Scripta Nova |
POLÍTICAS
ESPACIAIS DE REQUALIFICAÇÃO URBANA NA ÁREA CENTRAL DO RIO DE JANEIRO: NOVA
ESTÉTICA DA DESINTEGRAÇÃO LOCAL E ESPETÁCULO DA PROJEÇÃO GLOBAL
Julio Cesar Ferreira Santos
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Geografia.
E- Mail: uerjulio@yahoo.com.br
Políticas Espaciais de
Requalificação Urbana na Área Central do Rio de Janeiro: Nova Estética da
Desintegração Local e Espetáculo da Projeção Global (Resumo)
Diversas cidades implementaram em suas Áreas
Centrais intervenções pós-fordistas buscando requalificação urbana através de
recentralização econômica. No Rio de Janeiro, essas políticas espaciais do
Estado pretendem transformar o Porto em um pólo multifuncional e integrá-lo à
dinâmica do Núcleo Central.
Este
trabalho analisa tal estratégia através das duas últimas reestruturações
capitalistas para compreender a atual organização espacial da Zona Periférica
do Centro e as conseqüências da revisão de seus usos. Estuda a tentativa de
localizar o Rio de Janeiro no grupo das metrópoles mundiais, assim como uma
provável desterritorialização dos moradores devido às novas funções e símbolos.
Finalmente,
evidencia-se a inter-relação da requalificação com a formação de
cidades-espetáculo, metrópoles com uma nova estética afirmadas pelo complexo
cultural e turístico. Para integrar o Porto, a fragmentação do espaço urbano é
enfatizada, subordinado à lógica do capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave:
Requalificação Urbana, Recentralização, Cultura, Turismo, Metrópoles Mundiais.
Spatial policies of
urban reclassification in a central urban area of
Several cities have implemented in their
Downtown Areas post-fordist interventions searching
for urban requalification through economic recentralization. In
This paper analyzes such strategy based on the
two last capitalist restructuring to understand the current spatial
organization of the Outskirts Zone Downtown and the consequences of the
revision of its uses. It studies the attempt to localize
Finally, it becomes evident the interrelation
of the requalification with the formation of spectacle cities, metropolises
with a new esthetic affirmed by the cultural and tourist complex. To integrate
the Harbor, the fragmentation of the urban space is emphasized, subordinated to
the contemporary capitalism logic.
Keywords: Urban Requalification, Recentralization,
Culture, Tourism, Global Metropolises.
Requalificar[1]
as áreas portuárias e adjacentes de metrópoles tem se mostrado uma tendência
pelo mundo. Diversas cidades já implementaram em suas Áreas Centrais[2]
práticas intervencionistas buscando uma “renovação” urbana e um maior
incremento econômico. Essas práticas baseiam-se em um receituário
“pós-fordista” indutor de políticas urbanísticas de recentralização e
desenvolvimento econômico terciário (de produção e consumo). Tal dinamismo é
notadamente percebido pela atração de empreendimentos representativos para os
locais contemplados pela requalificação urbana e pelos abalos conseqüentes na
estrutura interna das cidades.
Desta forma, a
estratégia de recuperação e eliminação da obsolescência tem agora, como
laboratório, a área do Porto do Rio de Janeiro. Os bairros do Santo Cristo,
Gamboa, Saúde e parte do Centro (Praça Mauá) são apresentados, então, como o
recorte espacial a ser modificado estruturalmente pelo projeto.
No entanto, constata-se que os investimentos imobiliários cariocas têm
seu foco na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente na
direção da Barra da Tijuca, do Recreio dos Bandeirantes e do novíssimo Recreio
de Guaratiba. Competir por esses recursos e justificar a viabilidade econômica
desses investimentos no Porto é tarefa da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, principal agente que planejou este projeto de intervenção urbana.
Neste contexto, transformar a Zona Portuária em
um pólo multifuncional (com ênfase na cultura, alta tecnologia, habitação e
turismo) e integrá-lo à dinâmica do núcleo central carioca é o grande desafio
assumido pelo poder público, estabelecendo os paradigmas e os eixos de
desenvolvimento local.
Assim, a presente pesquisa tem como objetivo
precípuo analisar o referido projeto sob a luz dos dois últimos processos de
reestruturações capitalistas, fundamentais para a compreensão da atual
organização espacial da zona periférica do centro e, ainda, a revisão das
funções urbanas a partir da intervenção, e suas conseqüências naquele lugar.
Além disso, estuda a tentativa de localizar, de fato, o Rio de Janeiro no rol
das metrópoles mundiais[3]
(no que tange à dimensão turístico-cultural), ao lado de Nova York, Miami,
Londres, Paris, Tóquio. Neste contexto, busca compreender uma provável
desterritorialização dos moradores locais, desconexos com os simbolismos do
processo de globalização, devido à implantação de determinadas funções
incompatíveis com um modo de vida depauperado, refletido nas formas espaciais
degradadas da Zona Portuária.
Os efeitos da última reestruturação pela qual
passou o modo de produção capitalista tiveram ascendência inequívoca sobre a
metamorfose urbana nos países centrais, de
Em relação aos efeitos dessa reestruturação no
Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, registra-se uma
desindustrialização da Área Central acompanhada de uma proliferação pelo espaço
carioca das atividades terciárias, constituindo centralidades complementares
(subcentros comerciais). Na Zona Portuária, a conteinerização[5]
crescente também reduziu a área utilizada do Porto gerando “vazios urbanos”
(Vaz & Silveira, 1999).
Em relação aos países centrais, com a
interrupção de uma trajetória de crescimento na década de 1970, sustentada por
consistentes investimentos produtivos no após-guerra, a ruína do edifício
fordista evidencia-se inegavelmente. Os elevados gastos realizados pelo “Estado
previdenciário”, direcionados à contenção das tensões sociais e ao planejamento
urbano desigual, definiram uma nova redistribuição das classes sociais pelo
território urbano (Soja, 1983). As ações do Estado concentraram-se no
afastamento das elites para bairros distantes através de políticas
habitacionais e de transportes, e na manutenção das classes populares no
entorno do centro.
Fruto dessas políticas segregadoras, a
materialização dos conflitos sociais (insurreições urbanas na Europa em 1968 e
1969) e a recessão global de 1973-75 desnudaram a falência do Welfare State, sua “crise urbana” e a
necessidade de reestruturá-lo. Neste sentido, o impacto da crise do Estado
gerou a demanda de revisão das práticas de planejamento.
Esta quebra do paradigma fordista, aqui
entendido como uma “crise”, redefine as estruturas espaciais de modo a expandir
as potencialidades de extração de lucros e de maior produtividade do sistema.
Recombinando espaços e a lógica da localização industrial, precarizando as
relações trabalhistas e desenvolvendo novas tecnologias alcança-se o nível de
flexibilização exigido[6].
Para Geraiges de Lemos (2002: 183), “as descobertas tecnológicas do após-guerra
e o processo produtivo industrial localizado nas cidades trazem um novo
elemento da modernidade: forma-se um mercado consumidor que até esse momento
não se conhecia”. Dessa forma, esboça-se uma estratégia global para formalizar
uma nova sociedade para uma cidade renovada, escravizadas pela “ideologia da
felicidade através do consumo” das coisas e do espaço (Lefebvre, 1991; Bauman,
1999).
Do fordismo herda-se “uma multiplicidade de
centros manufatureiros e cidades portuárias, outrora importantes, [que]
perderam suas funções e encontra-se em declínio, não só nos países menos
desenvolvidos como também nas economias mais adiantadas” (Sassen, 1998, p.17).
Assim, de acordo com a nova estratégia, esses espaços inviáveis emergem como
laboratório para experiências urbanísticas visando ao desenvolvimento de novas
atividades econômicas e implantação de novas funções em uma tentativa de
restituição da centralidade. “As centralidades antigas, a decomposição dos
centros são por ela substituídas pelo centro de decisão” (Lefebvre, 1991: 21)
buscando a concentração dos “meios do poder: informação, formação, organização,
operação” (Lefebvre, 1991: 26).
Destarte, o Estado rege a recentralização das
nodalidades urbanas e o fortalecimento da Área Central conduzido por políticas
de renovação que estimulem as funções de um centro de gestão do território[7].
Nesse momento, a desindustrialização globaliza a produção e faz da Área Central
da metrópole o locus de controle e
gestão internacional dos novos complexos industriais. Organiza-se uma
reindustrialização seletiva na Área Central renovada baseada na alta tecnologia
e na mão-de-obra flexível, mas bem remunerada.
Os aspectos internacionais são de fundamental
importância na análise da formação do novo papel das metrópoles, pois, desta
forma, expõe-se a estratégia de classe que direciona o desenvolvimento desigual
no espaço urbano e seus desdobramentos no arranjo espacial, totalmente
indissociáveis do processo de globalização. Além disso, contribuem para a
compreensão das políticas urbanas atuais e suas implicações no comportamento da
sociedade. Com efeito, tais processos contemporâneos de “reconquista” são
passíveis de observação nas Áreas Centrais. Para Lefebvre (1991: 12), “o núcleo
urbano torna-se, assim, produto de consumo de alta qualidade para estrangeiros,
turistas, pessoas oriundas da periferia, suburbanos. Sobrevive graças a este
duplo papel: lugar de consumo e consumo do lugar. Assim, os antigos centros
(...) tornam-se centros de consumo”.
Desse modo, buscamos explicitar a estratégia de
“renovação” da Zona Portuária carioca pelo poder público, associado às camadas
mais privilegiadas e ao capital imobiliário. Balizados pela história do lugar,
expomos o atual quadro de degradação e o projeto de intervenção municipal. Com
a missão de reestruturar o espaço, ele estabelece as novas funções mais
condizentes com o atual momento do capitalismo. Finalmente, analisamos as
prováveis conseqüências e os reveses conjunturais do projeto de intervenção
urbana que leva o nome do lugar: Plano
Porto do Rio.
A atual configuração da Zona Portuária guarda
suas origens no início do século XX, durante a “Administração Pereira Passos”,
inspirada na reforma empreendida em Paris pelo barão Haussmann. De
Durante a Reforma Passos, morros foram
desmontados e seus destroços utilizados para aterros. Com parte desse entulho,
desenhou-se o litoral retificado do espaço em tela guardando em seu interior um
retroporto bem dimensionado. Lá, consolidou-se a área de usos sujos da capital
da República e os estigmas decorrentes (Rabha, 1985).
Os bairros portuários não acompanharam a
modernização da cidade e a verticalização do núcleo central. À medida que as
indústrias caminhavam para São Cristóvão acompanhando os eixos ferroviários e,
em seguida, para a periferia metropolitana, o Porto perde dinamismo e ganha
vazios urbanos. Enquanto isso, a cidade estende-se com o bonde pelas praias da
Zona Sul. “Virou de costas para a baía,
aproximou-se do oceano e internalizou-se em busca de chãos” (Lessa, 2000:
11).
Devido à própria geomorfologia do lugar e à
progressiva redução das atividades, o Porto isola-se. Com a abertura da Avenida
Presidente Vargas[8], na década de 1940,
separa-se, na prática, o Porto da cidade. Mais adiante, a inusitada construção
da Avenida Perimetral afastou drasticamente os bairros da Zona Portuária do
próprio Porto. Gerou-se um deslugar.
Assim, quatro das mais importantes avenidas da
Área Central carioca (Presidente Vargas, Rodrigues Alves, Francisco Bicalho e
Rio Branco) formam um verdadeiro anel de isolamento dos bairros portuários
(Rabha, 1985) constituindo uma “ilha” circundada pelos fluxos. Romper essa
compartimentação é fundamental para o sucesso do projeto de requalificação
apresentado pela Prefeitura.
O Plano de Revitalização da Zona Portuária
integra projetos que têm por fim a valorização do patrimônio cultural tombado
da área, a reconquista de seus espaços urbanos, a melhoria de sua
acessibilidade para os novos fluxos e sua reativação econômica a partir do
comércio e serviços, opção que é adequada ao perfil da PEA carioca[9].
Na estrutura do projeto, são definidos seis núcleos de áreas especializadas[10]
(Rio de Janeiro, 2003). Aqui, reorganizamos os núcleos, pois nos interessam as
funções envolvidas. São eles: Transportes, Tecnologia e Comunicações; Habitação
e Meio Ambiente; Turismo e Entretenimento;
Turismo e Cultura.
Transportes, Tecnologia e Comunicações
Planeja-se intervir no sistema viário, buscando
uma vertebração intra e extrabairros, para uma melhor articulação e circulação
dos novos fluxos e um real fomento ao turismo. Santos (2002: 133) ressalta
que, “com o aprimoramento das infra-estruturas de transporte, conseqüências
positivas para o comércio em geral são sentidas. Como resultado, cresce um
grande número de outras atividades que dependem de uma circulação mais intensa.
O fato de que as pessoas também circulam mais facilmente estimula o comércio e
assegura uma clientela para as atividades de transportes”.
O projeto corresponde à primeira etapa do
processo de efetiva modernização portuária no Estado do Rio de Janeiro. Através
de parcerias públicas e privadas, nacionais e internacionais, espera-se a
consecução de fases vitais do projeto. Dentre elas, a remodelagem com fins
operacionais[11], de maneira a dotá-las de
novos berços de atracação mais modernos, localizados no novo Terminal Internacional
de Passageiros, na Gamboa, já que o Píer Mauá deverá estar ocupado pelo
empreendimento-âncora da requalificação.
O eixo representado pela Avenida Barão de Tefé
destaca a importância das infra-estruturas de comunicação e tecnologia. O
projeto implica a implantação de um pólo que se torne um eixo de produção e
difusão de tecnologias na Zona Portuária.
Não obstante a sinalização positiva, cabe
destacar a existência de um outro pólo tecnológico no Estado: Petrópolis. A
cidade serrana apresenta um projeto competitivo e pode comprometer a instalação
plena de empresas de base tecnológica na Zona Portuária. Além disso, parte
considerável das empresas que já estava no Rio migrou para São Paulo,
expandindo o CBD paulistano. Apesar disso, recomenda-se a observação do exemplo
do Recife e o sucesso de seu Porto Digital, base de empresas de software de
baixo investimento e alta rentabilidade.
É importante ressaltar que, próximo a um pólo tecnológico, recomenda-se
haver sempre um campus universitário.
Habitação e Meio Ambiente
Com a redução da área útil do Porto, grandes
extensões de solo urbano da Área Central passaram à condição de vazios. Aliada
ao recolhimento dos pátios de contêineres no Caju e a desativação do Cais da
Gamboa, a subutilização de terrenos pertencentes à União, à RFFSA e a
particulares para a especulação representa um potencial de reaproveitamento do
uso do solo.
Em recentes pesquisas empíricas, já constatamos
um reajuste dos valores das propriedades muito acima daqueles que eram praticados
antes da requalificação mostrar-se uma possibilidade real. No morro da
Conceição, por exemplo, novos empreendimentos residenciais encontram-se em
construção, assim como já há a indicação da refuncionalização de alguns
sobrados históricos como ateliês.
Na tentativa de
minorar os efeitos negativos desse procedimento, o subprojeto “Morar no Porto”
terá a função de dobrar o tamanho da população atual com renda em torno de dez
salários mínimos (Rio de Janeiro, 2003) e diminuir a pressão sobre a Zona Sul,
constituindo uma intervenção segmentada. Concordamos com Vaz & Silveira
(1999: 60) a respeito da “efetiva ocupação desses vazios por meio da
implementação de projetos habitacionais”. O retorno às políticas de residências
populares deveria ser orquestrado e posto em pauta pelo poder municipal e seus
parceiros. Por fim, destaca-se a implantação da Vila Olímpica da Gamboa e do
Favela-Bairro nas três comunidades da Zona Portuária: Providência, Pedra Lisa e
Padre Pedro.
No tocante à recuperação dos espaços públicos,
há propostas de intervenção
Quanto à legislação urbanística, propõe-se a
revisão da mesma com propostas de mudança no zoneamento e nos projetos de
alinhamento, visando adequar a área a um novo perfil de desenvolvimento
fundamentado na prestação de serviços e atividades comerciais formais. Assim, o
problema da arrecadação fiscal é atacado, pois é esperado um aumento do
pagamento de impostos e tributos a partir dos novos serviços voltados para os
novos moradores e para os novos comerciantes.
Turismo e Entretenimento
No projeto, privilegiam-se as atividades
turísticas como forma de atração de recursos em moeda forte, dinamização da
economia local e fortalecimento da imagem da cidade. A Zona Portuária
requalificada contemplará o turismo cultural, o histórico e o de negócios.
Dentre as medidas indicadas pela Prefeitura
para a requalificação do local, podemos destacar a ocupação dos armazéns por
programações culturais e artísticas; recuperação de fixos históricos, como as
igrejas; criação de parques públicos às margens da baía; visitação ao morro da
Conceição, com seu casario centenário e suas ruelas coloniais sinuosas; a
Cidade do Samba; restaurantes e bares à beira mar.
O turismo é uma das ferramentas utilizadas para
ativar a economia dos centros “renovados”, e a arquitetura de vanguarda dos
principais equipamentos é um grande atrativo. Assim, o maior destaque deverá
ser o equipamento cultural âncora do processo de requalificação. A questão que
se coloca é se a cidade do Rio de Janeiro possui condições de sustentar esse
processo ao lado de seus colaboradores privados e instituições de fomento
internacionais, pois “a fabricação/produção desses espaços [turísticos]
implica, em primeiro lugar, grandes somas de dinheiro, que normalmente só podem
ser aportadas às economias locais por empresas multinacionais. Estas têm, via
de regra, pouco comprometimento com a problemática local, com as questões
ambientais e com o retorno econômico para a população” (Barreto, 2000: 25).
Apesar disso é inegável o potencial de reutilização
de “prédios em desuso, equipamentos obsoletos, costumes sepultados no tempo. O
Turismo recicla tais elementos, incorpora homens e meios a novos processos,
estimula novos fazeres, gerando novas ocupações, novos empregos” (Moesch, 2001:
98).
Turismo e Cultura
A intersecção entre turismo e cultura nos
últimos anos produziu uma nova forma de apreensão do espaço enquanto produto
passível de consumo. O turismo é um dos argumentos pelos quais o capitalismo penetra,
altera o conteúdo de cultura de um lugar e o transforma
No caso carioca, desde o início, a Prefeitura
cogitou a instalação de um museu internacional. A opção pelo Museu Guggenheim
dependeu de contrapartidas mútuas, mas não foi a única organização procurada
pela “Administração César Maia”. Além da Fundação Solomon Guggenheim (EUA),
também foram sondados o Centro Georges Pompidou (França) e a Tate Gallery (Inglaterra).
A tese central é a inclusão da cidade em uma
rede urbana de museus internacionalmente reconhecidos, aumentando sua
credibilidade, tornando-a um pólo cultural internacional. Além disso, a
presença de um museu como o Guggenheim, catalisaria investidores privados
nacionais e internacionais, pois estes já conhecem os efeitos dos projetos de
requalificação de outros portos. O reforço da idéia de competitividade, da
atração de recursos e eventos a qualquer custo, sustenta a cidade-espetáculo,
vendida como uma mercadoria.
Nos países mais pobres há uma busca pela cópia
de certos modelos de consumo, como se fossem a grande demanda da sociedade.
Isso é decorrente da idéia de modernidade. Como corolário, tem-se a exclusão
daqueles que não podem copiar, marginalizados, já que não podem fazer parte do
sistema. Dessa forma, uma lógica colonial pós-moderna ganha espaço a cada nova
proposta anunciada.
Porém, o Museu Guggenheim representa bem mais.
Como ideologia materializada, ícone de uma classe e de seus valores,
desencadeia uma tentativa de homogeneização cultural, já que os equipamentos
culturais são concebidos por arquitetos de uma mesma escola. É a presença
física da ideologia da generalização da cultura, dos valores e dos hábitos.
Segundo ALERJ (2001: 15), “é emblemática e simbólica a instalação do Guggenheim
na Zona Portuária. Dessa forma, nos posicionamos como espectadores do Porto,
como se estivéssemos esperando a grande novidade que irá proporcionar a mudança
que irá nos inserir em um processo de civilização”.
Como visto, o projeto de requalificação
objetiva o rompimento do processo de inércia procurando alterar a estrutura que
guarda o momento histórico que lhe deu origem e introduzir o novo, gerando
formas tangíveis. A requalificação urbana surge para desestigmatizar e impor
uma identidade terciária e turística à Zona Portuária. Após o rompimento do
processo de inércia, o projeto de recentralização busca impedir o avanço dos
vazios sobre o CBD, procurando evitar a degradação dos espaços públicos.
Na competição por recursos, o projeto de
intervenção municipal terá de competir com a Barra da Tijuca pelas empresas
prestadoras de serviços. Hoje, essas organizações preferem instalar-se nos business centers. Mudar essa tendência
dependerá de um marketing urbano e de
uma política de incentivos muito bem sucedidos.
Quanto ao turismo, o modelo utilizado pela
Prefeitura sustenta-se na turistificação a partir da implantação de símbolos da
globalização. O turismo, a mais nova
forma de reprodução do capital, é condicionado pela terceira revolução
industrial, apoiada nos serviços e na tecnologia. A consciência coletiva dos
dirigentes e das elites compreende o turismo como um processo inexorável para a
inserção competitiva no mercado globalizado de cidades.
Espetacularização
e Estetização: O Projeto “Global City” Carioca e o Exemplo de Miami
O projeto de requalificação da área portuária
do Rio de Janeiro constitui uma “carta de intenções” visivelmente conectada à
lógica global de espetacularização dos espaços urbanos, uma tendência que
possui entre seus destaques cidades como Barcelona, Curitiba, Montevidéu e
Buenos Aires (Sánchez, 2003), modelos de gestão e intervenção dominantes.
Com a ascensão da cidade-empresa, uma gestão
pública essencialmente empresarial, as cidades surgem como produtos expostos
para o consumo dos investidores. Sánchez (2003: 548) define a cidade-espetáculo
como “a cidade-mercadoria, a cidade vendida como produto no mercado mundial.
Para a potencialização dessa venda, uma combinação de transformações materiais
e representações, reunidas em imagens-síntese, são acionadas como atributos
mercadológicos do produto-cidade, construído por meio de (...) city marketing”. O processo de formação
das cidades-espetáculo depende da criação de um marketing de cidade bem construído e interiorizado na consciência
coletiva da população.
A partir da formulação de um discurso de crise,
justifica-se a necessidade de intervenções. Então, ao requalificar a imagem, o
projeto de intervenção agrega a seus objetivos “a transformação de algumas
áreas em ‘novas centralidades’, fragmentos urbanos transformados em nós de
atividades e fluxos – empresariais, comerciais, de serviços – somados aos
espaços da chamada ‘oferta cultural’, museus e centros de lazer” (Sánchez,
2003: .499). Para isso, é necessário um redesenho do lugar, com base em um
modelo internacional[12],
privilegiando a instalação de uma infra-estrutura adequada e uma substancial
atração de setores de prestação de serviços. Neste discurso, a criação de
equipamentos culturais e turísticos de grife torna-se a chave para o
desenvolvimento dos espaços obsoletos.
Caso um projeto semelhante seja de fato
implantado no Rio de Janeiro, a Área Central da cidade passará a uma transição
de seu conteúdo social. Devido à “reabilitação” engendrada, o perfil do morador
se redefine. A intervenção legitima a segmentação. No lugar dos trabalhadores
pobres que viviam em residências cuja forma-aparência cristalizada refletia
estruturas descartadas pelo capitalismo (Rabha, 1985), instalam-se típicos
representantes da classe média em residências recicladas ou recém-construídas.
Este processo social é conhecido como elitização[13]
(Garcia Herrera, 2001) e se contrapõe à gentrificação
(Vazquez Varela, 1997; Sánchez, 2003). Os novos moradores, segundo Martínez I Rigol
(2003: 1), caracterizam-se como “empleados en el creciente sector
terciario, con un alto nivel de formación y con un nivel económico medio y
alto, ocupaban barrios de la clase trabajadora contribuyendo al desplazamiento
de la població residente”.
Sánchez (2003: 550) aponta a “existência de uma
rede global na qual operam fluxos informacionais associados à cidade-tipo,
imbricados nos processos constituintes de um mercado global de cidades”. E
completa mais à frente: “o capitalismo (...) reorganiza a produção subordinada
às cidades e aos centros de decisão, implica a compra e venda do espaço na
escala mundial” (Sánchez, 2003: 552).
A ascensão desse mercado global ligado às
finanças e aos serviços especializados contribuiu para a expansão das funções
decisionais e da demanda por esses serviços a partir das empresas. Sassen
(1998, p.35) afirma que “a combinação da dispersão geográfica das atividades
econômicas e da integração dos sistemas, que está no centro da atual era
econômica, contribuiu para o papel estratégico desempenhado pelas grandes
cidades”. Não perderam suas funções de comando, pelo contrário, concentraram. A
cidade tornou-se o campo privilegiado para o setor financeiro e de serviços
especializados construindo mercados, concentrando geograficamente as transações
(Santos, 2002b).
Desse modo, essas cidades não se tornaram
obsoletas: passaram a associar na escala global o capital produtivo e o
financeiro. Essas cidades se internacionalizaram, mas, em um movimento
contraditório, passaram a centralizar espacialmente o capital formando o centro
de gestão do território (Corrêa, 1996) integrando pela informação múltiplas
atividades industriais dispersas.
O Rio de Janeiro, segundo Pacheco (1998: 1), “é
uma metrópole marcada pela urbanização terciária e (...) está iniciando um
processo de reconstrução vinculada à modernização do setor terciário. Dentro
deste contexto é que pensamos o Rio de Janeiro como um centro de decisões e de
produção de serviços. (...) A cidade se internacionaliza reunindo um conjunto
de atividades terciárias e economias de aglomeração, assim como sedes de
empresas e producer services, além
das condições de mercado favoráveis e facilidades de telecomunicações e
informação”.
Não obstantes tais características, a cidade
apresenta dinamismo questionável. O recente esvaziamento econômico metropolitano
evidencia uma grave crise estrutural. De fato, a cidade apresenta
características internacionais, porém não centraliza um conjunto de atividades
essenciais à gestão da economia mundial.
Já a cidade de Miami, uma cidade mundial
“latino-americana” por excelência, tornou-se um importante centro de
gerenciamento administrativo e de tomada de decisões, com sedes secundárias e
sucursais das principais empresas com jurisdição sobre a América Latina. “Ao
mesmo tempo, a cidade é uma plataforma fundamental para as operações das
empresas latino-americanas nos Estados Unidos” (Sassen, 1998: 107). Sua grande
imigração cubana levou ao desenvolvimento de um complexo de comércio
internacional orientado para a América Latina e Caribe, constituindo a hinterlândia
de Miami.
Ao contrário das reduzidas atividades do Rio de
Janeiro, às sedes e sucursais de bancos em Miami direciona-se grande fluxo de
investimentos internacionais na América Latina promovendo o desenvolvimento de
funções de cidade mundial e de grande número de postos de emprego
qualificados.
Assim, comparando o Rio de Janeiro com outras
cidades classificadas como mundiais, percebe-se a desproporção dos mercados e
da força econômica. Enquanto São Paulo[14]
consolida-se como a cidade primacial do Brasil, a metrópole carioca ainda
planeja uma estratégia de recuperação através de um projeto de requalificação e
espetacularização.
Shachar (1983) nos lembra que a cidade mundial
plena é aquela que se sustenta na vinculação de seis clusters: serviços de negócios
de alto nível; demanda derivada no mercado imobiliário para construção e
administração; turismo internacional; indústrias fundamentadas na alta
tecnologia; oferta racional dos serviços governamentais; e uma parcela reduzida
da população inserida no setor informal da economia. Analisando o Rio de
Janeiro a partir de tais variáveis, afirmamos com segurança que apenas a
dimensão turístico-cultural e um grande contingente populacional não são
suficientes para posicionar uma cidade no topo da hierarquia urbana mundial,
mas condições parciais para tal.
A Área Central é um local estratégico. Possui
vantagens estruturais, já que preserva investimentos urbanos acumulados ao
longo do tempo. Compreende o entroncamento das redes de transportes, pois é
centralidade receptora de indivíduos produtores e consumidores.
Esses “investimentos” marcados no espaço[15]
registram uma estrutura ímpar no espaço urbano carioca. Testemunham modos de
acumulação capitalistas tidos como ultrapassados e não nos permitem que
esqueçamos a mão pesada do Estado interventor.
Por isso, é de suma importância “vigiar” e
analisar as propostas apresentadas pelo poder público. Preservar as formas
pretéritas não significa deixar à mercê da ação do tempo, assim como requalificar
deveria estar distante da substituição do conteúdo social. Políticas sérias de
valorização da cultura carioca e para um planejamento mais justo se fazem
presentes em um momento delicado como este.
Assim, deve-se incentivar as
manifestações culturais com mais oportunidades de acesso a essas atividades na
Zona Portuária. O objetivo é a valorização da rica história dos diversos grupos
migracionais que fizeram do Porto um novo território.
Nesse sentido, a Zona Portuária
possui necessidades muito mais prementes do que um museu internacional,
receptor de consumidores turísticos e estéticos, totalmente desajustado àquela
realidade. Segundo IBGE/ENCE (2002), mais da metade das mulheres daquele lugar
não têm instrução. Investir no retorno à escola básica de qualidade é função da
Prefeitura, integrando à cidade populações abandonadas, qualificando-as como
cidadãs.
Por
fim, ressalta-se a inter-relação do processo de requalificação da área
portuária com uma tendência mundial de se formarem cidades-espetáculo. As
metrópoles passam a se afirmar pela importância de seu complexo cultural e pelo
potencial turístico, catalisador de moeda forte. Buscando integrar os bairros
portuários à cidade, a Prefeitura enfatiza a fragmentação do espaço social
urbano, subordinando aquele lugar à lógica do capitalismo contemporâneo.
[1] O processo espacial em destaque já
recebeu diversas acepções, não havendo consenso entre os estudiosos. Aqui, o termo
“requalificação” deverá ser compreendido como um tipo de intervenção urbana
segmentada, voltada à ressignificação de uma imagem diante dos consumidores do
espaço, objetivando agregar uma nova qualidade ao lugar a ser alterado através
de políticas de reestruturação urbana. Nesta interpretação, podemos enquadrar
os termos renovação, revitalização, reabilitação e refuncionalização. Os
conceitos de gentrificação e elitização serão diferenciados e
abordados a seguir.
[2] Segundo Corrêa (1995a, p.38), a Área
Central é composta por dois setores: o núcleo central (CBD, Central Business District) e a zona
periférica do Centro (local do cais e dos armazéns em cidades portuárias). Na
Área Central “concentram-se as principais atividades comerciais, de serviços,
da gestão pública e privada, e os terminais de transportes inter-regionais e
intra-urbanos”.
[3] Segundo Arie Shachar (1983, p.75),
“as ‘cidades mundiais’ seriam regiões urbanizadas em grande escala, os centros
básicos de controle e acumulação do capital ao nível internacional.
Responsáveis, assim, pelos investimentos capitalistas e pelo desempenho do
sistema econômico mundial, elas teriam seu poder não mais como núcleos de
produção – pois esta torna-se cada vez menos importante como veículo
articulador do sistema, mas como veículo de articulação financeira, núcleos de
pesquisa e desenvolvimento, ‘marketing’ e acumulação de capital”.
[5] “Com o uso de contêineres no
transporte marítimo, a partir de 1960, os velhos cais em linhas, com ou sem
píeres, ficaram obsoletos e desocupados, passando a ser requisito técnico do
transporte marítimo moderno uma ampla área de retroporto com profundidade
suficiente para armazenar filas de contêineres e uma ligação direta à rodovia
ou à ferrovia” (Barbuda & Escobar, 2002, p.7).
[6] “Boston, onde um profundo e
prolongado processo de disciplinamento do trabalho, fechamento de fábricas e
fuga do capital produziu as condições para uma recuperação econômica baseada,
em grande parte, na rápida expansão dos setores de alta tecnologia e serviços”
(Harrison apud Soja, 1993, p.249).
[7] O centro de gestão do território é
“uma metrópole com numerosas sedes de grandes corporações com múltiplas
localizações e o complexo conjunto de atividades associadas” (Corrêa, 1996,
p.25).
[8] Urge uma revisão da setorização da
Avenida Presidente Vargas (monumentalidade do Estado Novo). Seria conveniente
abranger nesta tarefa, além da avenida e seu entorno, a Zona Portuária e integrar
a avenida à dinâmica de requalificação.
[9] A cidade “destaca-se (...) pelo seu
perfil terciário ou de serviços, que ocupa mais de 50% da população ativa, e
pela disponibilidade de um mercado de recursos humanos qualificados para o
desempenho de atividades vinculadas ao terciário avançado” (Cocco, 2001, p.87).
[10] “Definir investimentos públicos a
partir da identificação de eixos visa a priorizar as obras e projetos capazes
de carrear o maior número possível de investimentos privados” (Gazeta Mercantil
apud Cocco, 2001, p.33).
[11] Segundo Barbuda & Escobar
(2002, p.3), “a chamada Lei de Modernização dos Portos, lei 8.630 de
25/02/1993, apresenta como fator básico a concepção do programa de
reestruturação da atividade portuária, no que se refere a sua
desregulamentação, desestatização, descentralização e privatização”.
[12] É importante ressaltar que existem
contextos distintos em cada caso de requalificação urbana. Barcelona, por
exemplo, recebeu vultosos investimentos dos países da União Européia por inserir-se
no projeto de adaptação/desenvolvimento da Catalunha e da Espanha, contando com
os investimentos para os Jogos Olímpicos de 1992. Um caso similar é o da cidade
de Atenas, capital da Grécia e sede das Olimpíadas de 2004, pronta para
recolher os dividendos de seu esforço modernizador.
[13] O termo elitização permite a inclusão das classes médias e altas. Não é tão restritivo quanto o termo gentrification (em uma tradução literal, “aristocratização”). Segundo Garcia Herrera (2001, p.6), “la noción de elite alude al protagonismo de un grupo específico, privilegiado, con capacidad de influencia social, de liderazgo y de influir en la toma de decisiones”.
[14] “The downtown section of New York City is deeply
connected to the downtown section of Sao Paulo, much more than the downtown of
Sao Paulo is to its own periphery” (Sassen, 1996, p.5).
[15] As rugosidades são “formas herdadas
do passado (...) [que] tiveram uma gênese vinculada a outros propósitos e permaneceram
no presente” (Corrêa, 1995b, p.71).
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© Copyright Julio Cesar Ferreira Santos, 2005
© Copyright Scripta Nova, 2005
Ficha bibliográfica:
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<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-43.htm> [ISSN: 1138-9788]
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