REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. X, núm. 218 (62), 1 de agosto de 2006 |
ADENTRANDO SERTÕES: CONSIDERAÇÕES SOBRE A DELIMITAÇÃO DO TERRITÓRIO DAS SECAS
Angela Lucia Ferreira
Depto. de Arquitetura e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
UFRN - Brasil
George A. F. Dantas
Doutorando História da Arquitetura e do Urbanismo
EESC/USP - Brasil
Helio T. M. Farias
Mestrando Arquitetura e Urbanismo
UFRN - Brasil
Adentrando sertões: considerações sobre a delimitação do território das secas (Resumo)
O Sertão foi um desbravar contínuo, de fronteiras que se construíram no enfrentamento das vicissitudes econômicas, sociais e geográficas; fronteiras que são físicas e culturais e que permaneceram imprecisas ao longo do século XIX e mesmo nas primeiras décadas do século XX. Assim, pretende-se estabelecer neste artigo algumas notas introdutórias para discutir o processo histórico de construção da entidade geográfica conhecida como Sertão. Para tanto, são problematizados alguns pontos da espessa trama discursiva, oriunda de fontes e disciplinas diversas (relatos de viajantes, relatórios técnicos, registros jornalísticos, pesquisas etnográficas, etc.), que conformariam essa construção. Vinculado quase sempre ao temário das secas, o Sertão constituiu-se num dos espaços privilegiados dos debates nacionais. Compreender a instrumentalização do enfrentamento do Sertão como problema técnico pressupõe assim a compreensão de como foram delimitados seus limites, suas características, seus conteúdos.
Palavras-chave: formação territorial – Sertão – secas – representações – discurso técnico
Penetrating sertões: issues on the delimitation of the territory of droughts (Abstract)
The Sertão was a continuous taming of frontiers that were built on the confronting of economical, social and geographical challenges; frontiers that are physical and cultural and that remained inaccurate along the nineteenth century, and even into the first decades of the twentieth century. Thus, this paper aims to establish a few introductory notes for the discussion of the historical process of construction of the geographical entity known as Sertão. To that end, we problematize some issues of the thick discursive weave, originated in diverse sources and disciplines (traveler reports, technical reports, jornalistic records, ethnographical research, etc.) that would shape such construction. Almost always linked to the droughts theme, the Sertão became one of the privileged arenas for national debate. To comprehend the instrumentalization of the confronting of the Sertão as a technical problem thus assumes the comprehension of how its limits, its characteristics, and its contents were delimited.
Keywords: Territorial formation – Sertão – droughts – representations – technical discourse
“Entrava eu para o Sertão e este merecia o nome...”
Henry Koster, Travels in Brazil, 1816.
Introdução
De origem obscura, a palavra “sertão” não é, contudo, polissêmica. Imprecisa, sim, cujos limites semânticos se ampliam ou se retraem e que, a princípio, designou de maneira geral o interior pouco povoado, a região agreste distante dos núcleos humanos ou do litoral. Para os portugueses do século XV e XVI conotava interior, em oposição ao litoral ou a um centro político urbano. A carta de “achamento” do Brasil de Pero Vaz de Caminha é ilustrativa a esse respeito: “não duvido que por esse sertão [saartão, no original] ajam muitas aves” ou ainda “de ponta a ponta é toda praia parma e muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terras com arvoredos, que nos parecia muito longa”.[1]
No início do século XIX, um viajante como o inglês Henry Koster perguntava-se, ao atravessar parte da porção setentrional da nascente nação brasileira: “essa palavra [sertão] virá de Desertão, usada no aumentativo de Deserto, como é o costume português?”. Depois, descrevendo a estrutura rudimentar da rede de caminhos na região, diria que João Pessoa (então Cidade da Parahyba), assim como Natal, estavam “fora da estrada que vem do Sertão ao Recife”. O complemento a essa descrição é significativo: “A palavra sertão é empregada de maneira indefinida, não somente significando o interior do país mas, às vezes, grande parte da costa cuja população é parca. Assim, toda a região situada entre o Rio Grande [do Norte] e a Paraíba é chamada Sertão” (Koster, 1942, pp. 87; 91, nota 6; 94, nota 12; grifos no original).
Indefinição que seria designativa também para Euclides da Cunha. “Terra ignota”, i.e., terra desconhecida, ignorada, que tinha ficado à margem tanto das incursões bandeirantes aos sertões entre o final do século XVI e o início do XVIII quanto da ocupação humana a partir do litoral. Uma porção significativa desse imenso (e impreciso) sertão quedava desconhecida, como um “território estranho”, diria o engenheiro, a respeito da região ao sul do rio São Francisco onde se desenrolaram os acontecimentos da chamada Guerra de Canudos. E isso, diga-se a propósito, depois das inúmeras expedições científicas, dos estudos e comissões técnicas e da abertura de estradas e vias férreas ao longo do século XIX no vasto interior do Brasil. [2] O sertão era, assim, dentro de sua leitura geográfica, “quase um deserto”. Mas, o sertão ou os sertões, cabe indagar. A pluralidade parece reconhecer a multiplicidade de fronteiras – geográficas e culturais – que foram se constituindo em quatros séculos de história ocidental do Novo Mundo. Se há sertões, interessou particularmente a Cunha aquele do rio Vaza-Barris, de Canudos, exatamente porque era como “um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum” (Cf. Cunha, 2000, p.12, 13, 21, 33).
Fez-se até aqui apenas referências a alguns dos pontos de uma trama complexa, espessa, de sentidos e significantes que tentariam objetivar o sertão, ou os sertões, como uma entidade geográfica. Sob a denominação de uma palavra que guarda ainda a sua generalidade inicial, diversas regiões contíguas (com suas similaridades e diferenças geográficas, culturais, sociais) foram circunscritas – daí a propriedade de se falar em “sertões”, no plural. Contudo, pontos comuns foram explicitados, ressaltados, para além das diferenças. Um desses foi e é o fenômeno climático das secas. Como diria o próprio Euclides da Cunha: “ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes: empedra-se o chão, gretando; recrestado, (...)” (Ibidem, p.39).
Circunscrever, explicitar, ressaltar pontos comuns (e, por oposição, colocar em segundo plano diferenças) são procedimentos que desvelam articulações e estratégias dos sistemas de saber e poder. Desse modo, diga-se logo que as regiões não são espaços inscritos na Natureza, mas, sim, construções históricas, cujas circunscrições físicas e discursivas revelam, amiúde, muito mais acerca daquilo que descreve e cataloga do que sobre o que é descrito e catalogado (Albuquerque Jr., 2001; Said, 1990).
É importante um esclarecimento: trabalha-se aqui com a noção de região como conceito, como significante de um campo discursivo. Ainda assim, deve-se enfatizar que a palavra “região” normalmente compreende uma noção fiscal, administrativa e/ou militar, enquanto a palavra “território” abrange uma noção geográfica jurídico-política – que implica um determinado controle por um determinado poder (Cf. Foucault, 1990, p.157).
Assim, pretende-se estruturar neste artigo algumas considerações, algumas possibilidades de leitura e enfrentamento do processo histórico (que, por conseguinte, conforma um problema historiográfico) de construção da entidade geográfica conhecida como sertão; entretanto, daquele sertão específico e ao mesmo tempo abrangente cuja imagem e significação se articularam a partir do tema das secas, cujas fronteiras se definiram a partir das secas. Interessa portanto iluminar alguns pontos dessa trama historiográfica que construíram o sertão. Sertão que se constituiu também como um espaço discursivo heterogêneo onde se cruzam fontes diversas, provenientes de várias disciplinas.
Mas, como se formaram as fronteiras, os limites desse objeto – da região definida e reconhecida como sertão? É importante aclarar os suportes conceituais dos passos metodológicos aqui utilizados para compreender o processo histórico de construção do sertão; das estratégias de leitura que informam a problematização do registro sistemático de diversos viajantes estrangeiros, como Henry Koster, até as andanças dos intelectuais modernistas e regionalistas das primeiras décadas do século XX, como Mário de Andrade e Câmara Cascudo.
Afirmar que uma região, qualquer região, é construída historicamente não significa dizer que seja uma irrealidade, uma ficção, uma peça ideológica para manipulação de interesses e consciências. Implica dizer, sim, que por trás da cristalização e institucionalização das divisões geopolíticas de um território há um conjunto de representações em disputa, de esquemas intelectivos de conhecimento, descrição, catalogação. Como discute Luciana Martins (2001, p.12), o registro material (por meio da cartografia, das pinturas, dos desenhos e esboços, dos diários de bordo, dos livros de viagens e, depois, dos relatórios técnicos, da literatura, etc.) da “paisagem dos lugares” revela uma “geografia imaginativa em formação” e, por conseguinte, uma “paisagem das idéias”.
Os recortes operados sobre uma determinada realidade geográfica derivam, claro, do enfrentamento sobre essa mesma realidade, assim como dos elementos prévios que informam e moldam esse enfrentamento. Isto significa considerar inclusive as representações, as leituras e imagens pré-existentes – as “geografias imaginativas” – sobre as regiões, no caso, sobre o sertão. Leituras e imagens que se acumularam e se cruzaram, configurando, de certo modo, uma tradição e, mais importante ainda, uma naturalização, i.e., a região, de construção intelectiva, parece tornar-se um dado imutável da natureza.
Desse modo, certos registros foram ganhando autoridade, cuja simples menção abalizava e encerrava uma discussão, não exigindo maiores desdobramentos ou aprofundamentos. O geólogo Geraldo Waring, e.g., ao falar sobre a irregularidade (espacial e temporal) das chuvas na “região semi-árida do país” (uma precisão nas leituras do sertão), dentro dos estudos conduzidos sob os auspícios da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), aponta para os livros de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902), e de Phelippe Guerra e Theophilo Guerra, Secas contra a seca (1909), como referências que lhe eximiam da necessidade de explicar a região e sua dependência do regime de chuvas (Cf. Waring, 1923, p.04).
Dos muitos sertões que podem ser evocados a partir das ênfases distintas de cada disciplina ou campo de interesse temático, este artigo aborda inicialmente dois: o sertão “científico” que emerge do relato dos viajantes, quer cientistas ou não (exposto nas seções “um sertão impreciso” e “um sertão científico”); e o sertão “cultural”, oriundo dos interesses de intelectuais e literatos que, em sua maioria, buscavam compreender a formação cultural do Brasil e, mais especificamente, da região (exposto na seção “um sertão cultural”). Como se afirmou antes, essas ênfases distintas não conformam leituras estanques; ao contrário, são leituras que, muitas vezes, se auto-referenciaram, constituindo um campo fecundo de significados sobre o sertão.
Esse interesse remete-se a um problema de fundo que move um projeto de pesquisa maior, ao qual os autores deste artigo estão vinculados, e que investiga “a formação dos saberes e das práticas sobre as secas e, em conseqüência, a relação entre esses elementos formativos (comissões, instituições, polêmicas, debates, ações de campo, etc.) e o processo de construção da cidade moderna no Brasil” (Ferreira, Dantas e Eduardo, 2005, p.02). [3] Para compreender a formação de tais práticas e saberes é fundamental entender a construção do próprio objeto sobre e em torno do qual se articularam propostas, projetos, políticas. Objeto que aqui diz respeito ao sertão como região, e não às secas, embora, como já se disse, em vários momentos as características tenham sido sobrepostas e, assim, se tomasse uma palavra pela outra.
Um sertão impreciso
Em 1810, desvencilhando-se dos conselhos que o instavam a não tentar cruzar os vales do Ceará-Mirim e do Assu em um período de seca prenunciada, o inglês Henry Koster decidiu continuar a viagem por terra iniciada algumas semanas antes na cidade do Recife. Depois de atravessar as províncias de Pernambuco e da Paraíba e a porção costeira sul da província do Rio Grande do Norte, Koster dispunha a si e a seu pequeno séqüito a, da cidade de Natal, atingir a cidade de Fortaleza, na província vizinha do Ceará (Cf. Koster, 1942, cap. VI).
A travessia que surge da narrativa de Koster configuraria um dos primeiros registros sistemáticos (de viés pré-etnográfico) do sertão, do sertanejo, da região transtornada pelas secas (Cascudo, 1942). Aqui há praticamente uma sobreposição: entrar o sertão é entrar a região das secas. Esse adentrar é narrado como uma sensação física marcada pela desolação das secas, expressa na relva calcinada, na falta d’água, nas folhas a cair das últimas árvores resistentes, na água suja, salobra, empoçada. Sensação que forçava a alteração nos padrões de civilidade e “conforto” – “como ordinariamente, o poço era imundo e salobro, porém não esquecerei jamais com que delícia sorvi os primeiros goles. Quando quis continuar, não o foi possível, tal o seu sabor era nauseante”, lembraria Koster (op. cit., p.128).
O sertão era muito maior, embora de uma grandeza e extensão indefinidas, do que aquela região que atravessava – isso é claro no relato do viajante inglês, que se pôs a compulsar, a partir dos testemunhos orais, informações que fundamentavam sua descrição. É importante reconhecer que Koster é um viajante arguto, observador tenaz, embora não fosse movido por interesses científicos, cartográficos, colecionistas ou de catalogador, como os de outros viajantes do período. Koster não arroga imparcialidade e nem se restringe à noção, que marcara as narrativas dos séculos XVII e XVIII, de que o observador poderia permanecer exterior à cena, imóvel, construindo uma visão objetiva, pura, do mundo (Martins, 2001, p.42-44). Tomando notas “sentado na porta da casa grande, pisando o massapé do canavial, cochilando no embalo da rede, sacudido no choto do cavalo tungão, mastigando léguas-de-beiço”, como registraria seu tradutor do século XX (Cascudo, 1942, p.09), i.e., inserido e participante como um observador “móvel, útil e produtivo” (Martins, loc. cit.) do seu próprio relato, Koster seria tomado como portador de um registro acurado, preciso. O capitão inglês e também viajante Richard Burton deu-lhe o epíteto – the accurate; Câmara Cascudo, endossando a validade dos registros de Travels in Brazil para uma etnografia histórica, traduz-lhe como “o exato” (Cascudo, loc. cit.).
Mesmo assim, percebe-se-lhe como portador de uma autoridade e de um conhecimento prévios – ainda que não institucional – que autoriza as suas incursões e o valor dos seus relatos. Não se deve esquecer, ademais, que as notas tomadas ao sabor das andanças seriam depois ponderadas, revisadas, no gabinete do Robert Southey, em Londres – onde, certamente, consultou muitos documentos raros e relatos de outros viajantes, como o de Barlaeus, escrito no século XVII (cf. Koster, 1942, p.07).
Lembre-se isto para ajudar a entender a afirmação do viajante quando anuncia: “entrava eu para o sertão e esse merecia o nome” (Ibidem, p.123). Se merecia o nome é porque encontrou ali elementos distintivos sobre os quais lera/ouvira antes. Uma imagem pré-existente – que pode ser formada também por palavras, cheiros, sons – portanto. Assim, qual geografia imaginativa informara a sua visão do sertão? quais elementos lhe permitiam dizer que, a partir de determinado momento da travessia, cruzava os umbrais do sertão?
Como já se disse, o sertão surge para Koster como uma imprecisão, um fluidez de limites e dos usos sociais, i.e., de fronteiras físicas e culturais. As próprias distâncias se mediam imprecisamente (diga-se, para além da imprecisão dos instrumentos de época): “A légua do Sertão não tem jamais menos de quatro milhas. Há léguas grandes, léguas pequenas e léguas de nada, as quais achei muito longas não obstante sua encorajante denominação” (Koster, 1942, p.130; grifos no original).
De fato, para Koster, todo sertão – e não apenas essa região percorrida – estava distante da precisão da regras de um mundo civilizado. As cidades e vilas urbanas eram pequenos oásis de hábitos civilizados em meio à estrutura senhorial do mundo rural – conquanto faça a ressalva de que falar em civilização aqui implica um rebaixamento dos parâmetros europeus: “Pela manhã subseqüente ainda passamos arvoredos e, perto do meio-dia, chegamos a Vila do Assu. Oh, que alegria tive vendo uma igreja!... e a perspectiva regular de uma vila, com pessoas civilizadas, se assim as posso chamar de ‘civilizados’, de acordo com as idéias européias” (Koster, op. cit., p.138). A situação no mundo rural era ainda mais desanimadora, distante dos núcleos urbanos, das práticas religiosas regulares, de um sistema jurídico, ainda que precário. Os liames que preservavam o “desaparecimento total das regras estabelecidas na sociedade civilizada” eram muito tênues, por vezes apenas os serviços religiosos (casamentos, batizados, etc.) que se realizavam uma ou duas vezes por ano (Ibidem, p.132).
As secas tensionavam ainda mais esses tênues liames. Deve ter causado espécie ao viajante inglês a desestruturação causada pelo fenômeno: diversas vezes registrou os longos deslocamentos de indivíduos e famílias, mesmo daquelas mais abastadas do interior, em busca dos gêneros básicos (como a farinha) para a subsistência; a “disposição errante” do povo dessa parte do país; as famílias, propriedades e bens deixados à mercê; a fragilidade da segurança social na região – aqui não apenas pelas secas, mas, principalmente, pela estrutura de poder patriarcal e patrimonialista do mundo rural, onde os caprichos pessoais, os interesses de um indivíduo ou família, sobrepunham-se facilmente às regras a princípio impessoais do sistema de organização social; registraria também a figura do “sertanejo em viagem”, sua indumentária e apetrechos (Ibidem, p.119, 121, 129, 133, 150-51, 169, 176).
Registro de imprecisão e impossibilidades, desembocando na condenação, que apenas se agravou ao atravessar semelhante região: “a região que percorri, vindo [da cidade] do Natal, qualquer que seja o estado de seu progresso e o desenvolvimento da sua população, jamais será fértil”; mais adiante, reafirmaria: “o aspecto geral da Capitania do Rio Grande do Norte é que ela é de fertilidade medíocre ao sul de Natal e estéril ao norte, excetuando as margens e os arredores do [rio] Potengi” (Ibidem, p.138, 155). Ao evocar a memória que coletou sobre as secas e lembrar sua própria experiência da viagem, afirmaria:
“Na minha viagem de Goiana [em Pernambuco, vila próxima a Recife] ao Ceará, tinha visto Pernambuco, e províncias vizinhas ao Norte, em situação péssima por uma estação sem chuvas, mas a extrema penúria é produzida por dois anos sucessivos de estio. Durante o segundo ano os moradores morriam ao longo das estradas. Famílias inteiras se extinguiram. Vários distritos se despovoaram. A região esteve nesses estado terrível em 1791, 1792 e 1793, (...). Em 1810 podia-se procurar víveres, embora por preços exorbitantes, e no ano seguinte caíram as chuvas por abundância, dissipando o fantasma da fome. Tinha, como disse, visto as províncias atravessadas, sob a extrema seca, por falta de chuvas; experimentei pessoalmente suas inconveniências e, num momento, sofri considerável angústia. Agora regressando, essas regiões mudaram” (Ibidem, p.179-180).
Embora tenha visto com assombro a rápida recuperação da vegetação após as primeiras chuvas, a “lembrança apreensiva da falta d’água” se impôs ao viajante (Ibidem). As secas conformavam assim um duplo: por um lado, expandiam (ou retraíam) as fronteiras do sertão, extrapolando, ao alcançar o litoral, a noção original de “interior”; por outro, erigiam uma fronteira à possibilidade do progresso, da civilização. Ao chegar na então Vila de Fortaleza, Koster vaticinaria: “a dificuldade de transportes terrestres, particularmente nessa região, e falta de um porto, as terríveis secas, afastam algumas ousadas esperanças no desenvolvimento de sua prosperidade” (Ibidem, p.166-67).
Indagou-se acima quais imagens e elementos estavam em jogo na leitura de Koster sobre o sertão. Há, pelo menos, duas fontes – não excludentes entre si. Primeiro Koster compulsou as notícias, dados e relatos no próprio Brasil, na cidade do Recife, antes de empreender essa viagem a que nos referimos antes. A experiência da viagem é chave para a construção da sua imagem do sertão. Não basta ler sobre ou consultar os compêndios: era preciso sentir, fisicamente inclusive, as dificuldades que se lhe apresentavam previamente; era preciso pôr em tensão as próprias representações, as memórias, as experiências de outrem que lhe eram relatadas.
Em segundo lugar, Koster, como britânico, embebe-se nas representações colonialistas sobre a geografia do “outro”, dos espaços considerados não-civilizados, em especial, dos Trópicos e do Oriente. Afinal, o relato de Koster insere-se num contexto de emergência de um observador moderno, assim como de estabelecimento do orientalismo moderno como discurso, cuja influência da estrutura de leitura e análise projeta-se para além do oriente geográfico (Cf. Said, 1990). É significativo que Koster pense o sertão, a princípio, como derivado de deserto – imagem quase inerente de mistério e imprecisão. Imagem que continuaria, expandir-se-ia: o viajante francês Alcide D’Orbigny, ao referir-se ao sertão na década de 1820, fala em um “ingrato deserto” (D’Orbigny, 1976, p.100); Euclides da Cunha, depois, usou a expressão “quase um deserto”, como já citado.
Nesse sentido, não é à toa que o relato de Koster fosse avalizado por um eminente orientalista, o capitão Richard Burton, possivelmente interessado nas análises calcadas nas noções de reclusão e um despotismo à maneira oriental que marcam os registros de Travels in Brazil sobre a vida privada – “muito brasileiros também, mesmo de classe superior, seguem os costumes mouriscos, de sujeição e reclusão”, que tanto obstavam as possibilidades de “melhoramentos” (Koster, 1942, p.83); a condição da mulher, em especial, no Brasil e, sobremaneira, no interior, no sertão, era expressão dessa incivilidade (no olhar do viajante britânico): a “mulher raramente aparece e se é vista não toma parte na conversação, a menos que, sendo boa esposa, esteja vigiando o assado” (Ibidem, p.205). [4]
Por fim, não se pode desconsiderar a contribuição individual do registro de Koster, que se construiu no confronto entre as imagens e leituras prévias com as quais travara contato e o seu adentrar constante de um território então não constituído, bordejando sempre as fronteiras das secas.
Um sertão científico
A precisão do sertão como o território das secas seria estabelecida a partir da segunda metade do século XIX com as comissões científicas e técnicas enviadas sucessivamente, tanto pelo governo imperial quanto, depois e principalmente, pelo republicano. O esforço de compreensão do fenômeno climático iria pressupor a delimitação geográfica da sua incidência e, mais ainda, a possibilidade de transformação, i.e., de lugar de uma natureza errática e inóspita – o “outro” da civilização – os técnicos, engenheiros sobremaneira, iriam defender a possibilidade de estruturar o sertão como um território, espaço de cultivo, cultura e, portanto, civilização. Esse processo desembocaria, nas primeiras décadas do século XX, na criação de um órgão federal específico, a IOCS (em 1909), e na delimitação de um outro geográfico, o “polígono das secas” (1951), cujas políticas se articularam também nas sobreposições entre secas e sertão.
Contudo, essas sobreposições antecedem as formulações científicas e técnicas. Já anotamos a ênfase de Koster na imprecisão da noção de sertão e na (quase) metonímia entre secas e sertão. Outro viajante, dessa vez um jovem francês, Alcide D’Orbigny, registraria também porções significativas do sertão, embora a partir de outro itinerário.
Enviado pelo Museu de História Natural de Paris, D’Orbigny percorreria primeiro a Argentina, o Chile e o Peru, antes de entrar no território brasileiro pela região da Amazônia, na segunda metade da década de 1820. Da sua longa viagem, que atingiria ainda as províncias do sul, apontamos aqui apenas a travessia pelo interior das então chamadas províncias do Norte (da porção leste). Saindo de São Luis, no Maranhão, o jovem naturalista cruzaria a província do Piauí, passando pelos limites de Pernambuco até chegar ao interior da Bahia, daí rumando ao litoral, à cidade de Salvador. Nesse trajeto, a entrada do sertão surge com um marco geográfico específico – a Serra Dois Irmãos –, embora permaneçam a imprecisão e a vagueza do conhecimento sobre o território:
“Chega-se assim à Serra dos Dois Irmãos, que faz parte da grande cadeia de montanhas que, em uma extensão de menos de cinco graus de latitude, separa a província do Piauí das províncias de Pernambuco e Bahia, situadas mais a leste. As noções que se têm sobre essa cadeia são incompletas e vagas: da confusão dos nomes resulta uma confusão sobre a orientação da cordilheira. (...). Os sertanejos de Pernambuco e Paraíba chamam o seu ramo principal de Serra de Borborema (...), ao passo que, para outros, essa denominação se circunscreve ao ramo de nordeste, que constitui o limite entre o Ceará e o Rio Grande do Norte” (D’Orbigny, 1976, p.95).
O registro de fronteira, de uma pelo menos, nesse sentido é mais clara do que a de Koster. “Naquele ponto”, escreve D’Orbigny, “começa o sertão de Pernambuco, que se estende entre o Rio Grande e o Pontal, afluentes da margem esquerda do São Francisco. (...). É ainda uma região quente e seca. Os poucos regatos que a banham secam, quase todos os anos, durante o terrível período da estiagem” (Ibidem, p.96). Mas, percebe-se logo, a leitura do sertão logo opera uma redução, circunscrita aos caracteres das secas – que implica, inclusive, uma diferenciação étnica: o sertanejo seria distinto dos habitantes do Piauí, do litoral e da região das Minas, grosso modo as regiões contíguas (cf. Ibidem, p.97).
Essa redução aponta uma aproximação entre os dois relatos dos viajantes aqui citados. É muito provável que D’Orbigny não conhecesse o livro de Koster, apesar das várias edições que se sucederam desde 1816 (a edição francesa do Travels in Brazil é de 1818, e.g.). Observe-se que D’Orbigny leu e citou profusamente vários autores e não apenas os franceses, como Humboldt, Eschwege, o material das expedições de Neuwied e Langsdorff, além de Saint-Hilaire, Maria Graham e, em especial os naturalistas Spix e Martius, dentre outros (Ibidem, p.13-36 passim). Mas Koster não faz parte dessa lista e nem mesmo Robert Southey, cuja “História do Brasil” se tornara muito conhecida e já estava publicada quando D’Orbigny empreendeu sua viagem. A referência a Southey é importante porque serviria para mapear leituras em segunda mão, pelo menos. Afinal, além de incentivador para que Koster publicasse seu relato, Southey franqueou-lhe sua imensa e valiosa biblioteca e, depois, usaria Travels in Brazil como referência diversas vezes (cf. Cascudo, 1942).
Mesmo assim, há uma aproximação nos esquemas de análise, nas imagens do sertão, na redução ao território das secas. Embora não seja possível aprofundar aqui esse tema, tal aproximação aponta para um fundo comum de representações, construídas, como dito antes, no confronto entre imagens pré-existentes (dentre as quais, coloca-se como hipótese, algumas oriundas do orientalismo) e a exploração do desconhecido.
Assim, as secas permaneceram também como uma fronteira à civilização e ao progresso, fronteira que era lida amiúde como instransponível. Ora reduzindo à metade os rebanhos, ora isolando os núcleos urbanos e as fazendas, depauperando a já parca cultura de subsistência, a região prostrava-se na dependência econômica quando a “terra se abre, então, em largas fendas, a vegetação estiola-se e perece [e] os animais morrem de fome e sede”, formando um “ingrato deserto” (D’Orbigny, 1976, p.96, 100).
O relato de D’Orbigny traz um outro registro importante: esse território marcado por tantas e periódicas dificuldades e que, “por sua natureza, difere do que o cerca, forma hoje a subdivisão política denominada Comarca do Sertão de Pernambuco” (Ibidem, p.96; grifos nossos); i.e., ao que tudo indica – é necessário conferir a referência e pesquisar esse tema – uma primeira instrumentalização do sertão como uma região definida geopoliticamente (para administração de uma província) a partir das secas. Isso, diga-se de passagem, antes mesmo da subdivisão do território do Brasil, que permaneceria até o final da década de 1930 dividido, grosso modo, entre Norte e Sul.
A noção das secas como uma fronteira civilizacional aos sertões permaneceria nos debates técnicos que começaram a se estruturar em meados do século XIX para enfrentamento do fenômeno climático; todavia, não tinha mais um caráter intransponível. Desde as propostas de Giacomo Gabaglia, publicadas como “A questão das secas na província do Ceará”, em 1861, passando pelos debates na sessão de 1877 do Instituto Politécnico, na qual se destacou a articulação e as contribuições teóricas do engenheiro André Rebouças, até os projetos ferroviários e de grandes obras de infra-estrutura da década de 1880 em diante, abriam-se claramente perspectivas de transformação e construção de uma região ainda indefinida, imprecisa, que era o sertão (Cf. Dantas, Ferreira e Farias, 2006).
Um sertão cultural
Não obstante os relatos técnicos – que poderiam delinear uma outra ênfase, um sertão “técnico”, diferente das ênfases científicas e culturais – construídos desde a segunda metade do século XIX, o semi-árido nordestino manteve-se relativamente isolado (culturalmente, economicamente) do resto do Brasil por um longo período, devido, sobretudo, aos meios e vias de transporte e comunicação deficientes, ao clima e terreno agressivos. Esse isolamento viria a ser paulatinamente vencido a partir das últimas décadas do século XIX, fato para o qual certamente contribuiu a expansão da imprensa no país, que em 1877 noticiava nacionalmente e suscitava discussão sobre a devastadora seca que a região sofria naquele ano. Concomitantemente, a literatura nacional servia como meio de acesso do público literato a outros aspectos, sobretudo culturais, do sertão nordestino: publicaram-se em 1876 “O Sertanejo”, de José de Alencar, autor que, ao apresentar personagens românticos em diferentes sub-realidades brasileiras, contribuía para o fortalecimento de um sentimento nacionalista; e “O Cabeleira”, de Franklin Távora, de cunho realista e comprometido com um regionalismo que reagia ao processo então corrente de perda de importância social, política e econômica do nordeste do Brasil (Araújo, 2003).
Uma obra em particular, publicada em 1902, veio a projetar – por motivos diversos cuja discussão não cabe no escopo deste artigo – a uma parcela significativa da população nacional a situação natural e social desta área do Brasil: “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, era um relato cuidadosamente redigido que não somente contava os passos da campanha de repressão à insurgência popular em Canudos, mas descrevia com minúcia científica e com autêntica admiração (em muitos casos, até mesmo com espanto) a terra do sertão (seca, quente, agressiva), o homem sertanejo (o “jagunço”, mestiço malemolente e fanático) e a luta, processo através do qual as tropas republicanas por fim conquistavam o sertão, que se lhes apresentava como uma terra estrangeira e hostil. Deve-se enfatizar que esse relato era também carregado de tintas imaginativas na descrição da geografia. O livro rapidamente obteve reconhecimento da crítica e do público, alcançando status de épico da literatura nacional e possibilitando a ampla divulgação da discussão acerca do sertão nordestino, do sertanejo, e de sua posição na formação da nação brasileira. Outros relatos de viagens ao sertão seriam escritos e editados nos anos seguintes, fruto das incursões de intelectuais regionalistas e modernistas preocupados com a construção de identidades (nacional e regional) e com a projeção da realidade e das necessidades do sertão. Dentre esses relatos apresentamos três, referentes a passagens pelo sertão do Rio Grande do Norte, a seguir.
Em 1922, Garibaldi Dantas, técnico e intelectual potiguar, publicou no jornal “A República” da capital norte-riograndense, uma série de dois artigos que relatavam sua passagem pelo sertão do estado. Em seu relato de viagem por diversas cidades do sertão, deixou clara a gratidão pela hospitalidade com que fora recebido pelos proprietários de terras; testemunhando a temporada de chuvas, na qual a vegetação do sertão ganha renovada (e breve) exuberância, lamentou a ausência de obras que aproveitassem o grande volume de água despejado pelas tempestades torrenciais, que o solo era incapaz de absorver e acabava por perder-se com a morte dos rios intermitentes. Garibaldi Dantas vê a terra do sertão de forma diferente do que o faz Euclides da Cunha. Em nenhum momento, é aparente espanto ou repulsa; há, sim, um ponto comum na esperança de que se possa melhor aproveitar as terras do sertão com a implementação da devida infra-estrutura.
Menos otimista se mostra o relato que Mário de Andrade realizaria anos depois. O paulista, escritor de destaque do movimento modernista no Brasil, formado em Letras, Música e Filosofia, realizou na década de 1920 uma série de viagens etnográficas ao Norte e Nordeste do Brasil, com o objetivo de pesquisar o homem e a cultura do Brasil nessas regiões, viagens essas relatadas em artigos que originaram o livro “O Turista Aprendiz”. Entre o final de 1928 e os primeiros meses de 1929, Mário de Andrade esteve no Rio Grande do Norte, etapa da sua viagem durante a qual pôde conhecer a capital e o interior do estado, acompanhado de Câmara Cascudo e Antonio Bento. Em seu relato sobre Natal, Mário de Andrade destacou seu encontro com o cantor e compositor popular Chico Antônio, que o encantou com sua musicalidade e capacidade de criar poesias, mesmo sem contar com educação formal. Em viagem ao interior do Estado, Mário de Andrade teve uma impressão muito menos positiva do ambiente: o sertão seco lhe pareceu monótono e desagradável. A miséria do povo lhe incomodou profundamente, e ele se recusava a tomar a água barrenta, única água disponível naquelas partes, recorrendo ao guaraná e à cerveja apenas. Mário de Andrade chega a fazer, inclusive, referência direta a “Os Sertões”, em uma passagem que se tornaria notória, criticando-o por encontrar por demais heroísmo na situação de miséria do sertão, e taxando-o de “um livro falso”. Em seguida, afirma que “a desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha” (Andrade, 1983, p.295). De fato, e embora isso não desfaça a grandeza literária d’“Os Sertões”, muito autores, como Gilberto Freyre, José Lins do Rego, José Luiz de Castro, Josué de Castro e Lévi-Strauss, apontariam o forte imaginário na construção da geografia do sertão de Euclides da Cunha (Bernucci, 1995, p.21).
Mário de Andrade fala também sobre a migração de nordestinos para o Sul do Brasil, especialmente São Paulo: segundo ele, os sertanejos mais fortes e de maior poder de iniciativa emigravam em busca de melhores condições, e aqueles que ficam precisam forçosamente adaptar-se às duras condições ou perecer ante à sede e à fome. Entre as cidades litorâneas, as salinas e o sertão, Mário de Andrade reconhece a região do Seridó como a área de maior progresso no interior do estado, pela organização das cidades que chega a conferir um caráter monumental a certas áreas urbanas.
Um terceiro relato é escrito pelo historiador e folclorista norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo, participante, em 1934, de uma equipe que acompanhou o interventor Mário Câmara em uma viagem ao interior do estado, composta principalmente por técnicos que buscavam verificar e divulgar as potencialidades econômicas dessa região. A equipe, viajando de automóvel, passou por diversas cidades do sertão, nas quais Câmara Cascudo pôde coletar informações sobre a cultura e os tipos humanos que encontrava (de fato, pouco foi comentado sobre a paisagem natural, e em momento algum foi expresso choque similar àquele encontrado nas obras de Euclides da Cunha e Mário de Andrade). Câmara Cascudo abordou aspectos culturais do sertanejo, destacando a arte criada pelos “fazedores de santos” e a rica culinária local, que em sua opinião não recebiam o devido reconhecimento nacional. O historiador, de tendência sempre conservadora em relação às questões culturais, criticou também a descaracterização da arquitetura barroca original das igrejas do interior, que ao ser “modernizada” perdia sua identidade. Comentando a questão lingüística, demonstrou que muitas das expressões e palavras usadas pelo sertanejo não eram corruptelas do vocabulário correto, mas na verdade termos conservados do português arcaico, isentos de influência e contaminação por estrangeirismos. Tornava-se clara, dessa forma, sua posição de defesa da cultura sertaneja tradicional, por ele classificada como repositório das origens brasileiras.
É notável, de fato, que não foi construída por esses relatos uma imagem única do sertão: cada um deles retrata a região à sua maneira: o ambiente, visto como extremamente agressivo e mortífero por Euclides da Cunha, é não mais do que uma peça secundária no relato de Câmara Cascudo; o jagunço fanático encontrado por Euclides em nada se parece com os hospitaleiros sertanejos que recebem Garibaldi Dantas e Mário de Andrade. É esse sertão de múltiplas faces que atinge o público leitor do início do século XX e cria uma imagem (ainda que fragmentada e controversa) daquela parte do país, tão distante – espacial, econômica e culturalmente – dos centros político-administrativos e culturais do Brasil litorâneo.
Deve-se levar em conta uma série de fatores que podem explicar estas visões distintas sobre a mesma região: primeiramente, sabe-se que as viagens tiveram motivações diferentes, da cobertura jornalística da expedição de guerra narrada em “Os Sertões” à viagem político-científica da qual Câmara Cascudo fez parte; a dimensão temporal também está presente na distinção dos relatos: mais de trinta anos separam o relato pioneiro de Euclides da Cunha da expedição de Cascudo; a origem dos viajantes tem também um papel definidor, e é notável a maior naturalidade com que, comparados ao fluminense Euclides da Cunha e ao paulista Mário de Andrade, os norte-rio-grandenses Garibaldi Dantas e Câmara Cascudo tratam a paisagem sertaneja (além da maior proximidade destes com a realidade sertaneja, é pouco provável que fosse do interesse desses últimos criar uma imagem negativa de uma área de seu próprio estado, em relatos dirigidos ao público das cidades e de outras partes do país); por fim, é necessário considerar as diferenças de acessibilidade ao sertão: enquanto Euclides da Cunha teve de enfrentar o ambiente agressivo movimentando-se em carroças, Mário de Andrade e Câmara Cascudo dispõem de automóveis, que acabam inclusive por tornar-se personagens de destaque em seus relatos.
Outros sertões (à guisa de conclusão)
Podemos então afirmar que as diferentes opiniões em relação ao sertão são, portanto, uma expressão das posições sociais e políticas de seus autores, que se utilizaram da palavra escrita como meio difusor de suas idéias em defesa de seus interesses; mais ainda, embora exista uma imagem formada sobre o sertão nordestino, essa não foi desenvolvida de forma organizada e em concordância pelos autores que, deliberadamente ou não, a criaram através de seus trabalhos literários e científicos.
A palavra “sertão” não designa, portanto, uma região geográfica empiricamente reconhecível. Não descreve um dado tipo de bioma ou ecossistema, nem define uma forma de intervenção humana ou uso da terra. É, sim, descritiva de um espaço onde o ritmo é ditado não pelo homem, mas pela natureza, dos “vazios demográficos”, das “terras desocupadas”. Um espaço “onde, por oposição aos campos com matas, existe apenas matas sem campos” (Brandão, 1995).
O chamado sertão é, de fato, um espaço que agrega uma série de características, predominantemente de cunho subjetivo e mutável – entre as quais, de terra “desconhecida” e “distante” – que lhe proporcionam fronteiras tênues e fluidas, que se retraem com a exploração e colonização ou surgem e se expandem com o esquecimento e abandono de espaços. Não é, necessariamente, um lugar despido da presença humana; mas é o espaço ocupado pelo “outro”, pelos povos “exóticos”: o índio selvagem, o jagunço fanático. O sertão é, desta forma, uma “ideologia geográfica”, criada sobretudo através da oposição ao “não-sertão”; é um rótulo aplicável a espaços diversos, que ao terem suas realidades exploradas, descritas e divulgadas – atendendo a interesses diversos –, entram em um processo de transformação que termina por extingui-los enquanto sertões (Moraes, A., 2003).
Como uma primeira consideração final, percebe-se que, embora tenham sido abordados aqui apenas alguns pontos da trama complexa que constituiu os significados sobre o sertão, os esforços de circunscrição não implicaram necessariamente no apagamento dos elementos e das características estranhos ao discurso hegemônico de cada disciplina. Daí a sobreposição de outros sertões na expansão do conhecimento geográfico do Brasil: o sertão do interior paulista ou o sertão que designa as áreas selváticas de parte do Centro-Oeste e da região Norte, e.g. Daí também, pode-se propor como hipótese, a permanência do sentido de imprecisão da palavra sertão.
No entanto, percebe-se que no sertão mais “específico” aqui discutido a imprecisão foi fortemente combatida pelo esforço de compreensão e, por conseguinte, de construção do território das secas. Contudo, mesmo com a construção posterior do território, o sertão permaneceu como designativo da região; i.e., o sertão como espaço das secas tem um sentido imaginativo mais forte do que a significação do sertão como espaço da não-civilização.
Assim, por um lado, o sertão constrangeu-se, foi circunscrito pelas ações de combate às secas – como passo necessário para a construção de políticas e para administração de um sistema regional de distribuição de esforços e recursos; por outro, explodiu em novos significados nas construções literárias, apontando assim, de certo modo, para o sentido impreciso inicial.
Notas
[1] Cf. nota de Câmara Cascudo à tradução do livro de H. Koster (1942, p.94, nota 12); utilizou-se aqui a atualização lingüística da Carta de Pero Vaz de Caminha publicada na página História Net (www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=552) [acessado em 22 de março de 2006].
[2] Cabe observar também que os estudos sobre a geografia física do Nordeste do Brasil pouco se traduziram, até meados do século XX, numa cartografia precisa e abundante, mesmo após o impulso das atividades com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, em 1909, aponta Preston James (1952, p.153-154).
[3] Financiado pelo CNPq, o projeto intitula-se “Entre as secas e as cidades: formação de práticas, saberes e representações do urbanismo (1850-1930)” e é desenvolvido pelo Grupo de Estudos História da Cidade e do Urbanismo (vinculado à Base de Pesquisa “Estudos do Habitat”, sediada no Depto. de Arquitetura da UFRN, Natal, Brasil); o projeto surgiu das discussões sobre as representações dos retirantes das secas no espaço urbano de Natal durante a Primeira República (Cf. Ferreira e Dantas, 2001) e já apresentou alguns resultados parciais: sobre a representação técnica do território e da cidade que emergiu em meio aos esforços de combate às secas (Cf. Ferreira, Dantas e Eduardo, 2005) e sobre a construção da “dimensão técnica das secas”, i.e., das secas como espaço discursivo, disciplinar e institucional, e como objeto que poderia ser manipulado, transformado, pela técnica e pela ciência (Cf. Dantas, Ferreira e Farias, 2006).
[4] O historiador Paulo Marins (2001) lembra que o tema da reclusão das mulheres no Brasil colônia, característica herdada da colonização ibérica, tornou-se recorrente nos relatos dos viajantes do século XIX como um dos signos de atraso cultural; assim, lembra-nos da necessidade de problematizar tal recorrência dentro do quadro de mudanças dos padrões civilizacionais.
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Ficha bibliográfica: