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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. X, núm. 218 (77), 1 de agosto de 2006 


ORGANIZACÃO TERRITORIAL DOS ESTADOS-NACÕES NA AMÉRICA MERIDIONAL: CONTINUIDADES E MUDANCAS

 Vânia Vlach
Instituto de Geografia
Universidade Federal de Uberlândia - Brasil

 


Organização territorial dos estados-nações na américa meridional: continuidades e mudanças (Resumo)

Portugal e Espanha constituíram, no início da Idade Moderna, os denominados Impérios Português e Espanhol da América, respectivamente. O desaparecimento destes dois grandes impérios ibéricos, nas três primeiras décadas do século XIX, por meio do que se convencionou designar de independência política, colocou em tela a necessidade de definição da identidade nacional das novas repúblicas; o mesmo é válido para a única monarquia constitucional americana, o Brasil. Isso implica a consideração do papel que o território desempenharia na organização desse conjunto de Estados modernos, particularmente no Brasil. Paralelamente, indaga-se em que medida a colonização ibérica interferiu na organização territorial dos Estados-nações na América Meridional, a fim de se analisar as continuidades e as mudanças desencadeadas pelo processo de sua emancipação, no contexto do liberalismo.

Palavras-chave: Estado-nação - Identidade nacional - Idéia de território - Organização territorial - Brasil.

 


Territorial organization of the states-nations in southern america: continuities and changes(Abstract)

Portugal and Spain constituted in the beginning of the Modern Age the so called Portuguese and Spanish Empires of America. The disappearance of these two great Iberian empires in the first three decades of the nineteenth century, due to the political independence, brought the necessity of definition of the new republic’s national identity; the same is valid for Brazil, the only American constitutional monarchy. That implicates the consideration of the role of the territory in the organization of that group of modern States, particularly in Brazil. In parallel, it is investigated in what measure the Iberian colonization interfered in the territorial organization of the States-nations in Southern America, in order to analyze the continuities and changes related to the process of emancipation in the context of the liberalism.

Keywords: State-Nation - National identity - Idea of territory - Territorial organization - Brazil.


[...] il faut se tourner vers le groupe imposant des nouvelles entités politiques apparues entre 1776 et 1838 dans le monde occidental: toutes se sont délibérément définies comme des nations et, à une exception intéressante près (le Brésil), commme des républiques (non ndynastiques). Benedict Anderson
 
 

Portugal e Espanha constituíram, no início da Idade Moderna, os denominados Impérios Português e Espanhol da América, respectivamente. O desaparecimento destes dois grandes impérios ibéricos, nas três primeiras décadas do século XIX, por meio do que se convencionou designar de independência política, originou cerca de 30 novos Estados, o que colocou, na cena política então delineada, a necessidade de definição da identidade nacional das novas repúblicas; o mesmo é válido para a única monarquia constitucional americana, o Brasil, que escolheu o regime monárquico. Isso implica, igualmente, a consideração do papel que o território desempenharia na organização desse conjunto de Estados modernos, particularmente no Brasil. Afinal, o Estado-nação - a configuração territorial que a sociedade moderna estabeleceu para se organizar politicamente, interna e externamente (o que remonta aos Tratados de Paz de Westfália, de 1648) - chegava à América Meridional naquele momento, em meio à difusão da ideologia do liberalismo, que se baseia nas idéias de soberania popular, democracia e governo representativo.

Entendemos que tais mudanças, indissociáveis da Revolução Americana (1776), da Revolução Industrial (década de 1780) e da Revolução Francesa (1789), evidenciam que a dinâmica política, econômica e cultural da sociedade capitalista e moderna já configurava a institucionalização, em curso acelerado, do que hoje conhecemos como a mundialização. De qualquer maneira, é pertinente indagarmos em que medida a colonização ibérica interferiu na organização territorial dos Estados-nações na América Meridional, para discutirmos as continuidades e as mudanças desencadeadas pelo processo de sua emancipação, no contexto do liberalismo.

Assim, apresentaremos a organização administrativa das colônias ibéricas na América, inclusive as reformas do século XVIII; as rebeliões contra o jugo ibérico; a desagregação político-territorial do Império Espanhol da América e a futura unidade política no território do antigo Império Português da América e, por fim, as continuidades e mudanças dos novos Estados.
 

Os Impérios Espanhol e Português da América: organização administrativa e territorial

É importante registrar que, desde 1516, a América Espanhola é conhecida como o Reino das Índias e integra a monarquia espanhola, com os mesmos direitos das demais possessões da Espanha (Konetzke, 1993). Mesmo se a população e os recursos naturais, a exemplo das ricas minas de prata, de seu enorme território (cerca de 13,5 milhões de quilômetros quadrados), eram explorados em favor da monarquia espanhola, tais possessões não são consideradas colônias; do ponto de vista jurídico, têm o estatuto de Reinos Ultramarinhos da Coroa espanhola.

Os espanhóis não tiveram dificuldades maiores para se adaptarem às condições geográficas, mesmo nas zonas de relevo montanhoso e acidentado da vertente do oceano Pacífico e, por razões de segurança (Benassar, 1987), se estabeleceram nas cidades, situadas no interior do território e distantes umas das outras, mantendo os modelos de ocupação dos povos pré-colombianos, alguns dos quais constituíam civilizações antigas e muito importantes.

As Reformas dos Bourbons, no começo do século XVIII, aprofundaram as diferenças entre os peninsulares – os indivíduos nascidos na Espanha e que, por essa razão, exerciam os postos mais importantes da administração do Império Espanhol da América (inclusive na hierarquia eclesiástica) e monopolizavam o comércio de importação e exportação – e os criollos – indivíduos de origem espanhola nascidos na colônia americana, ocupavam os postos inferiores da administração e tinham direito à propriedade rural (o que lhes permitiu constituir-se como elite, do ponto de vista econômico ou intelectual).

Essas reformas unificaram as competências administrativas, financeiras e militares na figura do intendente, ou, em outras palavras, a criação das intendências “signifie la construction d’une bureaucratie dirigée par Madrid, et composée, en majorité, de péninsulaires” (Donghi, 1972, p. 40). Dentre os objetivos da criação das intendências, enumerava-se uma maior racionalização na cobrança de impostos, o que aumentou os conflitos administrativos entre a Coroa espanhola e o Reino das Índias. E, ainda mais grave, a partir das intendências, o termo colônia passou a ser utilizado para designar as Índias espanholas. As elites criollas compreenderam que o novo corpo administrativo, imposto pelas referidas reformas, defendia exclusivamente os interesses da Coroa.

Por isso mesmo, entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, surgiu uma oposição entre aqueles que defendiam um “patriotismo espanhol”, isto é, as elites peninsulares, e aqueles que se sentiam americanos. Observando a situação, Alexander von Humboldt registrou que, “desde la paz de Versalles y sobre todo a partir de 1789, los nativos prefieren decir con orgullo: ‘Yo no soy español en absoluto, yo soy americano’”(Apud Minguet, 1985, p. 247).

As intendências estimularam a diversificação econômica em cada região do Reino das Índias, promovendo o espírito de autarcia neste conjunto. Gradualmente, o espírito de autarcia passou a fragmentar o espaço econômico hispano-americano, até então uma única unidade econômica. Um de seus resultados foi a intensificação de relações bilaterais diretas entre essas regiões e a metrópole; por exemplo, a maior parte do couro produzido em Buenos Aires passou a ser exportada para a Espanha, e não mais para os outros Vice Reinos americanos. Em outras palavras: as antigas relações comerciais multilaterais entre os Vice Reinos (Nova Espanha, Peru, Nova Granada e Prata) foram suprimidas, privilegiando-se os contatos diretos de cada um deles com a metrópole. Em razão disso, rivalidades econômicas entre os Vice Reinos e as capitanias gerais mais importantes (Venezuela, Chile, Cuba e Guatemala) se desenvolveram, e contribuiriam para o esfacelamento territorial, nas primeiras décadas do século XIX.

Do outro lado do continente americano, a estreita faixa de terra, inicialmente confundida com uma ilha (a Ilha de Vera Cruz), localizada ao sul da linha do Equador, a leste do continente, e aparentemente desprovida de metais preciosos, demorou muito a ser ocupada pelos portugueses, mais interessados na exploração do comércio das especiarias nas Índias Orientais, inclusive porque não dispunham nem de recursos financeiros, nem de população suficientes, para valorizarem a possessão americana no início do século XVI. Além disso, ao contrário do que acontecia na outra vertente do continente, a população autóctone, em geral composta por pequenos grupos (cerca de 300 a 2 000 indígenas), praticava uma agricultura simples, ou vivia da caça, coleta e pesca.

Após a realização de algumas expedições exploradoras, é que Portugal constatou que sua possessão não era uma ilha, e a denominou de Terra de Santa Cruz. Todavia, a existência, em grandes quantidades, de pau-brasil, isto é, uma árvore (Caesalpinia echinata) que fornecia tinta para a manufatura de tecido e para a escrita, além de madeira para a construção de navios (tudo isso interessava ao comércio europeu), acabou por consagrar o nome definitivo da possessão portuguesa na América: Brasil. Deve-se acrescentar que “o nome Brazil geralmente identificado com o pau-de-tinta é na verdade muito mais antigo. Velhas cartas e lendas do mar-oceano [Atlântico] traziam registros de uma ilha Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos que andavam à cata de bacalhau” (Ribeiro, 1995, p. 126).

Os portugueses se fixaram na fachada do oceano Atlântico, mas em unidades de produção rural, os engenhos de açúcar, movidos pela mão de obra escrava africana e financiados por capitais holandeses, de maneira que as cidades brasileiras desempenhavam os papéis de centro estratégico da dominação portuguesa e de centro econômico de importação das manufaturas européias e de exportação das riquezas da colônia.

O cultivo da cana de açúcar e a exportação de seu produto final para a Europa, porém, faziam parte de um projeto maior: a descoberta de metais preciosos, o que exigia avançar além dos limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas (1494), que, naquela época, correspondia a uma linha imaginária que se estendia de Belém (Estado do Pará) à Laguna (Estado de Santa Catarina) e representava cerca de um terço da atual superfície do território brasileiro. As ponderações de Ribeiro sobre o significado da atuação de Portugal no Novo Mundo, merecem, pois, registro:

Portugal, que viveu mil anos na obsessão de fronteira, temeroso de ser engolido pela Espanha, aqui [no Brasil], desde a primeira hora, tratou de marcar e alargar as bases de suas posses territoriais. Plantou fortalezas a mil léguas de qualquer outro povoador. Manteve pela guerra, por séculos, pontos de fixação de suas lindes, como a Colônia do Sacramento (Ribeiro, 1995, p. 149).

Considerando-se que os espanhóis descobriram as primeiras minas de prata entre 1545 e 1565, compreende-se porque a sua exploração se tornou o centro de suas atividades na América, o que, certamente, facilitou a organização, por parte de Portugal, de expedições cujo objetivo maior era o de encontrar, no leste da América do Sul, metais preciosos. Tais expedições oficiais, conhecidas como entradas, indicam que Portugal, desde que chegou, colocou em prática uma política de expansão territorial, para se apropriar de terras no interior do continente. Logo a seguir, organizaram-se as bandeiras, expedições privadas, que partiam da Vila de São Paulo. Embora as bandeiras hajam capturado indígenas para escravizar, sobretudo até o século XVII, quando o escravo africano se tornou predominante, na verdade, o que lhes interessava era encontrar os preciosos metais.

Entretanto, por obra de direitos de sucessão ao trono, Filipe II foi coroado rei de Portugal, em 1580. A Espanha, mantendo sua atenção concentrada no Reino das Índias, decidiu respeitar, no comando dos negócios que se referiam ao Brasil, as autoridades portuguesas. O mais importante é assinalar que, durante a “União Ibérica” (1580-1640), os limites traçados por Tordesilhas, na prática, desapareceriam: as bandeiras não mais violavam terras estrangeiras! Assim, em 1640, as bandeiras já haviam anexado alguns milhares de quilômetros quadrados ao Brasil, no extremo norte, e de leste a oeste. A partir de então, a exploração do território se daria em direção ao sul, o que explica porque os portugueses fundaram, em 1680, a Colônia do Sacramento (atual Cidade de Colônia, no Uruguai), na margem esquerda do rio da Prata, em face de Buenos Aires. No fim do século XVII, os bandeirantes - os agentes privados que organizavam as bandeiras e, posteriormente, tornaram-se agentes da Coroa portuguesa -, finalmente, descobriram ouro, e, em meados do século XVIII, diamantes.

A exploração do ouro provocou a formação de centros urbanos no interior do território, principalmente na capitania de Minas Gerais, criada em 1720 (quando foi desmembrada da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro), e assim denominada por causa das ricas minas de ouro e diamantes. Os lucros gerados pela exploração mineira fizeram com que a Coroa portuguesa assumisse “[...] seu verdadeiro papel de administrador, que ela havia delegado até o presente à iniciativa privada” (Iglesias, 1993, p. 50).

Nos primeiros centros urbanos de Minas Gerais, apareceram movimentos de contestação política à atuação da metrópole portuguesa, cuja importância aumentou à medida que os líderes revolucionários compreenderam que os papéis da metrópole e da colônia tendiam a se inverter,  sobretudo nos aspectos econômicos e políticos. No primeiro caso,

[...] é suficiente considerar que [a atividade mineradora] teria produzido, em ouro, cerca de mil toneladas e, em diamante, 3 milhões de quilates, cujo valor total corresponde a 200 milhões de libras esterlinas, o equivalente a mais da metade das exportações de metais preciosos das Américas (Ribeiro, 1995, p. 152).

Aliás, a consolidação da atividade mineira no Brasil coincidiu, grosso modo, com a decadência da mineração nas possessões espanholas na América do Sul. No segundo caso, a importância política da colônia americana não escapava nem aos portugueses, que contavam poder se abrigar aqui, se pressionados por seus inimigos na Europa, nem aos colonos, que começavam a questionar o pacto colonial, segundo o qual as colônias existiam para fornecer matérias primas às metrópoles, de maneira que cada metrópole européia estabeleceu o monopólio comercial (daí o termo sistema do exclusivo) com suas colônias (do século XVI ao século XVIII).

Por isso mesmo, as reformas de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1750), atingiram metrópole e colônia, simultaneamente. Considerando os limites deste artigo, destacaremos a tentativa de centralização da administração na colônia, que se mostrou eficaz apenas no Distrito Diamantino (controlado diretamente pelos funcionários da Coroa, em Lisboa). A nosso ver, porém, Pombal acentuou o papel da dimensão do território no conjunto de tais reformas. Não lhe havia escapado que a estreita faixa de terra havia se ampliado muito no interior da América do Sul, mas que a expansão a oeste havia terminado, de sorte que os conflitos territoriais com os espanhóis se limitariam ao sul.

Constatando que a ocupação luso-brasileira havia triplicado a superfície tracejada pelo Tratado de Tordesilhas, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madrid (1750), quando a Coroa portuguesa foi representada por um brasileiro, Alexandre de Gusmão, que elaborou o Mapa dos Confins do Brasil com as terras de Espanha na América Meridional. Este mapa, a base da assinatura do Tratado de Madrid, é a primeira carta oficial do Brasil, por sinal, a atual configuração do território brasileiro deriva dela; após o período colonial, poucos (re)ajustes foram realizados.

Este tratado ratificou, juridicamente, a política de expansão territorial da Coroa portuguesa que os bandeirantes haviam colocado em prática durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Acreditamos, ainda, que Pombal havia inferido que a futura construção de uma unidade política neste território de cerca de sete milhões de quilômetros quadrados, representaria (ou poderia representar) um trunfo maior do Império Português da América. As dificuldades de comunicação interna se manteriam por longo tempo, o que explica a expressão “o imenso arquipélago social e econômico” (Carvalho, 1988, p. 139), utilizada para designar o Brasil nas primeiras décadas do século XIX.

Na verdade, tanto as Reformas dos Bourbons quanto as do marquês de Pombal, se inseriram no quadro da decadência de Espanha e Portugal, que estavam perdendo sua supremacia para França e Grã-Bretanha. Paralelamente, seus impérios americanos eram mais importantes na conjuntura que preparava a eclosão da Revolução Industrial na Europa; daí o esforço para controlá-los melhor (esta é a razão das reformas!).

Contudo, se a Coroa espanhola enviou altos funcionários de Madrid para controlar as finanças no Reino das Índias, Pombal convidou os grandes comerciantes luso-brasileiros, até então fora da burocracia da administração colonial, para exercerem a mesma função. A mineração, por sua vez, havia provocado uma imigração massiva de portugueses para a “região das minas”, alguns dos quais participavam de certas instâncias administrativas, o que evitou uma concentração do poder nas mãos daqueles que nasceram na colônia, ao contrário das elites criollas, que controlavam algumas instâncias administrativas da Coroa espanhola, como os cabildos de indígenas, que existiam onde havia uma população indígena densa. Isso também permite compreender porque os conflitos entre as elites peninsulares e as elites criollas aumentaram com as reformas. Finalmente, as reformas de Pombal, ao contrário das reformas dos Bourbons, jamais distinguiram a metrópole da colônia americana, em decorrência da situação político-econômica mais precária de Portugal na cena européia.

Por fim, as crescentes rebeliões contra o jugo ibérico, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, nas colônias americanas, decorreram de fenômenos distintos, como veremos a seguir.

Rebeliões contra o jugo ibérico

O fenômeno que desencadeou a revolta contra o jugo português foi a diminuição da quantidade de ouro e diamante, de maneira que o pagamento do quinto – o imposto que devia ser pago à metrópole, correspondente a 20% da extração dos metais preciosos – se fazia com dificuldades crescentes, a partir da segunda metade do século XVIII. É verdade, igualmente, que houve resistências anteriores ao seu pagamento: em 1720, o português Felipe dos Santos liderou a Revolta de Vila Rica, sucedida por outras, de menor alcance.

Observando-se o desenvolvimento cultural que a atividade mineradora favoreceu na “região das  minas”, compreende-se porque

A sedição surge, porém, na própria classe alta, de que se destaca uma elite letrada que se propõe formular e pôr em execução um projeto alternativo ao colonial de reordenação de sua sociedade. Trata-se do mais ousado dos projetos libertários da história colonial brasileira, uma vez que previa estruturar uma república de molde norte-americano que aboliria a escravidão, decretaria a liberdade de comércio e promoveria a industrialização. A eclosão insurrecional deveria ter lugar em 1789, aproveitando a revolta dos “mineiros” contra a espoliação colonial, aumentada por novas taxações já anunciadas sobre uma riqueza minguante. Foi a malchamada Inconfidência Mineira, que, apesar de fracassada por uma delação, nos revela o vigor do sentimento nativista nascente e também o amadurecimento de uma ideologia republicana capacitada para reordenar a sociedade em novas bases (Ribeiro, 1995, p. 376).

É fundamental observar a influência das idéias de liberdade, propagadas pela Revolução Americana (Arendt, 1990) e pela Revolução Francesa, conhecidas pela elite da colônia, seja por meio de livros ou outras publicações dos revolucionários do século XVIII, que circulavam clandestinamente entre os poucos membros da elite da colônia. A liderança da Inconfidência Mineira (1789) foi assumida por um personagem singular, Joaquim José da Silva Xavier, militar de ofício, mais conhecido como Tiradentes, que “[...] tinha sempre em mãos um exemplar da constituição norte-americana para mostrar como se devia e se podia reorganizar a vida social e econômica depois da emancipação do jugo português” (Ribeiro, 1995, p. 376). Por conseguinte, o ideal republicano foi objeto da reflexão dos pioneiros da emancipação política no Brasil.

Na América espanhola, os conflitos políticos aumentaram sensivelmente a partir das últimas décadas do século XVIII, também sob a influência dessas duas grandes revoluções de caráter político. Levando-se em conta a densidade da população indígena, não surpreende a irrupção da insurreição de Tupac Amaru, no Peru, em 1780, de natureza política:

[...] commencé comme une protestation contre les abus des corregidores, le mouvement prend une ampleur totalement imprévue. Le premier objectif de Tupac Amaru dégénère très rapidement en une lutte interraciale qui met en danger l’ordre colonial, de telle sorte que les créoles et Espagnols se sont réunis pour écraser l’insurrection indienne” (Minguet, 1990, p. 16-17).

Outras insurreições ocorreram. Afinal, as elites criollas, assim como as elites brasileiras, assimilaram a Revolução Americana como uma resposta à tentativa de reorganização do poder, por parte da Inglaterra, que, como França, Portugal e Espanha, tentavam resolver seus problemas econômicos provocados por guerras entre as mesmas na Europa, e em suas possessões ultramarinhas. Não lhes passava despercebido que a independência dos Estados Unidos tinha um significado simbólico maior: pela primeira vez, o moderno sistema colonial dos europeus havia sofrido uma derrota completa, que, certamente, provocaria conseqüências no restante do continente, onde as demais colônias foram implantadas tendo em vista a exploração, ao contrário do propósito de povoamento, traço distintivo das antigas Treze Colônias da América do Norte.

Um fenômeno extremamente importante, cuja reprodução se temia no âmbito dos impérios ibéricos americanos, se refere à situação do Haiti (conhecido, no período colonial, como Santo Domingo, tornou-se possessão francesa em 1697), onde os escravos africanos começaram, em 1791, uma violenta revolta, cujo resultado foi a fundação da “primeira república negra da América”, por sinal, a segunda república americana (após os Estados Unidos) e a primeira república da América Meridional, em 1804:

À l’automne 1791, à la suite de l’agitation provoquée par la Révolution française chez les créoles, les métis et les Noirs affranchis, une insurrection des esclaves noirs (la majeure partie de la population) provoquait la mort d’un millier de Blancs et la destruction de plusieurs centaines de sucreries et de caféteries. Afin de rétablir l’ordre, les colons français s’allièrent tour à tour aux Anglais et aux Espagnols. Mais ni ceux-ci, ni l’armée envoyée par Bonaparte ne purent venir à bout d’un mouvement complexe qui allait conduire à l’indépendance proclamée en 1804. ( Musset, 1993, p. 723).

A aliança dos franceses com os demais colonizadores evidencia o horror maior: o risco de rebeliões negras, igualmente considerado pelos luso-brasileiros, sobretudo a partir da Conjuração Baiana (1798). Em 1800, havia cerca de 1 500 000 indivíduos negros; durante a Inconfidência Mineira, um movimento de escravos africanos foi visto com muita preocupação (Viotti da Costa, 1977). Não surpreende que Bolívar também haja manifestado profundo temor a este respeito (Lynch, 1973). Mas, registre-se que sua avaliação sobre a escravidão oscilou no decorrer do tempo (Belrose, 1990).
 

O desaparecimento dos Impérios Espanhol e Português da América

O processo de emancipação política na América Meridional se iniciou na vertente do Pacífico, apesar da extraordinária unidade política, cultural e religiosa imprimida ao Reino das Índias pelos espanhóis, o que evidencia que, durante cerca de três séculos, conseguiram superar os obstáculos representados pela diversidade cultural dos povos autóctones e suas precárias relações, bem como as dificuldades de comunicação, acarretadas pelo relevo montanhoso e compartimentado.

O aparelho administrativo do Império Espanhol da América conseguiu unificar os espanhóis, os ameríndios e os africanos (onde estes se encontravam presentes), em torno da religião católica e da lealdade ao rei da Espanha, o que engendrou uma importante mestiçagem. Esta mestiçagem biológico-cultural e a organização do referido aparelho administrativo explicam a homogeneidade do Reino das Índias. Porém, o colonizador não conseguiu eliminar o pluralismo político, cultural e religioso intrínseco ao Reino das Índias, decorrente tanto das tradições culturais das civilizações pré-colombianas quanto das distâncias geográficas e das dificuldades de comunicação postas pelo relevo. Assim, a unidade política do Império Espanhol da América coexistia com certa autonomia de suas unidades administrativas.

No momento em que o futuro Fernando VII da Espanha foi substituído por Joseph Bonaparte (1808), o primeiro recebeu, na América Meridional, o apoio incondicional das elites criollas e peninsulares, o que indica que seus membros aceitaram as reivindicações do povo espanhol e acompanharam o seu posicionamento político. Se o rei da Espanha, por sua pessoa, assegurava a coesão de todos os Reinos do Império Espanhol e, por conseguinte, sua unidade e sua soberania, uma vez que os franceses haviam aprisionado Fernando VII, o povo espanhol apontou Joseph Bonaparte como usurpador e entendeu que o poder político estava vazio. Este vazio lhe sugeriu, igualmente, que o poder político havia perdido a legitimidade; assim sendo, a soberania deveria ser exercida pela primeira fonte do poder político na modernidade, o povo. Por essa razão, o povo espanhol tomou a decisão de defender os direitos do rei legítimo, e formou a Junta Central (1808), para governar provisoriamente o Império. Esta decisão significa que o povo espanhol rompeu com o Antigo Regime, no quadro de uma situação em que a modernidade política, sob a inspiração do liberalismo, tendia a se afirmar na Espanha, em decorrência da Revolução Francesa (Guerra, 1992). A seguir, as cidades de suas possessões americanas fundaram, também, suas Juntas.

Entretanto, se a “tormenta napoleônica” uniu espanhóis e americanos no primeiro momento, a ruptura política contra o absolutismo do Antigo Regime, responsabilizado pela decadência do Império Espanhol, acabaria por desintegrar o Reino das Índias, desmembrando-o, politica e territorialmente. As elites criollas, que, para se diferenciarem das populações autóctones e dos escravos africanos, se definiram durante muito tempo como “os espanhóis da América”, afastaram-se deste “modelo” (conhecido como a concepção de “nação espanhola”) na última década do século XVIII, identificaram-se com a América e, de maneira pragmática, pela primeira vez, defenderam a identidade e os valores das civilizações pré-colombianas.

Nesse contexto, a Junta Central convidou os Vice Reinos das Índias para participarem, por meio de seus representantes, dos debates atinentes à nova soberania, exercida pelo povo.Acompanhemos o decreto de 22 de janeiro de 1809, inicialmente publicado em Sevilha e também impresso nos Vice Reinos das Índias, a exemplo da Gazeta de México, em 15 de abril do mesmo ano:

[...] la Junta Suprema central gobernativa del reyno, considerando que los vastos y precisos dominios que España posee en las Índias no son propriamente colonias o factorías como las de las otras naciones, sino una parte esencial e integrante de la monarquia española y deseando estrechar de un modo indisoluble los sagrados vínculos que unem unos y otros domínios, como asimismo corresponder a la heroyca lealtad y patriotismo de que acaban de dar tan decisiva prueba a la Espana [...] se ha servido S.M. declarar [...] que los reynos, provincias y islas que forman los referidos dominios, deben tener representación inmediata a su real Persona por médio de sus correspondientes diputados. (Apud Guerra, 1992, p. 135).

É verdade que, pela primeira vez, as possessões americanas teriam uma representação política no seio do Império Espanhol, por meio de seus deputados. Este aspecto, considerado positivo após a publicação integral desse decreto no Reino das Índias, foi objeto de uma análise minuciosa por parte das elites, principalmente as criollas (por sinal, os conflitos entre as elites criollas e pensinsulares haviam se agravado com a fundação das Juntas na América Meridional). Dois elementos contraditórios, mas obedecendo à lógica da metrópole, foram identificados na análise que fizeram desse documento:

1. a comparação dos “dominios que España posee en las Índias” com as colônias francesas, inglesas e holandesas no continente americano explicitou que a Junta Central os via como colônia do Império Espanhol;

2. glorificando a lealdade e o patriotismo dos Vice Reinos das Índias, a Junta Central expressou que a convocação de deputados era uma concessão, não um direito político.

Tal entendimento se materializou diante de um dado objetivo: havia 9 deputados americanos contra 26 espanhóis. De qualquer maneira, as reivindicações das elites criollas a respeito da igualdade jurídica e política das colônias emergiram com vigor, contribuindo, em breve, para a ruptura definitiva entre a Espanha e as possessões americanas. Em 1810, quando a Junta Central foi substituída pelo Conselho de Regência, sem consulta às possessões americanas, estas decidiram formar Juntas Provisórias de Governo, como aconteceu em Caracas, Buenos Aires, Bogotá e Santiago do Chile. Tais Juntas mantiveram a lealdade a Don Fernando VII. Mas não foram reconhecidas pelo Conselho de Regência, talvez porque o mesmo temia a sua emancipação política.

O fato de as elites peninsulares terem aceitado o Conselho de Regência levou à eclosão de guerras civis a partir de 1810, na América Meridional. Nesse mesmo ano, a convocação da Assembléia Nacional Constituinte (mais conhecida como Cortes de Cádiz) confirmou a separação irremediável entre a Espanha e o Reino das Índias. Em primeiro lugar, porque havia 28 deputados americanos, contra 200 espanhóis. Em segundo lugar, porque os americanos propunham uma concepção pluralista para o Império espanhol, enquanto os espanhóis defendiam a concepção de uma única unidade política. Os deputados americanos entendiam que a crise do Império espanhol poderia ser superada transformando-se os antigos Vice Reinos americanos em várias monarquias, ligadas diretamente à Coroa espanhola, mas dotadas de autonomia política, econômica e militar; esta era a sua concepção pluralista (aliás, no final do século XVIII, um alto funcionário da monarquia encaminhou esta proposta ao rei da Espanha). A concepção do Império Espanhol como um Estado nacional unitário deixava clara a desigualdade política e jurídica das possessões americanas(na Espanha, desde a ruptura do Antigo Regime, discutia-se se a moderna nação espanhola incluía suas possessões americanas).

Paralelamente, a definição de um Estado espanhol unitário, por parte das Cortes de Cádiz, contribuiu para provocar a ruptura de laços que ligavam as possessões americanas entre si, de maneira que a emancipação política se colocou em marcha e o sentimento de americanidade se regionalizou. Gradativamente, o pluralismo político, cultural e religioso da América Espanhola reapareceu na cena política, desagregando o antigo Império Espanhol da América ao longo do período que se estende de 1810 a 1830, sob a forma de um extraordinário desmembramento de seu território.

Por conseguinte, podemos afirmar que a concepção de “nação espanhola”, predominante na América Meridional do período da conquista até a promulgação da Constituição de Cádiz, foi substituída pela concepção de nação americana. E, sobretudo ao final das violentas guerras civis, surgiu a concepção de petite patrie, isto é, cada República proclamada, por intermédio do processo de construção da identidade nacional, futuramente seria uma nação.

Compreende-se a regionalização do sentimento de americanidade se nos lembramos que as cidades, ao longo do período colonial, desempenharam um papel importante no Império Espanhol da América: seus governantes eram os sujeitos da vida política no continente. Por isso mesmo, o particularismo local – ou o regionalismo – não perdeu sua força, apesar de os espanhóis terem se empenhado muito em imprimirem uma homogeneidade política ao referido império. O regionalismo revelaria toda a sua força política exatamente durante a luta contra a metrópole. E isso desde a eleição dos representantes americanos para a Junta Central, como ocorreu no Vice Reino da Nova Espanha e da Capitania Geral da Venezuela. Nos outros Vice Reinos e capitanias gerais, foram eleitos indivíduos que já ocupavam cargos políticos (civis, incluindo os cargos eclesiásticos, e militares) nos mais elevados graus hierárquicos da administração.

Durante as guerras civis e as guerras coloniais (que começaram quando Fernando VII ocupou o Reino espanhol), o particularismo local, favorecido pela compartimentação geográfica do  território e pela mestiçagem biológico-cultural, foi uma das armas utilizadas, com sucesso, pela Espanha, que reocupou o Chile em 1814 (este havia proclamado sua independência em 1811). Igual sucesso obteve na Venezuela (independente em 1811), onde se aliou aos escravos africanos, que

 [...] choisissent en effet de lutter contre leurs ennemis traditionnels, c’est à dire les grands propriétaires fonciers créoles, contre ceux qui les réduisent en esclavage et les maintiennent dans l’explotation et la misère. Ils n’ont peut-être pas une idéologie clairement définie, mais leur combat est un combat pour la liberté et la démocratie (Belrose, 1990, p. 89).

As guerras coloniais, que levariam à fragmentação política do território, decorreram do fato de que Fernando VII decidiu recuperar as possessões americanas sob o estatuto de colônia, em 1817. Até aquele momento, apenas a República proclamada em Buenos Aires (Províncias Unidas da Prata) apresentava certa coerência. Isso, entre outros, motivou a Espanha a reconquistar suas ex-possessões americanas, de maneira que guerras sangrentas se estenderam até 1824, quando as vitórias do general Simón Bolívar, em Junin, e do general José Antonio de Sucre, em Ayacucho, selaram o desaparecimento do Império Espanhol da América. E, por conseguinte, inauguraram a sua independência política.

O fato de que esta emancipação se fez ao preço de conflitos militares em todo o seu território explica a militarização das novas unidades independentes, não sem conseqüências futuras. Paralelamente, havia conflitos significativos entre os militares que lideraram as guerras contra a antiga metrópole. Por exemplo, entre José de San Martín e Simón Bolívar. Alguns afirmam que San Martín “[...] fut le meilleur stratège de l’indépendance; il comprit que le centre de la résistance espagnole se situait au Pérou [...] [é por isso que ele se lançou] à travers les Andes, dans une épopée qui dépasse en grandeur celle de Bolívar” (Chaunu, 1995, p. 76). San Martín, que preferia o regime monárquico, foi para a Europa em 1822. Mas, é possível que, além do desacordo com Bolívar a respeito do regime político a ser implantado nas unidades americanas independentes, uma disputa territorial entre ambos explique esta cisão: Bolívar havia anexado Guayaquil à República da Grande Colômbia, em detrimento do Peru.

O particularismo local, pois, foi tanto um aspecto subjacente do militarismo, quanto da fragmentação política do imenso território. Bolívar ponderou que, pelo menos no início, as  repúblicas proclamadas correspondiam à antigas unidades administrativas do Império Espanhol da América. Tal particularismo desencadeou uma “tectônica de placas” na antiga América espanhola, porque vários Estados independentes aí se estabeleceram, com dois traços fundamentais em comum: o regime político republicano e a língua do antigo colonizador. As disputas econômicas, que vinham estimulando o particularismo local desde as Reformas dos Bourbons, contribuíram para que cada república proclamada definisse, a partir das fronteiras de cada mercado antigo, as fronteiras de seu território nacional.

Na vertente leste da América Meridional, contudo,

L’Empire du Brésil surgissait sans douleur, en harmonie avec une conjoncture mondiale hostile aux Républiques, et allait être souvent proposé en modèle aux autres nations américaines, celles de la turbulente Hispanoamérique. On aurait tendance à voir dans la couronne impériale la cause de l’unité brésilienne conservée, face à la désintegration continuée de l’Amérique hispanique. Il n’avait pourtant pas été facile de sauver le Brésil: en 1824, le Nord se soulevait à nouveau, dans le cadre d’une confédération républicaine; puis c’etait le tour de la Bande orientale, dans le Sud, où le Brésil héritait d’une nouvelle province, la turbulente Cisplatina, formée de terres jadis espagnoles”. (Donghi, 1972, p. 85).

Para compreendermos este paradoxo, é preciso registrar que, face à “tormenta napoleônica”, e sob pressão inglesa, a Coroa portuguesa decidiu fugir das tropas francesas invasoras, para o Império Português da América, cujo território também desempenhou um papel nesta transferência:

C’est [...] vers les terres d’Amérique que se tournent les regards de ceux qui aspirent à organiser une metrópole dont le poids politique et géographique soit à la mesure de la puissance commerciale et maritime des Portugais. Ainsi, certains de ceux qui quittent leur patrie occupée par les troupes françaises interprètent leur exode au Brésil comme une sorte de voyage initiatique annonciateur d’une ère nouvelle” (Alencastro, 1980, p. 303).

Esta “nova era” foi marcada pela determinação de se construir um verdadeiro império no Brasil; assim que chegou, a Corte definiu as necessárias medidas jurídicas e administrativas para atingir este objetivo. Para começar, a cidade do Rio de Janeiro se tornou a capital do Império Português, o que significa que, a partir de 1808, o Brasil não era mais colônia de Portugal, mesmo se ainda não havia conquistado a independência política! Ao lado deste acontecimento de natureza política propriamente dita, da maior importância, há que se observar que a abertura dos portos às “nações amigas” (sobretudo a Inglaterra) colocou fim ao pacto colonial, nesse mesmo ano. Como efeito dos Tratados assinados por Portugal e Inglaterra em 1810, o primeiro perdeu a posição de intermediário no quadro das relações comerciais entre Inglaterra e Brasil. Isso também enfraqueceria os laços econômicos entre Portugal e Brasil. Paralelamente, tais tratados lembraram que o governo português sediado no Rio de Janeiro deveria tomar providências em relação à extinção do comércio de escravos africanos, até então um monopólio da Coroa portuguesa.

Entretanto, uma parte do aparelho político e administrativo da Coroa portuguesa continuou operando em Lisboa; o príncipe D. João criou um Governo de Regência para governar Portugal, durante sua ausência. Os aliados ingleses passaram a se impor na administração, de sorte que a população portuguesa, muito insatisfeita, começou a se opor e a resistir. No Brasil, o governo sediado no Rio de Janeiro apostou na centralização administrativa, mas isto não conseguiu alterar os laços políticos e comerciais que, há muito tempo, o Maranhão e o Pará (ao norte), mantinham diretamente com Lisboa.

Em 1815, após a derrota de Napoleão Bonaparte em Waterloo, os representantes da Inglaterra, do Império Austro-húngaro, da Prússia e da Rússia, reunidos no Congresso de Viena, decidiram redefinir o mapa político da Europa e do mundo, tentando restringir os efeitos políticos da Revolução Francesa. Representantes das demais monarquias européias também estavam presentes. Os altos dignitários do Reino de Portugal, que representavam D. João, receberam a seguinte proposição do Príncipe Talleyrand, da França:

[...] eu consideraria como uma fortuna quase, que se estreitasse por todos os meios possíveis, o nexo entre Portugal e o Brasil, devendo este país, para lisonjear os seus povos, para destruir a idéia de colônia, que tanto lhes desagrada, receber o título de reino e o vosso soberano ser o rei de Portugal e do Brasil. Podeis, [...], se julgardes conveniente, manifestar que eu vos sugeri estas idéias e que tal é o meu voto decidido” (Apud Amaral, 1941, p. 523).

piutiundo restringir os efeitos polapostou na centralizaçndo em Lisboa; o pri direç

Esta é a razão pela qual consta, entre as assinaturas do Congresso de Viena de 1815, a de “Sua Alteza, o Príncipe regente do Reino de Portugal e do Reino do Brasil”.

Em 16 de dezembro de 1815, no Rio de Janeiro, o Príncipe D. João assinou um documento que elevou o Brasil à categoria de reino. Reconhecendo

[...] a importância devida à vastidão e localidade dos meus domínios da América, à cópia e variedade dos preciosos elementos de riqueza que eles em si contêm; e outrossim reconhecendo quanto seja vantajosa aos meus fiéis vassalos em geral uma perfeita união e identidade entre os meus reinos de Portugal e dos Algarves [antigo reino muçulmano, tornou-se província portuguesa após a derrota dos mouros, mas conservou o título] e os meus domínios do Brasil, erguidos esses àquela graduação e categoria política [reino] que pelos sobreditos predicados lhes deve competir e na qual os ditos meus domínios já foram considerados pelos Plenipotenciários das Potências que formaram o Congresso de Viena [...] me apraz ordenar o seguinte: [...] – Que os meus reinos de Portugal, Brasil e Algarves forme (sic) d’ora em diante um só e único reino debaixo do título de reino de Portugal, Brasil e Algarves. (Apud Amaral, 1941, p. 538-539).

Não há como negar o impacto que a inclusão do Brasil como reino, no Congresso de Viena, provocou. Mas, o documento acima também exaltou o seu território; vejam-se as referências à superfície, localização, abundância e variedade de recursos naturais, o que, por si só, lhe conferiram um lugar especial na cena política mundial. Aos portugueses da metrópole, não escapou o significado político-jurídico desse decreto; por isso, o rejeitaram.

Todavia, a inauguração da “monarquia dual” (a partir da elevação do Brasil à categoria de reino) nada mudou no Brasil: a sociedade continuava estruturada na grande propriedade rural e no trabalho escravo. A presença maciça de portugueses na colônia, e os privilégios de que usufruíam, acirraram os conflitos internos. Nesse contexto, irrompeu a Revolução de Pernambuco, em 1817. Malgrado as taxas exorbitantes cobradas pela Coroa instalada no Rio de Janeiro, aos habitantes de Recife, e as disputas entre os portugueses ali residentes (geralmente comerciantes e funcionários) com os demais habitantes (mestiços ou não), esta revolução é de caráter republicano. Nesse sentido, os líderes desta Revolução defendiam as idéias liberais, o que não os impediu, contraditoriamente, de manterem a grande propriedade rural e o trabalho escravo, certamente temendo uma revolta africana. Proclamaram a República de Pernambuco, reconheceram os direitos do cidadão (que denominaram patriota), proclamaram a liberdade de culto, a liberdade de imprensa, tentaram sensibilizar as áreas vizinhas e, em busca de apoio internacional, enviaram emissários aos Estados Unidos, às Províncias Unidas da Prata (fundadas por políticos e militares em Buenos Aires, em 1810) e à Inglaterra. Duramente reprimida, em razão do ideal republicano de suas lideranças, a Revolução de Pernambuco foi derrotada; é apontada como a mais forte contestação contra a dominação portuguesa.

Ainda em 1817, o absolutismo da Casa Real de Bragança e a recusa do novo status do Brasil provocaram questionamentos em Portugal. Além disso, a interferência inglesa na administração e a grave crise econômica do país (déficit da balança comercial com o Brasil) levaram à Revolução do Porto, em 1820. Inspiradas pelos ideais do liberalismo, suas lideranças propuseram uma monarquia constitucional para a Coroa portuguesa, sem incluir o reino do Brasil, que deveria retornar à condição de colônia. As repercussões se fizeram sentir imediatamente no Brasil, onde alguns, os comerciantes e militares portugueses, também queriam restabelecer o pacto colonial. Outros, dentre os quais comerciantes brasileiros e estrangeiros, alguns proprietários rurais e mesmo funcionários portugueses aqui estabelecidos, acreditando que o absolutismo e os monopólios deveriam desaparecer, identificaram-se com os interesses do Brasil (Viotti da Costa, 1977).

Na cidade de Porto, a burguesia comercial formou uma Junta de Governo. A rebelião chegou rapidamente em Lisboa, onde se convocou uma Assembléia Nacional Constituinte, sob o nome de Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Seus trabalhos principiaram em 1821, e suas lideranças exigiram o retorno imediato do então D. João VI a Portugal, bem como solicitaram que cada província do Reino de Portugal, Brasil e Algarves instalasse uma Junta de Governo, que deveria designar seus representantes. Portugal tinha 100 representantes, contra 46 do Brasil (dos 69 eleitos, apenas 46 puderam se deslocar até Lisboa), recebidos com hostilidade pelos demais.

Além dessa diferença, é importante assinalar, entre os representantes do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva (mais conhecido como José Bonifácio), da Junta de Governo de São Paulo, que ocuparia um lugar de destaque na dinâmica política que não tardaria a se instituir. Provavelmente, é de sua autoria o documento Lembranças e Apontamentos, que levou para Lisboa. Neste documento, não há nenhuma referência a uma possível independência política do Brasil. Aceitando os princípios liberais, defendia a igualdade de direitos políticos e civis e a extinção gradativa do trabalho escravo. Finalmente, apresentava uma proposta atinente ao território: a criação de “uma cidade central no interior do Brasil”, para impulsionar o seu povoamento. Mas não questionava a continuidade da “monarquia dual”!

Os representantes brasileiros logo compreenderam que o objetivo maior das Cortes de Lisboa era a re-colonização do Brasil. Entretanto, as capitanias brasileiras (a colônia continuava dividida em capitanias) se cindiram: algumas aceitaram a proposta das Cortes, de retorno de D. João VI a Lisboa, que voltaria a desempenhar o papel de centro político único do Império, indicando que se consideravam províncias de Portugal e não reconheciam o governo instalado no Rio de Janeiro; outras aceitaram a continuidade da “monarquia dual” entre Portugal e Brasil, desde que a autonomia do último fosse reconhecida. Dentre as capitanias que se declararam províncias de Portugal, figuram o Grão Pará, no extremo norte, que tinha fortes laços com Lisboa desde a instalação do Estado do Maranhão, no século XVII. E a Bahia, na época a mais povoada e a mais rica. Quanto às outras capitanias, sua posição mudou ao longo do tempo, à exceção de São Paulo.

Com o retorno de D. João VI, que levou consigo a maior parte do tesouro da “monarquia dual”, Lisboa retomou sua antiga condição de capital do Reino de Portugal, Brasil e Algarves. Mas, o rei deixou, como regente do Reino do Brasil, o príncipe Pedro de Alcântara de Bragança e Bourbon, seu filho, insinuando que compreendia que as crescentes manifestações de protesto que aconteciam no Brasil acabariam por conduzir à sua independência política. As Cortes de Lisboa, por intermédio das medidas re-colonizadoras que tomaram ao longo de 1821, a começar pela anulação do ato de designação do príncipe D. Pedro como regente do Reino do Brasil, negavam a autonomia política e administrativa do Brasil, ao mesmo tempo em que intensificavam a estratégia de comunicação direta com as capitanias.

Diante deste quadro, o príncipe regente, com o apoio de algumas lideranças luso-brasileiras, sobretudo José Bonifácio, decidiu reagir, pois entendeu que a estratégia de comunicação posta em prática pelas Cortes de Lisboa, tinha o objetivo de impedir que ele as unisse em torno de seus novos interesses políticos, isto é, a possível independência do Brasil. Na verdade, a maior parte delas restava fiel a Lisboa. Ainda que Pernambuco não obedecesse às injunções de Lisboa, hesitou em aderir às proposições do príncipe regente, por causa da repressão sangrenta que sofreu, quando as autoridades do Rio de Janeiro puseram fim à República de Pernambuco. Minas Gerais dividia-se entre o apoio ao príncipe e a proclamação de uma república, a exemplo do que ocorria na antiga América Espanhola. Rio de Janeiro e São Paulo apoiavam o príncipe, o que não quer dizer que haviam descartado a continuidade da “monarquia dual”, mesmo no início de 1822. O mais importante é compreender que, ao contrário do que comumente se pensa, o Reino do Brasil não apresentava, até aquele momento, nenhuma unidade política e territorial. Em outras palavras: a colonização portuguesa não havia realizado a unidade político-territorial de sua possessão americana.

Por outro lado, alarmados com o que ocorria na vertente do Pacífico, as elites intelectuais e as autoridades brasileiras ou pró-brasileiras procuravam alternativas para impedir a fragmentação política no imenso território brasileiro; temiam a formação de várias repúblicas, sobretudo sob  “formato” haitiano. Assim, as capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se reuniram “[...] em torno do Príncipe Regente e formaram um bloco que deu ao governo do Rio a base necessária para reconquistar o resto do país” (Tôrres, 1961, p. 13). Em junho de 1822, o príncipe regente convocou uma Assembléia Constituinte, um ato jurídico que, politicamente, correspondia à declaração de independência do Brasil. Porém, as lideranças ainda não haviam descartado a “monarquia dual”, pois não queriam fazer a independência com a participação efetiva do povo. Ao mesmo tempo, a persistência das relações diretas entre Lisboa e as capitanias do norte era um problema que as afligia. A proclamação da independência do Brasil foi escolhida para por término ao conflito entre Portugal e Brasil, apenas quando José Bonifácio, persuadido da impossibilidade de se preservar a “monarquia dual”, avaliou, após muitas negociações, que “[...] as condições para garantir a unidade nacional [...]” (Beiguelman, 1967, p. 46) se apresentavam.

As pressões das Cortes de Lisboa aumentaram ao ponto de reduzirem o poder do príncipe regente ao de um simples delegado temporário das mesmas (Viotti da Costa, 1977). Tendo entendido que não havia mais alternativa, o príncipe D. Pedro proclamou a independência do Brasil em 7 de setembro de 1822. Já como D. Pedro I, outorgou a Constituição de 1824.

As elites brasileiras, de origem e cultura européias, incluindo dirigentes políticos, oficiais militares, lideranças econômicas e os intelectuais, decidiram fazer do vasto território, até então sem laços internos de coesão política ou econômica, “o grande império da América”. Por esta razão, escolheram o regime monárquico (entendiam que as idéias republicanas ameaçavam a integridade territorial), e mantiveram o trabalho escravo (este feito assinala os limites do liberalismo no Brasil).

A formação do Império do Brasil (1822-1889), governado por civis sob uma constituição, e que conseguiu, não sem batalhas (das quais o povo participou), vencer a insubmissão de várias capitanias e ser reconhecido como Estado independente na cena política internacional, sem fragmentar o seu território, singulariza o Brasil na América Meridional. É neste sentido que usamos a expressão mito unitário para designar o Brasil, em flagrante contraste com a expressão mito revolucionário que, a nosso ver, se aplica aos Estados-nações que se formaram na América Meridional espanhola, na medida em que a escolha do regime republicano tipificava a modernidade.
 

Continuidades e mudanças na América Latina

De qualquer maneira, quando pensamos em continuidades e mudanças na América Latina, terminologia mais usada para designar a América Meridional a partir de fins do século XIX, não há como evitar algumas questões políticas, das quais a mais importante talvez seja a seguinte: como falar ou até que ponto se poderia falar em revolução, se os combates pela independência eram politicamente conservadores?  O fato de que, em geral, os novos Estados criaram a nação “de cima para baixo” não mostraria os limites da revolução liberal, representada pela eliminação do status de colônia? A manutenção da escravidão no Brasil (até 1888), não seria outro limite importante, assim como a presença da monarquia brasileira no “continente das repúblicas”? Afinal, a proclamação de repúblicas, em primeiro lugar a dos Estados Unidos da América, era o sinal mais evidente de que a modernidade política se instaurava neste continente.

Não há, contudo, como negar que os Estados Unidos também mantiveram a escravidão até 1865, o que não causou dificuldades para o seu desenvolvimento industrial, e que a abolição da escravidão nas repúblicas de origem espanhola não implicou, de fato, em alterações das estruturas sociais e políticas (ou na construção de novas estruturas).

Se os novos Estados latino-americanos diferiam quanto ao regime político, é igualmente verdadeiro que seus líderes entendiam que a sua coesão dependia da formação da nação, em um tecido social fortemente marcado pela mestiçagem biológico-cultural. Mas, como formar uma nação em um vasto território, com uma população dispersa, rarefeita, composta por brancos, indígenas e africanos, apresentando condições econômico-sociais muito diferentes, e onde a independência antecedeu o nacionalismo? E como fazer uma nação em cada uma das repúblicas proclamadas no interior de um mesmo conjunto político que, cerca de três séculos, apresentou uma unidade significativa, personificada pelo rei espanhol? Se, no Brasil, o risco era o de um esfacelamento do território, o que, na visão aceita durante muito tempo pela História oficial, representaria uma mudança em relação ao período colonial, sobretudo se tal esfacelamento ocorresse via proclamação de repúblicas, na outra vertente da América, a personalização do poder na figura dos militares que se destacaram principalmente durante as guerras coloniais, a começar por Bolívar, pode ser apontada como uma mudança, ainda que tenha provocado graves conseqüências.

Construir um Estado forte e centralizador, era, em poucas palavras, o projeto das autoridades governamentais brasileiras ou pró-brasileiras e de suas elites. Se, em 1822, tal projeto não existia senão em suas mentes, como explicar que, finalmente, conseguiram fazer do Brasil “o grande império da América”?  A nosso ver, isto foi possível porque fizeram da força simbólica da idéia de território, derivada de sua vastidão e de seus recursos naturais, o princípio fundador da futura unidade política brasileira (Vlach, 1997); neste sentido, preferiram manter o regime monárquico, apesar de o mesmo evidenciar a continuidade. É preciso, pois, registrar o papel das elites brasileiras (dirigentes políticos, oficiais militares, lideranças econômicas e intelectuais), inclusive porque sua atuação contrasta profundamente com a das elites criollas.

Em toda a América Meridional, a atuação de ambas as elites foi fundamental para a sua  emancipação política. Porém, enquanto autoridades dos governos que foram se instalando, as brasileiras ou pró-brasileiras fizeram tudo para construir a unidade político-territorial do Brasil; as criollas agravaram os particularismos locais (ou regionais) e acabaram por fragmentar o território do antigo Império Espanhol da América.

Até a vinda da Corte portuguesa para a América, as autoridades governamentais brasileiras, como suas homólogas em Portugal, em geral tinham uma formação jurídica comum, dado que obtida na Universidade de Coimbra, o que explica a sua grande homogeneidade (Carvalho, 1981). Isso contrasta com a experiência das elites criollas, formadas em universidades dispersas pelos Vice Reinos e Capitanias Gerais mais importantes da América espanhola, o que agravou os particularismos locais (ou regionais). No que concerne às elites brasileiras, a importância do componente ideológico de sua formação, o peso da tradição de Coimbra (uma das mais antigas universidades européias), a pedagogia utilizada, criaram laços intensos entre todos os que viveram essa experiência em Coimbra. As elites criollas, além de afastadas dos postos mais importantes da administração colonial, tiveram uma formação local ou regional, que lhes impediu uma convergência ideológica em sua prática política.

Porém, a homogeneidade das autoridades governamentais e das elites brasileiras era tão forte que provocou uma distância quase intransponível entre elas e o povo; mas lhes permitiu construir um Estado forte e centralizador! Não cansavam de afirmar que o regime monárquico, sob governos civis, distinguia radicalmente o Brasil das repúblicas vizinhas, onde

Os corpos militares organizados durante as guerras de independência, uma vez desaparecida a geração dos chefes militares profissionais, tornaram-se instrumentos dos caudillos que, em certos casos como o argentino, conseguiram unificar o país, enquanto que na maioria dos outros, apenas conseguiram manter uma situação de rebelião permanente (Carvalho, 1980, p. 37).

Expliquemos, pois, a emergência dos caudillos. Lembremo-nos que o Império Espanhol tentou retomar suas antigas possessões na América, por meio da força militar. Tais guerras fragilizavam terrivelmente as novas repúblicas. Assim, em 1815, Bolívar, em uma carta considerada profética, ponderou: “Puisque ses populations ont une même origine, une seule langue, une seule religion, les mêmes coutumes, elles devraient par conséquent n’avoir qu’un gouvernement qui fédérât les divers Etats constitués (apud Minguet e Morvan, 1983, p. 114). A alternativa que encontrou para fazer face ao inimigo externo (a Espanha) e ao inimigo interno (o federalismo, que responsabilizou pela derrota da primeira república proclamada na Venezuela, em 1811), a seu ver associados (os espanhóis a reconquistaram no ano seguinte), foi a retomada da idéia de americanidade, sob o projeto de fundação da Confederação hispano-americana. Por meio deste projeto político, Bolívar objetivava consolidar a recente emancipação das novas repúblicas. Esta  Confederação, como um corpo político único,  poderia, quem sabe,  enfrentar o poder da Europa, e o dos Estados Unidos da América, que tendiam a se destacar cada vez mais no  concerto das nações. Nesta última acepção, esta proposta não representaria uma mudança importante?

A fundação da República da Grande Colômbia, por Bolívar, em 1819, foi a primeira tentativa concreta no sentido da implantação dessa Confederação. Em 1823, por influência de suas idéias, as elites criollas da Guatemala formaram a Confederação da América Central, cuja localização geográfica lhe conferia um papel estratégico (era uma das rotas comercial-marítimas das mais importantes, do ponto de vista dos Estados Unidos). Três anos mais tarde, a convite de Bolívar, reuniram-se na cidade do Panamá, as repúblicas convidadas para participarem da primeira assembléia da Confederação Americana. Estavam presentes os representantes da Confederação da América Central, da Grande Colômbia, do México e do Peru. Os Estados Unidos não enviaram representantes, porque já haviam, por meio da Doutrina Monroe (“A América para os Americanos”), definido sua posição no continente, em 1823 (a Santa Aliança ameaçava o processo de emancipação em curso na América Meridional). A Argentina, interessada em anexar a antiga província Cisplatina (atual Uruguai), declinou do convite. O Chile não estava presente. Quanto ao Brasil, inicialmente excluído do projeto por causa do regime monárquico e porque a dimensão de seu território era igualmente entendida como uma ameaça às jovens repúblicas, finalmente, foi convidado oficialmente. Mas, seu representante chegou tarde, e não pôde participar dos trabalhos dessa assembléia.

O Congresso do Panamá foi uma derrota completa. Entre outros aspectos, evidenciou que os particularismos locais ou regionais já substituíam a idéia de americanidade. Em um quadro que podemos caracterizar, de maneira sintética, pelo desenvolvimento de rivalidades entre os chefes  militares que haviam feito a independência e começavam a governar as repúblicas, pelos conflitos entre as elites criollas e o povo e, em seu interior, entre os civis e os militares, entre as frações sociais urbanas e rurais, ou seja, em um quadro de conflitos graves em torno do exercício do poder político e do controle da economia, emergiram novos atores políticos: os caudillos, em geral de origem popular e aliados às elites rurais, mas que conseguiram mobilizar as forças políticas de uma região e, a partir dela, as forças de toda uma república (em alguns casos, como na Argentina) exatamente porque dialogavam com o povo, isto é, indígenas, africanos e mestiços (as disputas étnicas eram uma das dificuldades que fragilizavam internamente os novos Estados). O prestígio dos caudillos decorreu de sua identificação com o povo e do fato de que “plus pragmatiques et sans grandes visions, ils réussirent là où San Martín et Bolívar échouèrent: fonder des Etats” (Chevallier, 1993, p. 88). Em outras palavras, nas repúblicas onde os caudillos conseguiram restabelecer a ordem social, substituíram o projeto de uma confederação pelo projeto de construção de um Estado nacional. Assim, a idéia de americanidade, a partir de 1830, foi substituída pela de petite patrie, por meio de uma exacerbação dos particularismos locais ou regionais, que se impuseram gradativamente sob a forma de uma nação.
 

Considerações finais

A mudança de status – de colônia a Estado-nação moderno – não só provocou mudanças, quanto apresentou continuidades, a começar pelo fato de que os novos Estados mantiveram a língua de suas antigas metrópoles. Os desdobramentos das continuidades e mudanças, contraditórios e complementares, não se excluem na América Latina de fins do século XIX, quando as novas repúblicas e a monarquia brasileira construíam suas respectivas identidades nacionais, sem respeitarem a plurietnicidade e a mestiçagem biológico-cultural, no que foram beneficiadas pela ausência do povo como sujeito na dinâmica política do tecido social.
 

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Ficha bibliográfica:
 
VLACH, V. Organização territorial dos estados-nações na américa meridional: continuidades e mudanças. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (77). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-77.htm> [ISSN: 1138-9788]