ser o caso da busca de modelos de todo tipo para orientar políticas espaciais que criou uma febre por mapas. Os mais engajados produzem os Atlas e mapas que pretendem criar indicadores que permitam detectar as “áreas de exclusão”, de forma a orientar a ação do estado nesta direção. Convém lembrar que o mapa, como síntese em si, obscurece os processos que explicam e superam a representação cartográfica em direção a compreensão dos fenômenos analisados ou que se pretende analisar. Parece promissora a elaboração por Mançano (2004) de um “banco de dados da luta pela terra”, mas o modo como a equipe elabora o artigo apresentado na revista Terra Livre (dedicada à análise dos movimentos sociais e tendo como subtítulo o termo “multiplicidade teórica e metodológica”), coloca-nos alguns problemas. O primeiro deles se refere ao fato de que a distribuição espacial das ocupações em si não esclarece as lutas, uma vez que não ilumina sua negatividade, mas apenas as localiza espacialmente; o segundo tem a ver com a questão de que os títulos das figuras (p. 93 e 94) reduzem a Geografia à dimensão da localização dos fenômenos. Além disso, a preocupação em esclarecer os procedimentos técnicos de coleta de dados deixa de lado a explicitação dos processos que localizam e conduzem às lutas e seu papel no cenário contemporâneo, o que poderia auxiliar a elaboração de um projeto de sociedade.

O refluxo trouxe, a meu ver, recuos (ao invés de superações) no que se refere ao poder analítico da geografia, como por exemplo, com a negação:

a) da importância da noção de totalidade dialética legada pelo materialismo dialético que permitiu superar o esfacelamento em que se encontrava a Geografia subdividida em temas/especialidades e propondo uma outra compreensão da realidade;

b) da noção de produção que permitiu superar a idéia de espaço como palco da ação humana, possibilitando a compreensão da dimensão social  do espaço produzido por uma sociedade diferenciada por classes, superando as análises que viam a sociedade como agrupamento indiferenciado de pessoas – tratou-se, fundamentalmente do movimento de passagem da quantidade para a qualidade.

O caminho baseado nos dois elementos acima citados permitiu à geografia caminhar do particular ao universal, propiciando o aprofundamento dos debates em torno da construção teórica da geografia – do sujeito e dos objetos de análise. As possibilidades abertas pelo método dialético de pensar a realidade em seu movimento contraditório permitiu fazê-lo em sua dimensão real e virtual, apontando a exigência de formulação de um projeto de sociedade e com isso, uma nova ética.

A crítica elaborada por Claval (2002) permite mapear outros recuos. Segundo este autor,

a gênese de um novo enfoque cultural se acha ligada ao aumento da insatisfação dos pesquisadores à procura de novas perspectivas, sob a influência de uma corrente filosófica, a fenomenologia, e ao reforço de atitudes cada vez mais críticas em relação à ciência em geral e às ciências sociais em particular (...)[9]

A perspectiva cultural implica na renúncia aos pontos de vista totalizantes e lança mão de generalizações sem fundamentos sólidos que estas proporcionavam. Ela parte do indivíduo e de suas experiências porque é através delas que os homens descobrem o mundo, a natureza a sociedade, a cultura e o espaço. Trata-se de um enfoque que “indaga também a respeito do real, da maneira como é percebido, das palavras que dizem e das imagens que o traduzem” (Berdoulay,1988)[10].

Com efeito, é no nível mais elementar que apreendemos a constituição do social e este se implanta através das representações que as pessoas recebem do mundo que as cerca e que constituem as grades das quais recebem o real. Ora, Claval se esquece que não há no mundo moderno uma identificação imediata entre o espaço real e concreto da vida e a sua representação, a consideração do “cotidiano” enquanto categoria de análise (decorrente do desdobramento da noção de reprodução) revela, de forma clara, este fato; ao mesmo tempo que o autor parece ignorar a dimensão ideológica das representações. Por outro lado, a noção de espaço produzido pela sociedade se dilui na elaboração da paisagem enquanto imagem. Não é sem sentido que Claval conclui que “o espaço constitui um palco onde as pessoas se oferecem um espetáculo”. É necessário aí um palco ou palcos, onde os atores possam atuar, uma platéia e  camarotes para aqueles a quem o drama, a comédia ou a tragédia interessam (...) O palco deve seu caráter aos atores que nele se encontram,  à  peça que interpretam, ao cenário em que acontece. O conjunto tem uma certa unidade: é o que faz dele um lugar”[11].

Há neste raciocínio uma mudança no conteúdo da prática social onde o homem deixa de ser sujeito para encanar o papel secundário de ator, além da passagem do real para o imaginário.

O enfoque cultural se interessa pela maneira como as realidades são percebidas e sentidas pelos homens; se esses consideram que tal fonte, tal bosque, tal montanha ou tal edifício são sagrados, o pesquisador deve tomar isso em conta do além (sic), descobrem-se perspectivas sobre o nosso mundo que permitem julgá-lo, entender o que não funciona e ver como corrigi-lo[12].

E aqui cabe ao debate geográfico sobre a impossibilidade da Geografia  produzir uma teoria capaz de explicitar a realidade em função de seu aprisionamento aos estudos de casos, se esvanece,  agora não é mais o lugar em si, específico e singular o  foco da análise Geografia, é o sujeito em si, imerso em suas alienações em suas representações que vai produzir a análise intersubjetiva. Decreta-se assim, a morte da sociedade, pois o que importa, agora, é o sujeito preso a sua situação individual. As conseqüências deste raciocínio são muitas; a cidade, por exemplo, deixa de ser obra da civilização para, como afirma Berque, tornar-se um simples campo de experiência[13], e presa a uma sociedade imaginária.

Outra conseqüência é a autonomização da esfera cultural. Ao definir o que chama de “approche culturel”, Claval (2004) se prende a “analisar a complexidade das situações culturais e ver como os grupos diferentes chegam a viver em conjunto e a enriquecer mutuamente – o conhecimento destas  experiências a Geografia pode contribuir para a vinda de um mundo melhor e situações mais justas”[14] (...)  “Os geógrafos pararam de se preocupar somente com os produtores, eles se prendem a experiência que as crianças, as mulheres, ou os velhos tem do meio em que vivem”[15] .

Além desta, duas outras “vertentes” analíticas que ganham expressão atualmente na Geografia são a chamada “Geografia aplicada" e uma “certa Geografia do turismo”, que parecem revelar recuos importantes. A Geografia Aplicada que, enquanto saber, submete-se às exigências e necessidades do Estado[16] através da elaboração dos relatórios de impacto ambiental como conhecimento necessário para embasar sua ação se realiza ignorando o debate realizado em torno do sentido do planejamento como expressão de uma organização racional que escamoteia conflitos necessários à produção de um espaço de dominação política, logo homogêneo, que entra ora, em contradição/conflito com o espaço dos interesses específicos da reprodução do capital (ora se aliando a ele, ora em confronto a ele) e priorizando o social apenas quando pressionado.

No caso da cidade, a produção deste  discurso reduz o espaço urbano à  sua função econômica, o que impõe uma racionalidade ao espaço e exigiria  uma solução técnica para superar o cenário de crise que ela vive atualmente. Nesta lógica, a idéia da cidade bem administrada aparece como projeto viável e é assim que surgem os novos prefeitos–empresários uma nova mercadoria - a cidade. A “gestão empresarial da cidade“, por exemplo, vende a própria cidade no mercado mundial – cujo caso típico é Curitiba ou Barcelona[17] - posto que as soluções urbanísticas agora aparecem como um “novo produto no mercado global“. Esse discurso encobre o fato de que a vida na cidade é incompatível com a racionalidade imposta – no espaço – pelo processo de reprodução atual alicerçado no processo de globalização. Aqui ciência é usada para alimentar e justificar a prática do Estado onde os relatórios técnicos servem como base para a realização do poder no espaço que faz tabula rasa da prática sócio-espacial esvaziando-a de sentido e, nessa direção, reduzindo a noção de espaço aquela de quadro físico e de cidadão a usuário de meios de consumo coletivo dispostos no espaço.

Preocupados com a aplicação do “conhecimento”, “os técnicos”, participam de equipes interdisciplinares que, imersas em suas especialidades, cada vez mais restritas, perdem o sentido social da ciência e o documento final realiza uma “soma de pareceres de especialistas sobre este ou aquele assunto”. No caso de nossa disciplina podemos citar como exemplo o EIA-RIMA da Operação Urbana Faria Lima em São Paulo (realizado em 1992, cuja lógica converge na busca de argumentos para fundamentar a política malufista de intervenção urbana num lugar da cidade, através do planejamento urbano), que não se preocupou em “forjar uma análise errônea” da realidade” ao ignorar o que a imprensa veiculava, que era os movimentos contrários a  realização desta intervenção. É necessário que se esclareça que enquanto o relatório minimizava a existência dos movimentos de cidadãos organizados em luta contra o projeto a prefeitura, negociava com seus líderes fazendo concessões.(mudança no procedimento das  desapropriações, preços , etc).

A Geografia do turismo produz dois tipos de trabalho, de um lado a produção de uma análise crítica do turismo enquanto nova atividade econômica, produto da extensão preocupada com o desvendamento do momento da reprodução do espaço, onde o turismo como um novo ramo da economia requer uma análise aprofundada sobre seu papel na reprodução social; e de outro lado mostra a preocupação com as necessidades do mercado que encontra no turismo um elemento de reprodução do capital, através da venda de particularidades do espaço. Nesta direção, coloca-se a tarefa para o pesquisador,  de criar as estratégias capazes de tornar atrativos, os lugares para consumo, numa sociedade em que todos os momentos da vida cotidiana se acham penetrados e dominados pela realização da mercadoria. Nesse sentido o turismo e o lazer, enquanto momento da reprodução do espaço - suscitados pela extensão do capitalismo – tornam-se  mercadoria de desfrute, passíveis de serem consumidos e isto coloca aos geógrafos a preocupação de pensar no potencial de “venda dos lugares” capazes de reunirem atrativos turísticos, através da produção de um “discurso competente”.

Para Coriolano (2001)[18], por exemplo, “um imaginário coletivamente proposto é capaz de transformar o real, criando hipóteses que geram critérios para a atuação e identificação das ações turísticas a serem desenvolvidas nas comunidades de turismo”[19](...). É esclarecedora a idéia apresentada pela autora de que o “turismo não poderia ser diferente do que existe no conjunto de nossa sociedade. Se o modelo de desenvolvimento é injusto, segregador, elitista e neoliberal, fica muito difícil fugir deste esquema”[20]. Como conseqüência, “posto esse dado que não se pode fugir mas se pode criticar, uma das principais preocupações referentes ao turismo é realizá-lo de forma a desenvolver uma distribuição melhor de riqueza e renda, aumentar empregos e ajudar a diminuir as desigualdades. Sendo  o turismo uma atividade dinamizadora da economia, como desenvolvê-lo de modo a gerar renda para as comunidades receptoras? Como o turismo pode desenvolver a comunidade local. O turismo local – dos trabalhadores- precisaria se incentivado objetivando o acesso ao turismo  por todos, a dinamização das economias locais e a criação da cultura do turismo voltada ao desenvolvimento local”[21]. Deste modo conclui que “só é possível falar de lazer e turismo porque existe o trabalho. A exaltação exacerbada do trabalho fez surgir o não–trabalho, que é o lazer (...) a coerência entre os níveis de atividade gerada na interface da imagem, do espaço imaginado com a realidade do espaço consumido é um dos principais fatores de sustentação da dinâmica do crescimento turístico nacional, regional ou local”.[22]

O cenário acima esboçado faz aparecer no horizonte da pesquisa Geográfica, algumas questões: a) até que ponto, o espaço (a cidade, o campo) tornados sujeitos produtores de situações e de tomada de decisões não encobriria as estratégias da reprodução social, que para se realizar necessita hoje produzir um “outro espaço”?; b) de que forma o debate sociedade-natureza reduz-se à idéia de preservação ambiental, com decorrência de um apelo catastrofista, que desloca a preocupação da produção da crise ecológica para socializar seus resultados? c) estaria a cidade, obra da civilização, reduzida, hoje a sua dimensão natural (meio ambiente urbano) trazendo como conseqüência a naturalização das relações sociais? d) em que medida, ao invés de contestar a concentração da propriedade privada (da terra e da riqueza produzida) como elemento fundante do processo de produção do espaço (impondo profundas restrições à realização da vida) os geógrafos têm se empenhado em encontrar uma “função social” para a propriedade? e) até que ponto as contradições e conflitos da produção do espaço, transformadas em desequilíbrios, embasando a “sustentabilidade” como projeto de uma nova sociedade, poderão ser ignoradas? f) em que medida os estudos geográficos abdicaram de produzir uma crítica ao Estado, buscando uma solução político-institucional para as contradições que vivemos hoje? g) A geografia dos anos 80 produziu um conhecimento que lhe permitiu desvendar a realidade que produz o espaço enquanto mercadoria como decorrência da extensão do capitalismo. E, no entanto, essa construção analítica vem sendo abandonada no momento em que todo o espaço é produzido como mercadoria - o turismo revela esta situação com a passagem do consumo no espaço para o consumo do espaço tornado mercadoria disposta no mercado; bem como a transformação da gestão urbana. Qual é o sentido deste fato?


O caminho da metageografia

Podemos inicialmente afirmar que à Geografia cabe, no processo de divisão intelectual do trabalho, a análise do espaço através do materialismo dialético, que pensa o espaço enquanto produção/produto da ação da sociedade. O espaço é uma noção ao mesmo tempo abstrata e concreta, e sua produção social revela o plano da prática sócio-espacial. Por outro lado esse processo se revela em diferentes escalas tendo, hoje, sua base definida/limitada e potencializada pelo processo de mundialização. Assim o caminho aqui apontado, sinaliza a necessidade de ultrapassar a dimensão ontológica do espaço, embora tão pouco se trate de elaborar uma nova epistemologia para a geografia, mas de voltar o conhecimento para a produção/reprodução do espaço enquanto nível da realidade, num movimento que articula passado, presente e futuro. Envolve, portanto, um sério esforço no sentido de elucidar essa produção em seus vários momentos.

É possível pensar que a sociedade constrói um mundo objetivo enquanto prática espacial, e tal mundo se revela em suas contradições em um movimento que aponta para um processo em curso, cuja base se assenta no processo de reprodução das relações sociais que se realiza como relação espaço-temporal. Por isso podemos afirmar que é no espaço que se podem ler as possibilidades concretas de realização da sociedade. A análise geográfica do mundo seria, portanto, aquela que caminharia na direção do desvendamento dos processos constitutivos da reprodução do espaço. Deste modo, uma ação voltada para o fim de concretizar e viabilizar a existência humana se realizaria como processo de reprodução da vida, pela mediação do processo de apropriação do mundo, que revela contradições profundas.

Assim, o sentido da crítica e do pensamento crítico se associa a uma crise prática real, produto das metamorfoses do mundo moderno, onde a lógica do crescimento – sob várias representações, como aquela do progresso (que funda a idéia de qualidade de vida) - produziu o aumento da riqueza gerada em lugares e classes concentradas no espaço e na sociedade.

Por sua vez, a exigência da crítica da Geografia – enquanto crítica da produção de um saber, como momento necessário à construção de um projeto de sociedade, sem o apelo para a idéia de catástrofe da humanidade - está no fundamento da idéia de construção de uma metageografia, apoiada na exigência ética de desvendar/elucidar as contradições da realidade. Mas o conhecimento crítico não se limita ao plano da razão[23] tal qual pretendem alguns autores, mas integrando-a ao plano do (que se pode chamar de) irracional e deste modo envolvendo a articulação dos conceitos ao vivido e nesta dimensão incorporando o virtual. 

O caminho da análise sobre a Geografia brasileira sugere um momento em que o movimento da produção do espaço revela relações conflituais profundas, colocando a dialética no centro da questão. Nesse sentido, os debates realizados na Geografia brasileira nos anos 80, longe de revelar uma fase ultrapassada repõe a necessidade de pensar o sentido e papel da Geografia no século XXI superando a situação de fragmentação em que se encontra. Uma metageografia surgiria das possibilidades de superação das fragmentações postas pelos estudos geográficos definidores de “tantas Geografias” quanto conseguirmos parcelar a realidade permitindo voltar o debate para a questão central: como a Geografia, enquanto ciência parcelar, seria capaz de produzir um pensamento que  elucide a realidade em sua totalidade em direção a sua transformação radical da sociedade? Onde reside esta possibilidade?

Pensar o caminho para a transformação radical da sociedade sinaliza a construção de uma crítica radical do existente. A realidade produzida de forma conflituosa e desigual revela a “dialética do mundo”. Assim, se coloca uma metageografia definida nos seguintes termos:

a) que supere a redução da problemática espacial àquela da gestão do espaço com o objetivo de restituir a coerência do processo de crescimento;

b) que supere a atomização da pesquisa que  se recusa a “habitar o tempo”, produzindo uma Geografia invadida pelas medidas da lógica produtivista;

c) contra a subjugação ao “saber técnico” que instrumentaliza o planejamento estratégico realizado sob a batuta do Estado, justificando sua política;

d) que ultrapasse o discurso ambiental que  esvazia a relação sociedade-natureza identificando a dimensão social e histórica do espaço à sua dimensão natural;

e) que contemple o desvendamento da potência produtiva do capital, na produção/reprodução do espaço em sua dimensão prática englobando, também as ideologias que sustentam a sociedade do “bem estar” que reduz o sujeito a sua condição de consumidor na busca crescente de produtos novos, em espaços renovados;

f) que realize a crítica radical do existente restituindo o caminho do qualitativo, questionando a política do Estado e suas estratégias como momentos necessários do entendimento da crise atual e não subjugando os projetos de mudança à lógica do Estado. O horizonte delineado por Marx “na questão judaica” revela que a transformação radical da sociedade nega a política na medida que o político não foge as manifestações do controle burocrático que escapa ao controle democrático.

Deste modo, a proposta de construção de uma “metageografia” como uma nova inteligibilidade, através da crítica ao pensamento estabelecido, realizaria a crítica da produção teórica sobre o mundo visando entender, em profundidade, sua dinâmica contraditória por trás de “novas aparências” que fundam um mundo de imagens e das ideologias. O pensamento que vai à raiz das ações dominantes em nossa sociedade e as ilumina, pode propor caminhos para a superação das alienações vividas por uma sociedade submetida ao poder do Estado e das ideologias. Portanto, um projeto deve sair do seio da sociedade e realizar-se para além do Estado e esse é o nosso desafio.

 

Notas

[1] O limite de páginas é impeditivo para seu desenvolvimento.

[2] Aqui utilizaremos, sem debate, a expressão usada pelos geógrafos.

[3] Luis Lopes Diniz Filho, “Certa má herança marxista: elementos para repensar a Geografia crítica”, in Epistemologia da Geografia Contemporânea, Editora UFPr, org Francisco Mendonça e Salete Kozel, 2002

[4] Idem, ibidem.

[5] “Na área de estudos urbanos e regionais, nota-se que a incorporação do marxismo, por si só, não auxiliava na resolução de algumas controvérsias epistemológicas importantes, acerca de conceitos como região e espaço urbano, ou esmo na explicação de alguns processos centrais na organização do espaço nessas escalas”, idem, ibidem, página 98.

[6] Veja-se, por exemplo, Paulo Roberto Teixeira de Godoy, “Teorias e conceitos: uma contribuição para o debate crítico em Geografia”, Dezembro de 2005, ou ainda Paul Claval, La pensée geographique 1982

[7]Henri Lefebvre. Le retour à la dialectique 12 mots cléfs, G- production et reproduction pp 97/102

[8] Raoul Vaneigen. A arte de viver para as novas gerações, 1980, página 51.

[9] Idem, ibidem página 25

[10] Idem, ibidem página 32

[11] Idem, ibidem página 33

[12] Idem, ibidem página 35

[13] Berque, A. Du geste à la cite, 1993.

[14] Idem, ibidem página, 102

[15] Idem, ibidem página, 224

[16] Aqui o debate das relações entre estado – ciência, estado-espaço é completamente ignorado.

[17] Análise desenvolvida por Fernanda Sanches em “A reinvenção das cidades para o mercado mundial”, mimeo.

[18] Luzia Neide M. T. Coriolano, “O real e o imaginário nos espaços turísticos” in Paisagem, imaginário e espaço, Rosenndahl e Lobato Correa (org.), 2001.

[19] Idem, ibidem página, 219.

[20] Idem, ibidem página, 222.

[21] Idem, ibidem página, 223.

[22] Idem, ibidem página, 224-225.

[23] Carlos Walter Porto Gonçalves propõe, sem se afastar da necessidade da relação entre ciência e filosofia, o “exercício da razão crítica como condição de um agir crítico e lúcido. Trata-se aqui, de colocar a razão no centro da compreensão do mundo”, in Os (des)caminhos do meio ambiente, 2004, p.141.

 

Bibliografia

BERQUE, A. Du geste à la cite. Paris: Éditions Gallimard, 1993.

CLAVAL, Paul. La pensée geographique. Paris: PUF, 1982.

CLAVAL, Paul. A revolução pós-funcionalista e as concepções atuais da geografia. In Mendonça, F. e Kozel, S. (org.) Epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: Editora UFPR, 2002.

CLAVAL, Paul. La geographie du XXeme siècle. Paris: PUF, 2004.

CORIOLANO, Luzia Neide M. T. O real e o imaginário nos espaços turísticos. In Rosendahl, Z. e Lobato Correa, R. (Org.) Paisagem, Imaginário e Espaço. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2001.

DINIZ Filho, Luis Lopes. Certa má herança marxista: elementos para repensar a Geografia crítica. In MENDONÇA, F. e KOZEL, S. (org.) Epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: Editora UFPR, 2002.

GODOY, Paulo Roberto Teixeira. Teorias e conceitos: uma contribuição para o debate crítico em Geografia. Boletim Paulista de Geografia, n. 83,  AGB, São Paulo, Dezembro de 2005.

GONÇALVES, C. W. P. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 2004.

HELLER, Agnes. A filosofia radical, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.

LEFEBVRE, Henri. De l´Etat. Volume 4. Paris: Union Générale d' Éditions, 1978.

LEFEBVRE, Henri.Une pensée devenue monde. Paris: Fayard, 1980.

MANÇANO, Bernardo. DATALUTA - banco de dados da luta pela terra: uma experiência de pesquisa e de extensão no estudo da territorialização da luta pela terra. In Terra Livre, volume 1, AGB, São Paulo, 2004.

MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la critica de la economia política (borrador). Grundisse, 1857-1858. México: Siglo Vientiuno, 1977.

MARX, Karl. A questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d.

MORIN, Edgard,  La méthode 6, Éthique. Paris: Seuil, 2004.

SANCHES, Fernanda. A reinvenção das cidades para o mercado mundial. São Paulo: Departamento de Geografia, FFLCH-USP, 2001. Tese de Doutorado.

VANEIGEN, Raoul. A arte de viver para as novas gerações.  Porto: Afontamento, 1980.

 

© Copyright Ana Fani Alessandri Carlos, 2007
© Copyright Scripta Nova , 2007


Ficha bibliográfica:

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A "Geografia Crítica" e a crítica da Geografia. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2007, vol. XI, núm. 245 (03). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24503.htm> [ISSN: 1138-9788]


Volver al índice de Scripta Nova número 245
Volver al índice de Scripta Nova

Menú principal