REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. X, núm. 218 (32), 1 de agosto de 2006 |
UM QUEBRA-CABEÇA (QUASE) RESOLVIDO: OS ENGENHOS DA CAPITANIA DO RIO DE JANEIRO - SÉCULOS XVI E XVII [1]
Mauricio de Almeida Abreu
Dada a importância da cultura canavieira nos primeiros séculos da colonização do Brasil, é paradoxal que tenhamos hoje tão poucas informações a seu respeito. O problema é ainda mais grave quando se trata da Capitania do Rio de Janeiro, em função do incêndio que atingiu o arquivo municipal carioca em 1790. Esses obstáculos não impedem que nos aproximemos do antigo mundo rural fluminense. A partir de uma pesquisa minuciosa da documentação primária ainda existente, este trabalho (a) apresenta os debates que vêm sendo travados sobre as conjunturas econômicas do período colonial; (b) revela quão grande é desconhecimento que hoje temos sobre a cultura canavieira fluminense; (c) resolve um difícil quebra-cabeça, pois identifica e localiza os engenhos fluminenses dos séculos 16 e 17, e (d) apresenta, em detalhe, a metodologia que possibilitou a recuperação desse antigo mundo dos engenhos.
Palavras-chave: Rio de Janeiro
(Séculos 16 e 17) – Geografia histórica – Engenhos de açúcar
Given the importance of sugar cane production for colonial Brazil, it is surprising that we have so little information about it today. Due to the fire that destroyed the municipal archives in 1790, this ignorance is even more serious with regard to the captaincy of Rio de Janeiro. Despite these drawbacks, it is still possible to shed light upon Rio’s early rural life. Based on an detailed analysis of existing primary sources, this work (a) reviews the debates on the economy of Brazil in the seventeenth-century; (b) proves that our knowledge about sugar cane production in colonial Rio is indeed very poor; (c) solves a part of this historical puzzle by identifying and locating the captaincy’s sugar mills in the 16th and 17th centuries; and (d) presents and discusses the methodological steps that were taken to uncover this important dimension of Rio’s colonial times.
Key-words: Rio de Janeiro (16th and 17th centuries) – Historical geography – Sugar mills
O problema é ainda maior no Rio de Janeiro. Embora os engenhos fluminenses contassem com livros de registro, que detalhavam a produção, receita, despesa e o pagamento dos dízimos, conforme atestam alguns testamentos e inventários, a verdade é que essa documentação simplesmente desapareceu. [2] Esse desconhecimento, por sua vez, se torna ainda mais grave quando sabemos, por meio de autores coevos, ou mesmo de historiadores modernos, que lograram ter acesso a informações salvas da destruição, que a cultura canavieira assumiu importância crescente na vida econômica e social da capitania no século XVII. Frei Vicente do Salvador (1982, p. 334), por exemplo, afirmou que o Rio de Janeiro, onde antes “se tratava mais de farinha para Angola que de açúcar”, já possuía, em 1627, quarenta engenhos. Boxer (1973, p. 173), por sua vez, demonstrou que, de 1638 a 1642, partiram anualmente da baía de Guanabara, em direção a Portugal, uma média de 20 a 25 caravelas carregadas de açúcar, o que atesta a plena integração da capitania ao sistema da grande lavoura canavieira. Ao exaltar a grandeza do Brasil por suas drogas e minas, Antonil (1982, p. 140) apontou igualmente para a prosperidade canavieira do Rio de Janeiro ao afirmar que a capitania já possuía, em 1711, 136 engenhos de açúcar.
Os números fornecidos por Frei Vicente do Salvador e por Antonil são bons indicadores da importância crescente do Rio de Janeiro no cenário canavieiro colonial e constituem citações obrigatórias de todos aqueles discutem o século XVII. A verdade, entretanto, é que, além da constatação óbvia do crescimento da lavoura canavieira na capitania, muito pouco se tem avançado na produção de novos conhecimentos sobre a agricultura fluminense naquela centúria. É certo que a escassez de informações contribuiu para isso, pois a maioria dos registros produzidos nos primeiros tempos desapareceu para sempre, boa parte deles em conseqüência do incêndio que atingiu o arquivo da Câmara Municipal, em julho de 1790. Todavia, é também verdadeiro que muitos outros ainda sobrevivem, podendo, pois, lançar luz sobre esse antigo mundo do açúcar. Há que se reconhecer, entretanto, que o acesso a esses registros é precário, seja em virtude de seu mau estado de conservação, seja por causa de sua dispersão por diferentes acervos documentais.
As dificuldades são semelhantes quando tratamos das representações gráficas do Rio seiscentista: a imagem mais antiga que conhecemos da paisagem da cidade é de autoria do viajante francês François Froger e foi produzida em 1695, ou seja, cento e trinta anos após a sua fundação; a planta urbana mais recuada é a do Brigadeiro Massé, levantada em 1713, e, se quisermos trabalhar na escala regional, não contamos com bases cartográficas confiáveis anteriores a 1767, ano em que foi produzido a conhecida “Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro”, de autoria do Sargento-mor Manoel Vieira Leão. Esse mapa também é o documento cartográfico mais antigo que possuímos do Rio canavieiro, pois indica, claramente, os engenhos que então estavam em funcionamento na capitania. Todavia, ele nos serve pouco quando queremos discutir o século XVII: nada nos garante que as moendas ali representadas já estivessem erguidas na centúria anterior e o documento, obviamente, nada nos informa sobre os engenhos seiscentistas já então desaparecidos. Portanto, se quisermos avançar o conhecimento sobre os primórdios açucareiros da capitania, pecisamos não apenas ser criativos no tratamento da documentação que ainda subsiste, como também produzir nossas próprias representações cartográficas.
Com este trabalho, pretendemos trazer um pouco mais à luz esse Rio pouco conhecido, anterior ao século XVIII. Sustentados por uma minuciosa análise de fontes que chegaram aos nossos dias, que incluiu todos os livros cartoriais ainda existentes (e que podem ser objeto de pesquisa, já que alguns deles se transformaram em verdadeiras massas disformes de papel), além de outros documentos dispersos por diversas instituições de memória, fomos capazes, não apenas de penetrar nesse passado distante, como também de identificar e localizar os engenhos que o constituíram, de nomear seus proprietários e de resgatar, minimamente que seja, o papel que nele desempenharam lavradores de cana, partidistas e escravos. Conseguimos também acompanhar a trajetória das moendas através do tempo, o que permitiu a incorporação da diacronia à nossa análise. É preciso reconhecer, entretanto, que pouco avançamos na determinação dos quantitativos da produção açucareira.
Devido às limitações das fontes utilizadas, fomos obrigados a adotar, no decorrer do trabalho, uma série de procedimentos de pesquisa. Como essas trilhas metodológicas orientaram todos os percursos que seguimos, privilegiamos aqui a sua discussão, o que resultou, evidentemente, na necessidade de limitar as questões a serem discutidas. Por essa razão, a análise empírica que apresentamos neste trabalho se restringe à identificação e localização dos engenhos fluminenses dos primeiros dois séculos da colonização.
Conjunturas econômicas seiscentistas: breve
contextualização
Diversos autores que analisaram o Brasil seiscentista (cf. Godinho, 1953; Ferlini, 2003) apontam para a existência de quatro conjunturas econômicas distintas. A primeira, bastante favorável ao desenvolvimento da lavoura canavieira, teve início em meados do século XVI e se estendeu até a terceira década do século XVII; foi uma época em que o preço do açúcar tendeu a manter-se em patamares relativamente elevados, o que estimulou o crescimento da cultura da cana nas capitanias brasileiras. A essa conjuntura favorável teria sucedido uma época de transição, que apresentou flutuações no preço do açúcar e se prolongou até a década de 1650. A partir de então, teve início um período de grandes dificuldades econômicas, que alguns consideram mesmo de crise aguda, que foi caracterizado, sobretudo, pela queda acentuada do preço do açúcar e pela intensificação da tributação das capitanias brasileiras, chamadas a contribuir amplamente para a satisfação dos compromissos firmados pelo Reino com a Inglaterra e a Holanda. Essa época de dificuldades teria se estendido até o início da década de 1690, que marcaria, por sua vez, o início de um período de retomada de preços e de crescimento da lavoura canavieira, que adentraria o século XVIII.
Ainda que as explicações dessas conjunturas variem de autor para autor, há uma certa concordância em relacionar as instabilidades ocorridas a partir da década de 1630 a uma série de acontecimentos políticos e econômicos, que afetaram tanto a Europa quanto as capitanias brasileiras. Destaca-se, em primeiro lugar, o conflito entre a Espanha e as Províncias Unidas, com a conseqüente ocupação holandesa de Pernambuco (1630-1654), que embora tenha estimulado a produção açucareira das capitanias mais distantes, como o Rio, levou à perda de inúmeros navios que transportavam açúcar para Portugal e exigiu, ademais, um esforço notável de fortificação das praças sob controle luso, que só pôde ser efetivada mediante a crescente imposição de tributos. Em segundo lugar, a restauração portuguesa de 1640, com o conseqüente estado de beligerância que se instaurou na península ibérica até 1668, não só exauriu os cofres reais, como fez cessar o lucrativo e clandestino comércio que se efetuava com Buenos Aires e Potosi; determinou, ademais, que as necessidades da colônia tivessem que ser providas, em grande parte, por ela mesma. Em terceiro, a tomada de Luanda pelos batavos, em 1641, cortou o suprimento de escravos africanos para o Brasil e praticamente isolou as capitanias brasileiras de sua principal fonte de suprimento de mão-de-obra africana até 1648, quando Angola foi reconquistada por uma expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, em grande parte financiada pelos moradores do Rio de Janeiro. Em quarto, a entrada das Antilhas no mercado açucareiro, a partir de 1650, não só levou à perda de importantes consumidores europeus, outrora supridos pelo açúcar brasileiro, como elevou a demanda por mão-de-obra servil e baixou os preços do açúcar. Por último, com o intuito de garantir rendas aos comerciantes metropolitanos e proteger o transporte do açúcar colonial para o Reino, a Coroa baixou, ao final da década de 1640, diversas normas que reorganizaram o comércio com a colônia e acabaram por aumentar as dificuldades dessa última.
Há discordância na historiografia, entretanto, quanto à magnitude e extensão da conjuntura desfavorável da segunda metade do século XVII. A maior parte dos autores a equaciona a um período de crise generalizada da agricultura, com reflexos na Europa e no Brasil. Sampaio (2000), entretanto, defendeu recentemente que essa crise teria se restringido à lavoura canavieira e durado muito menos tempo do que é geralmente propalado. Sem negar a importância fundamental das culturas de exportação para a economia colonial, esse autor defende que a vida econômica das capitanias possuiria alguma autonomia, e que esta teria sido crescente através do tempo. [3] No caso do Rio de Janeiro, essa autonomia relativa teria se iniciado ainda no século XVII, quando uma economia mercantil de alimentos teria encetado seus primeiros passos, o que teria amenizado, inclusive, os efeitos da “grande crise econômica da segunda metade do século XVII”, que Sampaio (2000, p. 23) acredita ter afetado menos a colônia do que geralmente se afirma; limita, inclusive, seus efeitos perversos no Rio de Janeiro às décadas de 1660 e 1670.
Névoas
que permanecem
A produção acadêmica sobre o Brasil colonial tem crescido bastante ultimamente. No que diz respeito ao Rio de Janeiro, esse esforço de pesquisa resultou na realização de trabalhos de grande qualidade, que têm ampliado bastante nosso conhecimento sobre a cidade e da capitania. [4] Há que se reconhecer, entretanto, que esse esforço intelectual tem privilegiado, sobretudo, o século XVIII. O século XVII ainda permanece escondido por brumas, que precisam ser urgentemente eliminadas – ou, pelo menos, parcialmente dissipadas – se quisermos obter uma visão mais completa do processo de formação histórica e territorial do Rio de Janeiro.
Fragoso tem sido uma exceção a essa regra, pois vem contribuindo bastante para o entendimento do processo de constituição da sociedade e da economia do Rio de Janeiro seiscentista (cf. Fragoso, 2000, 2001). Todavia, não obstante a riqueza das proposições oferecidas por esse autor - e também por Sampaio, conforme já assinalado - muitas indagações ainda permanecem sem resposta, ou precisam ser melhor esclarecidas, para que compreendamos melhor como se estruturou esse antigo mundo dos engenhos, a saber: É possível ir além dos totais relatados por Frei Vicente do Salvador e por Antonil e demonstrar como ocorreu, efetivamente, o crescimento dos engenhos do Rio de Janeiro no século XVII, visualizando ritmos e tendências? Que tamanho tinham essas moendas? Quem eram seus proprietários e que relações sociais exerciam na capitania? Qual a importância de lavradores e partidistas na produção canavieira? Que força de trabalho era utilizada no processo de produção? Quais os quantitativos da produção açucareira fluminense? Quem eram seus financiadores? Será verdadeira a afirmação, lançada por alguns autores, de que os engenhos do Rio de Janeiro especializavam-se mais na produção de aguardente, utilizada no comércio negreiro com Angola, do que na produção de açúcar? Houve, realmente, uma grande crise econômica na segunda metade do século XVII, como querem alguns autores, ou teria sido essa crise muito menos grave, como querem outros?
Outros obstáculos dizem respeito à dimensão espacial desses mesmos processos: Onde estavam localizados os engenhos do Rio de Janeiro? Formavam eles áreas de produção claramente identificadas? Qual a participação dessas áreas produtoras na economia regional? Como se deu a construção da paisagem agrária fluminense nos primeiros tempos da colonização? Que impactos ambientais causaram as moendas e as relações sociais que lhes sustentavam? Como se constituiu e como se materializou, na paisagem, a relação campo-cidade? Até que ponto a materialidade da cidade e seu quotidiano foram influenciados pelas exigências e pelo ritmo da economia canavieira?
As indagações de natureza espacial são, portanto, inúmeras. Todavia, ao contrário daquelas que dizem respeito ao processo social strito sensu, nesse caso trilhamos território realmente virgem, ainda por desbravar. Dado que processos sociais e formas espaciais são dois lados de uma mesma moeda, pois as sociedades não transformam a natureza como se agissem no vácuo, e ao fazê-lo criam formas, materiais ou não, que influenciam o desenvolvimento desses mesmos processos, o descaso para com a dimensão espacial só dificulta a obtenção de um conhecimento mais completo das realidades que pretendemos estudar.
Devido à carência das fontes documentais, muitas das questões levantadas acima jamais serão respondidas a contento. Mesmo assim, é imperioso que se desvende um pouco mais o que foi esse Rio de Janeiro açucareiro dos primeiros dois séculos da colonização, muito esquecido e pouquíssimo estudado, pois só assim será possível avaliar o que representou a cultura canavieira fluminense no contexto da colônia como um todo e qual o papel que ela exerceu na estruturação da economia da capitania e na vida quotidiana de seus habitantes. É preciso, em suma, imergir mais a fundo nesse passado longínquo, para extrair dele informações preciosas para a história e para a geografia da cidade.
Para dar conta dessa tarefa, verdadeiramente difícil, contamos não apenas com as fontes documentais já trabalhadas por outros autores - que precisam, entretanto, ser confrontadas com outras para que produzam efeitos multiplicadores -, mas também com a imensa base de dados que fomos capazes de construir sobre o Rio de Janeiro dos séculos XVI e XVII, fruto de levantamentos exaustivos realizados durante doze anos em arquivos do Brasil, de Portugal e do Vaticano. [5] Essa pesquisa de fontes primárias possibilitou que encontrássemos, aqui e ali, peças esparsas desse Rio açucareiro, fragmentos que, em grande parte, fomos capazes de encaixar uns com os outros, ainda que não tenhamos logrado completar o quebra-cabeça com perfeição.
Essa base de dados possibilitou que enfrentássemos as questões enunciadas acima com variável grau de sucesso, dependendo a qualidade da resposta que oferecemos da maior ou menor sorte que tivemos na descoberta das informações que procurávamos e da maior ou menor habilidade que demonstramos em concatená-las de forma adequada. Tais questões vêm sendo discutidas em trabalho de síntese sobre a geografia histórica do Rio de Janeiro dos séculos XVI e XVII, ora em vias de conclusão. Dadas as limitações desta comunicação, optamos por discutir aqui apenas duas delas, referentes ao número e à localização das moendas, a saber:
(1) É possível ir além dos totais relatados por Frei Vicente do Salvador e por Antonil e demonstrar como ocorreu, efetivamente, o crescimento dos engenhos do Rio de Janeiro no século XVII, visualizando ritmos e tendências?
(2) Onde estavam localizadas as moendas fluminenses?
Será com o apoio das informações contidas na base de dados que construímos que enfrentaremos essas indagações. Por essa razão, é importante que esclareçamos agora os passos metodológicos que foram seguidos na sua elaboração.
O trabalho teve início com a decisão de que cada informação encontrada sobre engenhos deveria constituir o embrião de um quadro. Assim, por exemplo, uma informação sobre a venda, em 1664, de um partido de canas situado nas terras de um engenho não identificado, mas que estava localizado em Irajá, foi inicialmente considerada como um dado independente e deu origem a um quadro que intitulamos, provisoriamente, de “Engenho em Irajá, 1664”. Da mesma forma, a arrematação em praça pública, em 1683, de um engenho sem localização declarada, mas que soubemos ser “de invocação Nossa Senhora do Rosário”, constituiu nova informação isolada e deu origem a outro quadro intitulado “Engenho Nossa Senhora do Rosário, 1683”. Aos poucos, entretanto, foi sendo possível detectar, por indícios os mais diversos, que muitas dessas informações “independentes” referiam-se, na realidade, à mesma moenda, o que possibilitou que todas as informações referentes a ela fossem reagrupadas num quadro único. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o engenho citado acima. O remembramento permitiu que descobríssemos que o engenho de Nossa Senhora do Rosário, localizado em Irajá, já estava erguido em 1664, quando pertencia a fulano de tal, e continuava a existir em 1683, ano em que foi arrematado em praça pública por beltrano de tal. Esse agrupamento de informações num quadro único possibilitou, por outro lado, que introduzíssemos a diacronia na análise e resgatássemos a trajetória da moenda no tempo.
As informações que fazem parte dos quadros foram extraídas, em sua maioria, de escrituras lavradas nos cartórios da cidade, sobretudo de venda, doação e hipoteca de engenhos e de partidos de canas. Esses documentos fazem parte do universo de 45 livros de notas que ainda restam do século XVII, quase todos guardados no Arquivo Nacional e interditados ao público, cuja consulta só foi possível mediante autorização especial. [6] É importante observar que muitos dos livros ainda existentes apresentam imensas dificuldades de leitura, tamanhos foram os danos ocasionados pelo tempo e pela incúria. Note-se, por outro lado, que o levantamento dos livros cartoriais não se limitou ao século XVII, tendo tido prosseguimento, na realidade, até o fim do período colonial. Devido a isso, foi possível encaixar, com precisão, algumas peças do quebra-cabeça seiscentista, pois logramos obter, em documentação produzida posteriormente, informações preciosas sobre os engenhos do passado.
Aos dados fornecidos pelos livros cartoriais, agregamos, a seguir, informações obtidas em inventários, verbas testamentárias, livros de tombo das ordens religiosas, autos de medição de terras, autos de demandas judiciais, etc., muitas das quais faziam referência à existência de moendas ou partidos de canas. Com cada informação preenchendo uma linha de algum quadro, foi possível recuperar, gradativamente, a trajetória temporal que cada engenho identificado percorreu. Para alguns, conseguimos determinar, inclusive, quem os ergueu e quando desapareceram. Como muitos engenhos passaram de mão por herança, apoiamo-nos também (e muito!), para o preenchimento dos quadros, nas preciosas genealogias das famílias fluminenses dos séculos XVI e XVII, obra de inestimável valor que Carlos G. Rheingantz legou a todos aqueles que se interessam por esse passado distante (cf. Rheingantz, 1965, 1967, 1993-1995).
As seqüências
de informação contidas nos quadros deram origem a três tipos de trajetória de
engenhos. O primeiro refere-se às sucessões temporais sobre as quais temos
certeza absoluta, já que são seguidamente comprovadas por documentação
(escrituras de venda, por exemplo). Para nossa satisfação, essa trajetória
foi a mais comum e é ilustrada, por exemplo, pelo Engenho São Miguel, localizado
em Taitimana, às margens do rio Meriti (Quadro 1).
Engenho 80 | ||
Nome: São Miguel | ||
Localização: Taitimana, Jacutinga | ||
ANO |
INFORMAÇÃO |
FONTE |
1652 |
Informação sobre o engenho, que pertence a Francisco de Araújo
Caldeira |
AGCRJ, 42-3-55, p. 57. |
1669 |
Venda de um partido de canas “sito no engenho do Capitão João de
Araújo Caldeira, [filho de Francisco de Araújo Caldeira e de Francisca de
Araújo] na paragem onde chamam Jacutinga, distrito desta
cidade”. |
AN, 1ON, 48, f. 155v; AGCRJ, 42-3-56, p. 98; Rheingantz, I,
130. |
1678 |
Francisco de Araújo Caldeira recebe sesmaria de sobejos junto de
seu engenho em Taitimana |
Pizarro |
1681 |
Falecimento de Francisco de Araújo Caldeira |
Rheingantz, I, 130. |
1685 |
Hipoteca de um partido de canas sito no engenho da viúva Francisca
de Araújo [Caldeira] |
BN, 4ON, Mss 12,3,14, f. 9v. |
1690 |
Hipoteca de um partido de canas sito no engenho de Francisca de
Araújo, viúva de Francisco de Araújo Caldeira, em
Taitimana |
AN, 1ON, N° 57, f. 215v. |
1692 |
Referência a esse engenho, que parte pelo sertão com terras de
José de Andrade Souto Maior e fica perto de terras do Sargento-mor Martim
Correia Vasques |
AN, 1ON, 59, f. 52. |
1694 |
Francisca de Araújo, viúva de Francisco de Araújo Caldeira, vende
metade do engenho a João Gonçalves Viana, informando que era “de invocação
São Miguel, sito em Taitimana ... havido por folha de partilha, por
falecimento do dito seu marido” |
AN, 4ON, 1, f. 6. |
1697 |
Hipoteca de um partido no engenho de Bartolomeu de Araújo
[Caldeira], sito em Taitimana |
AN, 1ON, 61, f. 82v; AGCRJ, 42-4-90, p.
1130. |
1705 |
Testamento de Bartolomeu de Araújo Caldeira, filho de Francisco de
Araújo Caldeira e casado com Ana Cabral, diz que ele possuía esse engenho,
comprado das legítimas de sua mãe e irmãos |
AMSBRJ, Seção 13.2, Nº 844. |
1718 |
Capitão Miguel de Araújo Caldeira e sua mulher Brízida da Guarda
vendem terras e um engenho velho e desfabricado ao Alcaide-mor Tomé
Correia Vasques, informando que se localizavam em Taitimana, comprado em
praça pública por execução que fez José de Souza Barros a Ana Cabral de
Melo, viúva de Bartolomeu de Araújo Caldeira, seu
irmão |
AN, 2ON, 26. |
O segundo tipo
diz respeito a engenhos cuja trajetória incluiu, aqui e ali, algumas ausências
de informação, que puderam ser preenchidas com grande possibilidade de acerto; é
o caso, por exemplo, de um engenho que, num determinado momento, está associado
ao nome de um proprietário e, anos depois, após seu falecimento, ao nome de um
filho ou genro, indicando sucessão por herança. Pode também ser o caso de
uma moenda que, num determinado ano está associada ao nome de um proprietário e,
anos mais tarde, ao nome de outro, sem laços familiares com o anterior, mas que
pôde ser identificada como sendo o mesmo engenho, tanto por sua localização como
pela manutenção do orago anterior, provavelmente indicando sucessão por
venda. Em situações como as que acabamos de descrever, optamos sempre por
incluir, no quadro desse engenho, o símbolo ? , que denota que não temos certeza
absoluta da sucessão indicada e que estamos fazendo uma conjectura. Um bom
exemplo de quadro dessa natureza é aquele referente ao engenho São Bento,
localizado em Mutuá (ver Quadro 2).
Engenho 125 | ||
Nome: São Bento | ||
Localização: Mutuá | ||
ANO |
INFORMAÇÃO |
FONTE |
1645 |
Bento Pinheiro de Lemos é citado no rol dos fregueses de São
Gonçalo de Amarante |
AN, Códice 61, Livro 1, f.
219v. |
1645-1653 |
Capitão Bento Pinheiro de Lemos possui o
engenho |
AGCRJ, 42-3-57, p. 309; AN,
1ON, 39, f. 14; AN, 1ON, 41, f. 8; AGCRJ, 42-3-57, p.
8. |
1662 |
Dona Catarina Antunes, viúva de Bartolomeu Ferreira de Morais,
vende a Claude Antoine Besançon uns sobejos de terras em Mutuá, partindo
de uma banda com terras do engenho do Capitão Bento Pinheiro de Lemos e da
outra com terras do comprador, e nos fundos com a estrada que vai de São
Gonçalo para Guaxindiba, fazendo a testada pelo rio de
Maragoí |
AN, 1ON, 44, f. 208v. |
1666 |
Capitão Bento Pinheiro de Lemos vende o engenho ao Capitão
Francisco de Moura Fogaça, indicando que tinha invocação de São Bento, mas
escritura não teve efeito |
AN, 1ON, 47, f. 105. |
1668 |
Bento Pinheiro de Lemos vende metade do engenho a seu genro
Francisco Homem Del Rei |
AN, 1ON, 54, f. 246. |
1680 |
Bento Pinheiro de Lemos dá quitação a seu genro Francisco Homem
Del Rei da quantia de 5.000 cruzados, pagos em açúcar branco, fazendas e
dívidas, que por ele pagou a vários credores, a qual quantia lhe devia do
preço da metade da compra que lhe fez da metade do seu engenho, sito no
distrito de São Gonçalo |
AN, 1ON, 54, f. 246. |
1684 |
Francisco Homem Del Rei falece em 4/11/1684. Em sua verba
testamentária diz “que vendeu a metade do engenho que possuía, de meias
com Pedro da Bessa(?), ao Capitão Baltazar de Abreu Cardoso, entrando tudo
o que possuía, por preço e quantia de 9.000 cruzados, boa parte dos quais
serão pagos nas próximas safras |
1º Livro de Óbitos da Freguesia de São
Gonçalo |
? |
||
1686 |
Venda de um partido de canas “sito em Mutuá, no engenho de Pedro
da Costa Ramiro”; Pedro hipoteca seu engenho |
BN, 4ON, Mss 12,3,14, ff. 200, 218. |
1687 |
Pedro da Costa Ramiro hipoteca “o engenho que possui na banda
d’além, em São Gonçalo, de invocação São Bento, com toda a sua
fábrica” |
BN, 4ON, Mss 12,3,14, f. 358. |
1689 |
Pedro da Costa Ramiro hipoteca o engenho que possui, de invocação
São Bento, sito em São Gonçalo, com todas as suas pertenças, o qual já foi
hipotecado em outras escrituras |
AN, 1ON, 57, f. 35. |
1702 |
Dona Páscoa Barbalho, viúva de Pedro da Costa Ramiro, em dote de
casamento a José Vieira da Costa, para casar com sua neta Dona Páscoa, doa
“três safras livres do partido que tem em seu
engenho” |
AN, 1ON, 67, f. 130. |
1705 |
José Vieira Veiga, arrematante, e seu fiador José Antunes de Matos
fazem fiança relativa aos pagamentos do engenho que foi de Pedro da Costa
Ramiro, sito onde chamam Mutuá, que o primeiro arrematou no Juízo dos
Órfãos por 14.000 cruzados |
AN, 1ON, 71, f. 224. |
1706 |
Hipoteca de terras em Mutuá, “que partem de uma banda com terras
do engenho do Licenciado José [Antunes] de Matos e da outra com terras de
Amaro dos Reis Tibau |
AN, 1ON, 73, f. 131. |
1709 |
Venda de parte de uma ilha em Mutuá, em São Gonçalo, “junto à
testada das terras do engenho do Licenciado José Antunes de
Matos” |
AN, 1ON, 77, f. 89v. |
1709 |
José Antunes de Matos, fiador, hipoteca o engenho que possui,
“sito na outra banda, com toda a sua fábrica de terras, bois, cobres e
escravos” |
AN, 1ON, 77, f. 166v. |
1715 |
Licenciado José Antunes de Matos, fiador, hipoteca “um engenho que
possui, sito em São Gonçalo, com todas as suas benfeitorias de terras,
cobres, peças e bois” |
AN, 1ON, 83, f.
45v. |
Finalmente,
houve situações em que conseguimos recuperar a trajetória de um engenho apenas
para determinado período, não tendo sido possível estendê-la mais no tempo, seja
para adiante ou para trás. Nestes casos, foi necessário tomar uma decisão,
que acabou seguindo duas direções distintas. A primeira foi a de
considerar aquela seqüência “solta” de informações como a trajetória particular
de um engenho, que teria surgido em algum ano anterior à primeira informação
obtida sobre ele e desaparecido a partir de um determinado momento, conclusão a
que chegamos, na maioria das vezes, por lógica de exclusão, isto é, pela
impossibilidade de ela vir a estar relacionada com os demais engenhos
identificados naquele período para aquela área; esta decisão levou à inclusão de
mais um quadro no universo de moendas identificadas para aquela área e é bem
exemplificada por um engenho sito em Sarapuí, cujo orago não conseguimos
descobrir, sobre o qual só obtivemos informações para a década de 1670 (Ver
Quadro 3). A segunda opção foi a de considerar que aquela seqüência
“solta” preenchia, na realidade, um hiato da trajetória de um dos engenhos já
identificados de uma determinada área; neste caso, aquele vazio foi preenchido
pela dita seqüência de informações, mas tivemos novamente o cuidado de indicar
claramente esse artifício metodológico nos quadros, pela utilização do símbolo ?
, que indica conjectura. Isto pode ser verificado, por exemplo, no quadro
do engenho São José, sito em Maruí (Ver Quadro 4).
[7]
Engenho 59 | ||
Nome: Sem identificação | ||
Localização: Sarapuí | ||
ANO |
INFORMAÇÃO |
FONTE |
1670 |
Francisco de Araújo Caldeira vende um partido de canas a Francisco
Dias Medonho, sito em Sarapuí, no engenho de Jerônimo de
Azevedo |
AN, 1ON, 50, f. 55v; AGCRJ, 42-3-56, p.
133. |
1673 |
Capitão Domingos Pereira, senhor de engenho, e sua mulher Paula
Gonçalves, vendem ao Capitão José de Barcelos Machado umas terras sitas no
distrito de Sarapuí, que partem ... por travessão(?) com as terras do
engenho que hoje é de Jerônimo de Azevedo ... e pelas mais partes com
terras do Capitão José de Barcelos (Engenho do
Carrapato) |
AN, 1ON, N° 53, f. 162. |
Ca. 1676 |
Por ordem do Provedor Pedro de Souza Pereira, o engenho é
arrematado por Mateus de Moura [Fogaça?], com toda a sua fábrica, por
12.000 cruzados, embora valesse, segundo denúncia feita por Antônio Mendes
de Almeida, mais de 20.000 |
AHU, RJ-Avulsos, Caixa 5, Nº
74. |
Engenho 104 | ||
Nome: São José | ||
Localização: Maruí, Barreto | ||
ANO |
INFORMAÇÃO |
FONTE |
1645 |
Sebastião Pinto é citado no rol dos fregueses de São Gonçalo de
Amarante |
AN, Códice 61, Livro 1, f. 219v. |
1652 |
Felipa Delgada, filha de Sebastião Pinto e viúva de Francisco
Gonçalves, dá em pagamento de herança à sua filha Domingas Dias, que de
presente é casada com Nicolau ..., “a casa do engenho, a casa de caldeiras
e a casa de purgar com suas pertenças e outros bens” A localização
do engenho não é indicada, mas sabe-se que é por Maruí, pois a “defunta
Felipa Delgada” é citada na medição das terras dos índios de São Lourenço,
realizada em 1659 |
AN, 1ON, 40, f. 113; Cadernos do Instituto Histórico de Niterói,
3, p. 26. |
? |
||
1673 |
Dona Isabel de Mariz, viúva do Almirante Rodrigo Muniz da Silva,
pede autorização para a venda de um engenho que seu marido deixou na
Capitania do Rio de Janeiro |
AHU, RJ-CA, Nº 1184. |
1681 |
Dona Isabel de Mariz informa que havia vendido o engenho a seu pai
Francisco Barreto, por 9.000 cruzados, mas que ele não lhe enviara o
dinheiro por ser a viagem perigosa. Pede que seja dada autorização
para que ele possa fazer isso por meio de letras |
AHU, RJ-CA, Nº 1412. |
? |
||
1692 |
Engenho pertence ao Capitão José Barreto de Faria, outro filho de
Francisco Barreto de Faria |
AN, 1ON, 58, f. 145v; AGCRJ, 42-4-89, p.
898. |
1701 |
Capitão José Barreto de Faria e sua mulher Dona Paula Rangel doam
terras “junto às terras de seu engenho” a Jorge Pinto de Barredo, que as
institui como patrimônio de seu filho Jorge Pinto de
Barredo |
AN, 1ON, 65, f. 18v. |
1710 |
Capitão José Barreto de Faria, fiador, hipoteca “um engenho de
açúcar, de invocação São José, sito na freguesia de São
Gonçalo” |
AN, 2ON, 12, f. 112v.. |
1713 |
Engenho ainda pertence ao Capitão José Barreto de Faria, que ali
tem capela de Nossa Senhora das Neves. A mesma santa é reverenciada
em outro engenho contínuo, de propriedade de seu irmão Capitão Diogo
Rodrigues de Faria |
Santuário Mariano, p. 38. |
1715 |
Uma escritura é lavrada “no engenho velho do Capitão José Barreto
de Faria, na freguesia de São Gonçalo” |
AN, 1ON, 82, f.
278. |
Dos
quadros de moendas à base de dados espaço-temporal de engenhos
Elaborados os quadros individuais das moendas, passamos à etapa da interpretação das informações agregadas em cada um deles. Na falta de dados de produção, e com o intuito de melhor dar conta da inserção da capitania do Rio de Janeiro no sistema da grande lavoura canavieira através do tempo, optamos por adotar metodologias que pudessem dar conta, de alguma forma, dessa importante questão. Decidimos então estruturar a análise do longo período que se estende do aparecimento do primeiro engenho, na década de 1570, até ao final do século XVII, segundo uma lógica binária. Assim, a existência de informação sobre um engenho numa determinada década, não raro adjetivada pela explicação de que a moenda era “moente e corrente”, foi considerada indicadora de sua presença como unidade produtora naquela década. Se não conseguíamos saber quanto produzia, pelo menos poderíamos indicar que o engenho estava em produção. Em tabela especialmente elaborada para esse fim, foi então assinalada a presença ativa daquela moenda naquela década. Seqüências de informações sobre esse mesmo engenho em décadas sucessivas foram consideradas como reveladoras da permanência em produção da moenda, conclusão que foi também assinalada, através da lógica binária, nas células correspondentes da mesma tabela. A inexistência de informação sobre um dado engenho numa determinada década indicou, por sua vez, que ele ainda não havia sido erguido ou que já havia desaparecido. Todavia, quando a ausência de informação sobre um engenho, numa determinada década, era antecedida e/ou seguida de informações sobre essa mesma moenda em década imediatamente anterior ou posterior àquela da ausência de dados, optou-se por considerar que a moenda permanecera em produção por todo esse tempo.
Raramente foi possível identificar o momento exato
em que uma moenda foi erguida ou “desfabricada”, isto é, quando deixou de
existir. Por isso, adotamos o artifício de considerar como tendo surgido
(ou desaparecido) na década anterior (ou posterior) todo engenho para o qual a
primeira (ou última) informação obtida fosse referente a até três anos do início
(ou fim) de uma determinada década. Assim, um engenho cuja primeira
informação obtida dissesse respeito, por exemplo, à sua venda em 1653, foi
considerado como tendo surgido durante a década de 1641-1650; da mesma forma, um
engenho que tivesse sido vendido em 1668, e sobre o qual nunca mais tivemos
notícia, foi considerado como tendo permanecido como unidade produtiva, pelo
menos, até a década de 1671-1680. É bem possível que, com essa decisão,
tenhamos encurtado a “vida útil” de alguns engenhos, que podem ter surgido
(desaparecido) muito antes (depois) do que a primeira (última) informação sobre
eles nos indicam. Todavia, dadas as carências de dados, não foi possível
agir de outra forma. É também provável que haja alguma tendenciosidade na
análise das épocas mais remotas, que teriam tido mais engenhos do que os
resultados irão demonstrar. Como os documentos referentes à primeira
metade do século XVII são pouco numerosos, as referências que fazem a engenhos
são, da mesma forma, mais escassas. Por essa razão, é bem possível que os
numerosos engenhos que tiveram sua primeira datação atribuída à década de
1641-1650, como veremos mais adiante, tenham sido erguidos, na realidade, antes
disso. Para exemplificar melhor a utilização da lógica binária e do
artifício metodológico que acabamos de explicar, apresentamos abaixo (ver Quadro
5) a trajetória recuperada do já citado Engenho São Miguel, para o qual temos
informações a partir de 1652, conforme indicou o Quadro 1:
1571-1580 |
1581-1590 |
1591-1600 |
1601-1610 |
1611-1620 |
1621-1630 |
1631-1640 |
1641-1650 |
1651-1660 |
1661-1670 |
1671-1680 |
1681-1690 |
1691-1700 | |
Engenho 80 São Miguel |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
1 |
1 |
1 |
1 |
1 |
1 |
O processo de agrupamento de informações em quadros individualizados para cada moenda possibilitou, igualmente, que localizássemos cada engenho com relativa precisão, seja porque a localização foi citada em escritura incorporada ao quadro, seja porque os proprietários confrontantes puderam ser identificados, seja também porque encontramos, em algum documento, alusões feitas a capelas, caminhos reais e/ou acidentes geográficos ainda hoje reconhecíveis ou possíveis de recuperação. Tivemos, outrossim, grande preocupação em não confundir topônimos atuais com seus antigos significados, como é o caso, por exemplo, de Inhaúma ou Irajá, que denotavam, no século XVII, áreas muito mais extensas do que aquelas que hoje constituem esses bairros. Da mesma forma, utilizamos com cuidado os trabalhos de cronistas do passado e/ou de memorialistas de tempos mais recentes, pois essas fontes são, muitas vezes, ricas no fornecimento de detalhes sobre um dado município ou região, mas nem sempre cuidadosas na recuperação das trajetórias históricas, não sendo raro que simplifiquem demasiadamente os processos sociais, que dêem grandes pulos no tempo, concatenando fatos que não necessariamente estão relacionados, ou que discutam as eras mais remotas das áreas que descrevem a partir de trabalhos de “autores consagrados”, que nem sempre nos oferecem a precisão metodológica que lhes é atribuída.
Finalmente, para melhor dar conta da dimensão espacial da análise, segmentamos o território da capitania do Rio de Janeiro em oito áreas produtoras, [8] que foram individualizadas a partir de critérios de configuração geomorfológica e, principalmente, da constância de sua designação toponímica nos documentos consultados. Alocamos a seguir, a cada uma dessas oito áreas, os engenhos que dela faziam parte. A soma dos resultados binários fornecidos pelos quadros das moendas de cada área produtora forneceu, a seguir, o total de engenhos que estavam em funcionamento naquela área em cada década; a soma dos totais de cada área produtora possibilitou, por sua vez, que chegássemos ao total de moendas em produção na capitania em cada década.
As áreas produtoras, aqui apresentadas com a ajuda de topônimos atuais, foram as seguintes:
(1) Os “arredores da cidade”, que compreendem toda a área imediatamente adjacente ao núcleo urbano, isto é, a estreita faixa de terra situada entre o maciço da Tijuca e a baía ou o oceano, estendendo-se do vale do Maracanã, incrustado em plena sesmaria jesuítica “de Iguaçu”, até a lagoa Rodrigo de Freitas, em terras foreiras à municipalidade;
(2) A Baixada de Jacarepaguá, ou seja, toda a área compreendida entre os maciços da Tijuca e da Pedra Branca e o oceano Atlântico;
(3) Inhaúma/Ilha do Governador, área que compreende todas as terras que se estendem do litoral da baía ao divisor de águas do maciço da Tijuca, estendendo-se, grosso modo, desde o rio Faria, limite aproximado das antigas terras jesuíticas “de Iguaçu”, aos atuais bairros da Penha, Vila da Penha e Cascadura, assim como a fronteira ilha do Governador;
(4) Irajá/Meriti, área que compreende os terrenos banhados pelos rios Pavuna, Meriti e Sarapuí e que se estende, pelo litoral da baía, desde o atual bairro de Brás de Pina até o distrito sede do município de Duque de Caxias, prolongando-se pelo interior até a antiga Piraquara (Realengo), no município do Rio de Janeiro, e até o distrito sede de Nova Iguaçu; engloba terras que hoje pertencem aos municípios do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Nova Iguaçu e Mesquita;
(5) Campo Grande/Guaratiba, área situada além de Piraquara e entre os maciços hoje conhecidos como da Pedra Branca e do Gericinó/Mendanha, um dos confins do termo da cidade àquela época, limítrofe ao território vicentino;
(6) A “banda d’além”, topônimo que se referia, nos séculos XVI e XVII, a todas as terras localizadas à frente da cidade, do outro lado da baía, desde a foz do rio Guaxindiba, no atual município de São Gonçalo, até a oceânica Ponta Negra, em Maricá, limite do termo do Rio de Janeiro na direção da capitania de Cabo Frio, penetrando pelo interior, pelo vale do Guaxindiba, até o lugar conhecido como Ipiíba;
(7) Tapacurá/Cacerebu, área que compreende, grosso modo, as terras servidas pelos tributários da margem esquerda do baixo Macacu, excluído o vale do Guaxindiba, estendendo-se por grande dos atuais municípios de Itaboraí e Tanguá;
(8) A área que denominamos de Guaguaçu/Guapimirim, situada ao fundo da baía de Guanabara, que compreende, integral ou parcialmente, as bacias dos atuais rios Iguaçu (antigo Guaguaçu), Inhomirim, Suruí, Guapimirim e Guapiaçu, estendendo-se do litoral da baía até o divisor de águas da Serra do Mar.
Áreas Produtoras |
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Arredores da Cidade |
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Baixada de Jacarepaguá |
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Inhaúma |
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Ilha do Governador | |||||||||||||
Irajá |
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Meriti | |||||||||||||
Campo Grande |
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Guaratiba | |||||||||||||
Banda d' além |
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Tapacurá |
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Cacerebu | |||||||||||||
Guaguaçu |
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Guapimirim | |||||||||||||
Total |
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Ao
analisar esses dados, enfim exumados do esquecimento em que permaneceram por
tanto tempo, a primeira conclusão a que chegamos é que houve um crescimento
contínuo do número de engenhos por todo o período estudado, conforme indica a
Figura 1. Esse incremento foi notável na década de 1640, e pode,
inclusive, ter tido início no decênio anterior, pois, como já explicado, é a
partir dos anos quarenta que contamos com maior disponibilidade de
informações. Note-se, por outro lado, que o crescimento das moendas também
ocorreu nas décadas que a historiografia considera como “de baixa do açúcar”
(pós-1640) ou “de crise aguda” (1660 e 1670), o que nos leva a concluir,
reforçando o que já disseram outros autores, que as teses que atrelam o
desempenho das economias coloniais exclusivamente aos preços externos do açúcar
e que apregoam uma decadência generalizada da agricultura canavieira na segunda
metade do século XVII precisam, efetivamente, ser melhor discutidas.
Se
analisarmos o número de moendas em funcionamento em cada década, vemos também
que os totais a que chegamos são bastante próximos daqueles relatados por
autores coevos. Assim, as 35 moendas identificadas como unidades
produtivas, ao final da terceira década do século XVII, se aproximam bastante
dos 40 engenhos que Frei Vicente do Salvador afirmou estarem em funcionamento em
1627.
[9] A sintonia é ainda maior em relação aos totais apresentados
por Antonil: apesar de não termos estendido a análise até o século XVIII, é
muito provável que os 131 engenhos que identificamos para a última década do
século XVII estejam incluídos nos 136 relatados pelo jesuíta para 1711.
[10]
Se desagregarmos
os dados pelas oito áreas produtoras, constatamos, por outro lado, que sua participação
no conjunto da capitania fluminense foi diferenciada não apenas em termos espaciais
como temporais. Para tanto, contamos com o auxílio da Figura 2, que indica
o comportamento de cada região produtora em relação à tendência geral da capitania,
e da Figura 3, que mostra, de forma mais detalhada, o comportamento de cada
região produtora em relação às demais. Ao observarmos com atenção esses
gráficos, chegamos a duas conclusões. Em primeiro lugar, vemos que o crescimento
ininterrupto do número de engenhos da capitania não foi acompanhado por todas
as regiões produtoras, que tiveram seus próprios comportamentos através do tempo;
todavia, como o crescimento de algumas áreas produtoras sempre superou o decréscimo
de participação de outras, o resultado final foi sempre positivo.
Em
segundo – e como era de se esperar - verifica-se uma relação direta entre a
marcha do povoamento e o aparecimento de moendas. Assim, até a segunda
década do século XVII, os engenhos se concentram nos arredores da cidade (lagoa
Rodrigo de Freitas, Catumbi) ou em áreas produtoras bastante acessíveis a ela
pela baía de Guanabara (Inhaúma/Ilha do Governador e Banda d’além).
Todavia, com a progressão do povoamento e a melhoria das comunicações por terra,
as moendas não apenas crescem em número como se interiorizam cada vez mais; só
irão surgir na área de Tapacurá/Cacerebu, a mais distante da cidade, a partir da
década de 1640.
Entre
as áreas produtoras, Irajá/Meriti constituiu, sem dúvida alguma, a maior zona
açucareira da capitania no século XVII, seguida de perto pela Banda
d’Além. Com efeito, a concentração de engenhos nessas duas áreas
produtoras se afirma desde a década de 1630. Observe-se, por outro lado,
que o crescimento de moendas ocorreu aí de forma constante. Ao final do
século XVII, localizavam-se em Irajá/Meriti e na Banda d’Além mais da metade dos
engenhos fluminenses, a primeira concentrando 38 dos 131 engenhos em
funcionamento (29% do total) enquanto que a Banda d’Além congregava outras 30
moendas (22,9%). Note-se, por outro lado, que duas áreas produtoras
perderam importância durante o período estudado. A primeira foram os
arredores da cidade, que concentravam boa parte das moendas nos primeiros tempos
da capitania, mas que viram essa participação declinar sistematicamente a partir
da terceira década do século XVII. A outra foi a área produtora de
Guaguaçu/Guapimirim, que apresentou movimento ascendente até a década de 1660,
declinando a partir daí, tudo indicando que, se alguma área foi seriamente
afetada pelas turbulências econômicas da segunda metade do século XVII,
certamente foi esta.
Considerações finais
É imprescindível que sejam realizados maiores esforços de pesquisa sobre o Rio de Janeiro do século XVII. Embora a documentação ainda existente seja reduzida, em comparação àquela do século XVIII, é certo que ela não foi explorada o suficiente e que ainda pode revelar muitos segredos sobre o processo histórico de formação da sociedade e do território fluminense. Isso exige, entretanto, que o investimento em pesquisa de base, isto é, em pesquisa que vai direto às fontes primárias, seja intensificado. Trata-se de esforço considerável, não apenas pelo que significa em tempo alocado à coleta de dados, mas também no que concerne à reunião ordenada dessas informações, que estão hoje dispersas por diversas fontes documentais e precisam ser relacionadas umas com as outras para que possam fornecer as respostas que buscamos.
Com este trabalho, esperamos ter contribuído para preencher algumas das lacunas que ainda existem sobre o Rio de Janeiro seiscentista. Sustentados por uma rica base de dados, que demandou mais de uma década para ser concluída, logramos ir além da mera citação dos quantitativos de moendas, fornecidos por Frei Vicente do Salvador e por Antonil, e conseguimos reconstituir o notável processo de crescimento de engenhos que teve lugar na capitania durante o século XVII. Fomos capazes também de identificar onde e quando esse processo se materializou no espaço. Todavia, muitas outras questões desse antigo mundo dos engenhos ainda restam para ser discutidas e exigem esforços adicionais de investigação.
Ao apresentar detalhadamente a metodologia utilizada para a construção da base de dados que logramos produzir, que será publicada em breve sob a forma de instrumento de pesquisa, acreditamos ter também oferecido os elementos que venham a permitir o seu futuro aprimoramento, que dependerá, entretanto, da continuidade do esforço de levantamento de fontes primárias e de sua correta interpretação.
Notas
Fontes Primárias
AHU-RJ – Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Avulsos do Rio de Janeiro. Caixa 2, Nº 42; Nº 57.
AN, 1ON – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Livros Nº 62, Nº 81.
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