Scripta Nova |
Rita de Cássia da Conceição Gomes
Professora
da Base de Pesquisa em Estudos Sócio-Espaciais e Representações
Cartográficas do Departamento de Geografia da UFRN.
Anieres Barbosa da Silva
Doutorando do curso de Ciências Sociais
da UFRN.
Valdenildo Pedro da Silva
Doutorando do curso de Geografia da UFRJ.
O trabalho propõe uma reflexão sobre a
evolução de experiências de gestão social das políticas públicas em pequenas
cidades[1], considerando a nova
realidade institucional criada a partir da promulgação da Constituição
Brasileira de 1988. Com essa Constituição, despontaram novos parâmetros na
relação entre o Estado e a Sociedade, na medida em que emergiram novos
instrumentos de gestão social das políticas públicas, merecendo destaque a
institucionalização dos Conselhos Municipais, que se constituem em novos
espaços para formulação, gestão, controle e avaliação das políticas públicas,
enquanto espaços privilegiados do exercício da cidadania. Mesmo reconhecendo
que a institucionalização dos Conselhos Municipais é de fundamental importância
na consolidação do processo democrático no Brasil, entendemos ser oportuno uma
discussão que considere, de um lado, a realidade socioespacial das pequenas
cidades e, de outro, a atuação dos Conselhos Municipais enquanto espaços de
luta, num contexto de reorganização institucional. Nesse sentido, é
imprescindível compreendermos que a pesquisa parte do entendimento de gestão
social como uma ação complexa, que está relacionada ao processo de articulação
e formação de Conselhos Municipais, às condições de participação social (por
meio de seus representantes), às relações de poder, à legitimidade e à
diversidade de atores, à atuação do poder público, aos limites e à contribuição
para a gestão, além do controle e da avaliação das políticas públicas. Tem como
objeto empírico, as pequenas cidades do Estado do Rio Grande do Norte/Brasil,
sendo os dados do perfil municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2001) a fonte secundária de referência. Os resultados
apontam para a fragilidade na legitimação dos Conselhos Municipais, sendo esta
fragilidade explicada pela predominância, ainda, de formas arcaicas de
dominação: o clientelismo, o assistencialismo e o patrimonialismo nos parecem
estar bastante solidificados. Portanto, discutir a gestão social no atual
contexto político brasileiro significa procurar caminhos que possam levar à
construção de uma realidade socialmente mais justa e com uma melhor qualidade
de vida; ou seja, uma sociedade verdadeiramente cidadã.
Palavras
chave:
Políticas públicas - Pequenas cidades – Gestão Social
Social management of government policy in small cities (Abstract)
This paper seeks
to analyse the development of experiences of social management of government
policy in small cities, in the light of a new institutional context which came
about with the Brazilian Constitution of 1988. This introduced new
possibilities for arrangements of social management of government policy, in
particular the institutionalization of popular municipal councils. This
constitution also enlarged the political and administrative autonomy of
municipalities and thus fostered the emergence of a space for policy making,
management, control and evaluation, a crucial aspect of the enhancement of
democratic procedures in the country. Notwithstanding, considering
socio-spatial aspects in small cities, it is here emphasized in the discussion
the ways in which the new popular municipal councils constitute spaces of
struggle in the arena of institutional restructuring. In this way, it is
important to further the understanding of the balance of power and
representation in these local councils. This paper understands social
management as a complex set of actions which includes the articulation and
formation of councils, the setting of conditions under which participation in
the councils takes place, relations of power and legitimacy, the diversity of
actors involved in the process as well as the ways that local authorities
relate to the councils. As empirical evidence, we have chosen the small cities
in the state of Rio Grande do Norte, Brazil. We used IBGE data bases.
Conclusions point to the fragile situation of councils in respect to its
formation, functioning and legitimacy. This is explained in the light of the
predominance of old forms of political domination still prevalent in the
region.
Keywords:
government policy, small cities, social management.
O tema da gestão social das políticas
públicas no Brasil passou a ter mais relevância a partir da promulgação da
Constituição de 1988, que legalmente promoveu um rompimento com a centralização
das decisões e dos recursos no nível federal, à medida que conferiu maior
autonomia a cada um dos entes constitutivos da Federação (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios) e, ao mesmo tempo, definiu formas de atuação
articulada entre estes. Desse modo, o setor público foi totalmente redefinido,
transferindo novas funções para as instâncias municipais e estaduais. A nova
Constituição também garantiu uma maior participação popular, uma vez que, além
de alguns instrumentos de democracia semidireta, como o plebiscito, também
foram asseguradas outras possibilidades de participação da população nas
decisões de governo, em algumas áreas de políticas sociais, sobretudo saúde, educação e assistência social.
Em decorrência dessa nova realidade
política, um novo arranjo político administrativo foi então implantado. E,
nesse novo arranjo, o município passou a ser de fato um ente federativo. Para alguns estudiosos, a questão mais importante e
inovadora na (re)valorização dos municípios foi o redesenho do sistema
federativo brasileiro com a definição de um novo patamar para os municípios,
tanto do ponto de vista financeiro, provocado pelo aumento do percentual dos
recursos tributários destinados aos municípios – que passaram a deter 11,4% do
total arrecadado no país –, quanto político-administrativo, com a implementação
de legislações e instrumentos de planejamento no município, que possibilitaram
mudanças no plano institucional. A partir de então, os municípios passaram a
enfrentar um duplo desafio: o de assumir a política social, que até então
estava concentrada na esfera federal; e o de promover
o desenvolvimento local.
No contexto do novo quadro de
estruturação política do Estado Nacional, os municípios tiveram a necessidade
de redesenhar suas atividades estatais, isto é, assumir as políticas sociais e,
dessa forma, tiveram que aumentar gastos com saúde, educação e outras
atividades de caráter social, de modo que o município assume, guardadas as
devidas proporções, o papel de Estado de bem-estar social, que até então era
totalmente da responsabilidade do Estado central.
Diante dessa redefinição política do
município, algumas questões são significativas. Dentre essas, merece ser
destacada a questão financeira, uma vez que novas responsabilidades foram assumidas,
sendo então necessário uma maior capacitação municipal no sentido de ampliar
suas receitas, e assim poder suprir as demandas da sociedade, tais como:
moradia, saúde, educação e segurança pública. Outra questão que se tornou
premente foi a capacitação profissional do pessoal técnico-administrativo,
visto que com tais mudanças, inúmeros serviços
foram deslocados para o âmbito municipal.
Entretanto, diante dessa realidade,
chamamos a atenção para o fato de que nesse duplo desafio ao qual estão submetidos
os municípios, alguns aspectos devem ser considerados, uma vez que, podem vir a
ser elementos condicionadores dessa realidade. Estamos nos referindo à
estrutura fiscal da Federação brasileira, às diferenças sócio-econômicas e à
dinâmica política interna em cada município.
No que tange à estrutura fiscal, é
importante destacar que, após a Constituição de 1988, passou a ocorrer a
descentralização fiscal de forma gradual, de modo que estados e municípios
passaram a contar com maiores percentuais da receita da União. No entanto, um dos aspectos significativos dessa nova realidade
diz respeito à possibilidade de aumento do poder tributário das unidades
sub-nacionais em sua própria jurisdição e ao aumento dos recursos disponíveis
de forma não vinculadas para os estados e municípios, como resultado do
incremento das transferências constitucionais. Desse modo, foi bastante
significativo o aumento das transferências da União e dos estados para os
municípios, e a participação destes na receita do Imposto sobre a circulação de
Mercadorias (ICMS).
Embora a mudança tenha sido bastante
significativa, o efeito do aumento do poder tributário no âmbito municipal foi
muito pouco perceptível nas pequenas cidades, tendo em vista a baixa capacidade
dos pequenos municípios de produzirem a sua própria receita.
Enquanto nas grandes cidades e nas
capitais o Imposto Sobre Serviços (ISS) é uma
importante fonte de receita municipal, uma vez que a prestação de serviços
nessas cidades se insere num processo dinâmico, segundo o próprio
desenvolvimento do setor terciário; nas pequenas cidades, graças à pouca
dinamicidade da economia, o setor de serviços é muito frágil, de modo
que o ISS não pode ser considerado como importante fonte de receita. Algo
semelhante acontece com o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Além da
cobrança do IPTU ter um conteúdo político bastante forte; e, na maioria das
realidades urbanas, ser visto como uma medida impopular, que pode provocar
danos políticos de caráter eleitoreiro para os prefeitos, sobretudo nas
pequenas cidades, onde são precárias as
condições socioeconômicas da população e, por conseguinte, as condições de
moradia, o referido imposto também não constitui
uma fonte receita significativa no orçamento dessas prefeituras. Fato contrário
ocorre nas grandes cidades e nas capitais que, agradando ou não à população, a
cobrança do IPTU é uma atitude praticada por todos os prefeitos, e assume uma
importância considerável no orçamento municipal.
A desigualdade socioespacial que há muito
tempo vem sendo estudada no Brasil ainda é uma questão bastante preocupante. O
processo de desenvolvimento e expansão do capitalismo no Brasil pode ser
apontado como um dos principais responsáveis por essa realidade, adicionado, é
claro, às questões de ordem política, uma vez que a questão do desenvolvimento
social é também uma questão de caráter político. Ressaltamos que essa
desigualdade é funcional para alguns setores; que no caso brasileiro, o
setor político é um dos mais beneficiados. As diferenças sócio-econômicas entre
os lugares é cada vez mais real. A reprodução dos espaços luminosos, como
assinala Santos (1996), dá-se às custas da reprodução de uma grande quantidade
de espaços opacos. As pequenas cidades são o exemplo mais fiel dessa opacidade.
Nelas, a inexistência de dinamicidade dos setores produtivos – primário,
secundário e terciário – é uma difícil realidade vivenciada por seus habitantes, sobre os quais recaem os resultados
do desemprego e da falta de acesso aos serviços especializados de saúde, aos
equipamentos de lazer, e às escolas com infra-estrutura condizente com o
momento atual das modernas tecnologias educacionais. Enfim,
esses habitantes convivem com a falta de cidadania política, civil e social.
Assim, a desigualdade socioespacial é uma
realidade preocupante, ao mesmo tempo em que é um fator que não pode deixar de
ser considerado quando a questão em pauta é a descentralização[2]. Isto porque, enquanto
algumas áreas apresentam uma série de fatores favoráveis à implementação de
políticas sociais que busquem a melhoria nas condições de vida da população,
outras não apresentam condições que favoreçam tais práticas, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social, pois o que prevalece é a
pobreza, marcada pela falta de informação, de cultura e de conhecimentos
técnicos, contribuindo para a exclusão e segregação social que se distribui por
todo território nacional.
As referências feitas à desigualdade social existente
no Brasil parecem deixar claro que a realidade dos “dois brasis” de
Roger Bastide (1978) ainda não foi superada. Se,
de um lado, temos no Brasil áreas de intenso
dinamismo econômico, como salienta Araújo (2000), ou na visão de Santos (1996),
espaços luminosos; do outro, temos áreas nas
quais predominam atividades tradicionais e
predatórias, com pouco ou nenhum dinamismo.
Nesse contexto, com
uma economia frágil e uma sociedade despreparada, não apenas do ponto de vista
técnico-científico, mas principalmente político, a maioria das pequenas cidades
depende, quase que exclusivamente, apenas dos recursos oriundos do Fundo de
Participação dos Municípios (FPM). Ao contrário das grandes e médias cidades,
que, além de serem dinâmicas na construção de sua própria receita, ainda contam
com um sistema de tributação sólida e consistente significativa.
O FPM tem como critério de distribuição,
o tamanho da população; sendo os municípios organizados segundo faixas de
números de habitantes. Considerando que o sistema tributário brasileiro concede aos municípios impostos cuja base
de tributação mais relevante é eminentemente urbana, passa a existir uma forte
concentração das receitas tributárias naqueles municípios que apresentam maior
porte demográfico. Tal critério penaliza, de certa forma, os municípios
caracterizados pela presença de pequenos contingentes populacionais,
principalmente os que possuem população abaixo de 20000 habitantes, uma vez que
eles apresentam uma baixa participação quanto à receita tributária (tabela nº
1).
Quadro nº1
Distribuição das receitas orçamentária e
tributária municipais, segundo grupos de habitantes. Brasil – 2003
Habitantes
(por mil) |
Receita
orçamentária municipal |
Receita
tributária municipal |
%
(em R$ 1,00) |
Até
2 |
391.792.521 |
9.084.443 |
2,3 |
2
½-- 5 |
4.741.507.835 |
125.438.170 |
2,6 |
5
½-- 10 |
7.186.095.010 |
298.651.748 |
4,2 |
10½--
20 |
12.492.299.584 |
596.706.481 |
4,8 |
20
½-- 50 |
18.206.080.484 |
1.373.020.396 |
7,5 |
50
½-- 100 |
13.717.603.878 |
1.677.814.900 |
12,2 |
100
½-- 200 |
13.231.167.705 |
1.851.432.412 |
14,0 |
200
½-- 500 |
18.277.383.797 |
3.729.042.754 |
20,4 |
500
½-- 1000 |
10.618.616.932 |
2.175.308.582 |
20,5 |
1000
½-- 5000 |
14.839.242.353 |
3.703.190.946 |
25,0 |
5000
e mais |
18.481.284.113 |
6.987.698.688 |
37,8 |
TOTAL
BRASIL |
132.183.074.212 |
22.527.389.520 |
17,0 |
Fonte:
Bremaeker (2004).
Segundo esse critério distribuição, os
municípios que possuem uma dinâmica populacional mais avançada recebem valores
superiores aos pequenos municípios.
Somado a essa “lógica” de distribuição
tributária, que se mostra de baixa eficiência redistributiva, tanto no âmbito
interestadual quanto intra-estadual, temos que destacar a inexistência de
incentivos à cooperação entre os municípios. Na realidade, o que vem ocorrendo
é uma corrida competitiva em busca de recursos, configurando-se num
relacionamento não cooperativo entre as municipalidades.
Ao nosso ver, essa é uma das explicações para a intensa multiplicação de
unidades municipais, ocorrida após a promulgação da Constituição de 1988, o que
contribuído para um intenso processo de fragmentação do território.
No Rio Grande do Norte, esse processo se
concretizou via emancipação política de quinze novos municípios. As sedes
desses municípios contribuíram ainda mais para a construção de uma rede urbana
frágil e esgarçada, uma vez que as novas cidades que passaram a fazer parte da
malha urbana estadual possuem vulnerabilidades devido à fragilidade e à
incapacidade de fomentar o seu próprio desenvolvimento socioespacial.
No que se refere ao terceiro aspecto, ou
seja, à dinâmica política interna aos municípios, o novo arranjo
político-administrativo implantado a partir de 1988 e, por conseguinte, a
transferência de novas responsabilidades para os municípios lhe exigiu uma nova
dinâmica interna. Uma primeira mudança observada nesse quadro de exigências
está afeita às relações que devem ser estabelecidas no âmbito municipal, não
somente entre os poderes legislativo e executivo, mas também entre as
autoridades governamentais – prefeitos, secretários, vereadores – e a sociedade
civil. Isto implica afirmar que, nesse novo contexto, não basta ao prefeito
obter a maioria na Câmara de Vereadores, pois essa é apenas uma condição
necessária, mas não suficiente, uma vez que um movimento de bases que exerça
uma pressão sobre determinado projeto poderá ser uma condição favorável à sua
não aprovação.
Assim sendo, torna-se necessário que
formas de negociação entre partes interessadas na execução de políticas
públicas sejam então institucionalizadas. No nosso entendimento, o orçamento
participativo e a implementação dos Conselhos Municipais têm se mostrado como
uma experiência interessante nesse quadro de redefinição de uma nova dinâmica
da política interna dos municípios. Isto porque, tanto o orçamento
participativo quanto os Conselhos se constituem em fóruns de consulta direta à
população e/ou a setores específicos.
Outra mudança significativa no âmbito da
política interna municipal diz respeito ao estabelecimento de uma nova relação
entre o setor público e a iniciativa privada. Entretanto, essa relação
necessita de uma revisão, para evitar que os padrões patrimonialistas
prevaleçam em detrimento dos padrões republicanos.
No caso das médias e grandes cidades tem sido
comum essa relação, principalmente quando se trata da prestação de serviços que
antes eram tão somente da responsabilidade das prefeituras e hoje são
terceirizadas, como é o caso da coleta de lixo. No caso das pequenas cidades do
Rio Grande do Norte, diversos setores já são terceirizados, como pode ser
observado na tabela nº 2.
Os percentuais apresentados na tabela
mencionada expressam que parte significativa dos
serviços municipais já encontram-se terceirizados. Isso
torna mais premente a necessidade de uma redefinição na relação entre o
empresariado local e o poder municipal, de modo que o sistema de parcerias
entre as duas instâncias, a pública e a privada, possam ser incentivadas. Considerando que os recursos públicos para
investimentos sociais são cada vez mais escassos, a formação dessa parceria
poderá significar a viabilização de projetos de interesse para toda a
sociedade.
Terceirização nas pequenas cidades do Rio
Grande do Norte
Serviço
terceirizado (%) |
|
Coleta
de lixo domiciliar |
20 |
Coleta
de lixo Hospitalar |
16 |
Coleta
de lixo Industrial |
6 |
Varredura
de Rua e limpeza urbana |
19 |
Limpeza
dos Prédios da Administração municipal |
18 |
Segurança
dos prédios da administração Municipal |
5 |
Obras
civis |
54 |
Transporte
escolar |
47 |
Manutenção
de Estradas ou vias urbanas |
34 |
Serviços
de abastecimento de água |
43 |
Serviços
de esgotamento sanitário |
12 |
Fonte:
Perfil Municipal – IBGE, 2001
Na atualidade, torna-se imprescindível
que os municípios busquem alternativas para resolverem suas dificuldades
financeiras. Assim, é necessário que eles, os municípios, procurem implementar
a prática da responsabilidade fiscal. No caso das pequenas cidades, há sempre
alguns questionamentos que se colocam diante dessa nova realidade, haja vista que, nos últimos tempos, a construção da
autonomia municipal se faz a partir de uma construção endógena, ou seja, no
âmbito do município, sem que seja necessário recorrer ao Governo Federal. Para
tal, é preciso que exista uma arrecadação local. Surge-nos então uma questão:
seria isso possível nas pequenas cidades?
Sabemos que
o aumento da capacidade fiscal, bem como de gastos sociais, não aconteceu de
forma homogênea nos diversos municípios
brasileiros, muito menos entre os municípios de um mesmo estado. A emergência da municipalização pode, e vem se
configurando, ao longo dos últimos quinze anos, como um fator de desigualdades socioespaciais,
visto que, alguns municípios, devido às potencialidades
naturais e às de caráter
político-administrativo, têm apresentado resultados bastante satisfatórios no
que se refere ao melhor atendimento às demandas requeridas pela sociedade; enquanto que em outros permanecem
precárias condições de vida, colocando a população em situação de extrema
pobreza. Assim, somos induzidos a afirmar que a municipalização
foi um processo que, dentre outros resultados, contribuiu para reproduzir a
desigualdade social e espacial já existente, quando deveria solucioná-la.
É nesse contexto que o município deve
atender a um dos seus desafios imposto pela Constituição de 1988: promover a
gestão social em prol de um melhor desenvolvimento socioespacial. Emerge,
portanto, no âmbito de toda essa discussão, a proposta de desenvolvimento
local. Para os críticos do desenvolvimento local, essa proposta pode ser
entendida como uma transferência de responsabilidade; isto é, as ações que até
1988 eram da responsabilidade do Governo Federal passaram para os estados e
municípios. No entanto, sem correspondente suporte financeiro, bem como
capacidade de gestão, os municípios têm enfrentado grandes dificuldades para
atender as crescentes demandas da população. Devido à fragilidade financeira, a
maioria dos municípios tem assumido tão somente aspectos básicos da gestão
social, destacando-se a saúde e a educação; e, numa escala menor, a assistência
social e os direitos da criança e do adolescente.
A gestão social das políticas públicas
nas pequenas cidades do território potiguar
Quando falamos de gestão social nas
pequenas cidades, estamos praticamente nos limitando aos setores de saúde,
educação e assistência social; bem como aos direitos da criança e do
adolescente, pois são estes os setores que mais têm se destacado no âmbito do
processo de descentralização após Constituição de 1988, justificando assim a
nossa opção
A nossa pesquisa revelou que em todos os municípios do Rio Grande do Norte a
educação encontra-se municipalizada. Todavia, no caso específico das pequenas
cidades, o município é responsável apenas pelo Ensino Fundamental; e, em grande
parte, apenas pelas quatro primeiras séries deste nível. A nosso ver, isso se
deve a duas questões básicas: a falta de
condições infra-estruturais efetivas para que o município ofereça todas as
séries do Ensino Fundamental e a falta de
pessoal qualificado para suprir a demanda tanto das
disciplinas escolares quanto de atividades
técnicas atreladas à formação educacional. Para suprir essas deficiências, a maioria das
prefeituras assumiu o financiamento do transporte escolar, para que os alunos
dêem continuidade aos seus estudos em cidades próximas.
Ressaltamos que no Rio Grande do Norte
86% das 155 pequenas cidades, possuem o Ensino Fundamental completo. Porém, em
apenas 5% destas pequenas cidades encontramos escolas que oferecem o Ensino
Médio. Esse dado pode ser apontado como um dos principais responsáveis pelo baixo índice de
escolaridade existente nas pequenas cidades do Rio Grande do Norte.
Em nosso entendimento, essa realidade se constitui num
desestímulo aos estudantes, que têm de se deslocar para outras cidades, muitas
vezes correndo risco de vida, uma vez que, na sua maioria, os transportes
utilizados encontram-se em precárias condições. Da mesma forma, essa é uma
situação desconfortável para o município, que pode ver a sua estatística
educacional marcada pelo analfabetismo e pela evasão escolar, condições que
podem ser limitantes no processo de implementação de políticas sociais.
O setor de saúde, assim como o de
educação, encontra-se num nível de municipalização considerável quando a
questão é a atenção básica de saúde. Esta é da total responsabilidade dos
municípios, sendo então efetuada nas chamadas unidades básicas de saúde. Esse serviço
conta com recursos oriundos do Governo Federal, que são repassados diretamente
para os municípios. Os serviços de atenção básica constam de atendimentos de consultas e
algumas emergências, isto é, serviços que são classificados como de baixa
complexidade. Enquanto os atendimentos de média e alta complexidade são de
responsabilidade da unidade da Federação, cabendo a esta também fiscalizar a
efetivação dos serviços de atenção básica realizados pelos municípios.
No Brasil como um todo, o setor de saúde
apresenta carências imensuráveis, até porque, com o nível de pobreza social
existente, é muito difícil obter-se um padrão de saúde razoável. Porém, no caso
das pequenas cidades do Rio Grande do Norte, a situação ainda é mais grave.
Gravidade essa que está atrelada não somente às condições locais, mas àquelas
predominam no próprio estado.
Em 2004, segundo informação do Ministério
da Saúde, o Rio Grande do Norte era o estado do nordeste brasileiro com menor
cobertura em unidades básicas de saúde. Embora apresentando divergência em
relação aos dados apresentados pela Secretaria Estadual de Saúde, os
números que esta informação do Ministério da Saúde oferece deixa o estado em
última colocação no atendimento básico de saúde, uma vez que a média exigida é
de no mínimo 17,53 unidades básicas para cada 100 mil habitantes; e, no Rio
Grande do Norte, essa média é atualmente de 15,5 unidades pelo referido número
de habitantes.
Além do aspecto quantitativo não ser
suficiente, o aspecto qualitativo ainda torna mais vulnerável o sistema de
saúde no Rio Grande do Norte. Realidade essa que é reconhecida pelo Secretário
Adjunto da Secretaria da Saúde Pública – Sesap, Senhor
George Tarcísio, ao assinalar que as unidades básicas de saúde do estado Rio
Grande do Norte não funcionam plenamente, e aponta a falta de qualificação
profissional como um dos principais motivos. Os postos de saúde estão longe de
atender às demandas da sociedade de uma forma plena. Faltam medicamentos e
materiais indispensáveis a qualquer tipo de atendimento. O número de médicos
nas pequenas cidades é insuficiente, até porque a maioria dos municípios conta
apenas com apenas um médico, que tem de atender a todo o município, ou seja,
tanto a zona rural quanto a zona urbana. Em decorrência disso é que, quase
sempre, os postos de saúde localizados nas cidades contam com o atendimento
médico em dois ou três dias da semana, já que nos demais, ele tem que se
deslocar para a zona rural.
Essa realidade traz para o paciente um
longo período de espera, que, dependendo do problema de saúde ao qual o mesmo
está submetido, pode ser fatal. Isto porque, como os serviços prestados nos
postos de saúde são do tipo básico, os pacientes têm de ser encaminhados para
os centros que prestam serviços de maior complexidade.
No Rio Grande do Norte, os principais
centros de atendimento a casos de média e alta complexidade são: Natal e
Mossoró; enquanto Currais Novos, Caicó e Pau dos Ferros são considerados prestadores de serviços de média complexidade.
Ressaltamos que em algumas situações, os serviços especializados são
encontrados apenas
Todo esse quadro de referência pode ser
apontado como responsável pela precária realidade que impera no setor de saúde
no Rio Grande do Norte e, particularmente, nas pequenas cidades. No entanto, um
outro fator é por nós considerado como de grande responsabilidade por toda essa
situação. Estamos nos referindo à questão política. O processo de
descentralização não foi acompanhado por um igual processo de conscientização
política, não somente por parte dos gestores públicos, mas também pela própria
sociedade. No entanto, entendemos que a responsabilidade dos gestores públicos
é bastante significativa, uma vez que é necessário ter consciência da
importância de uma sociedade saudável na atual conjuntura política e econômica.
Porém, existe um fator que é extremamente negativo nesse contexto, que tem
interferido historicamente de forma bastante contrária nas ações de assistência
à saúde. Nas pequenas cidades, fica evidente a negligência no cumprimento das
atividades necessárias para garantir o atendimento adequado. Como expressão
dessa realidade, verificamos a aquisição de ambulâncias por parte das
prefeituras, que procuram com essa medida, mascarar a sua inoperância junto à sociedade.
O uso da ambulância não se faz apenas no
sentido do atendimento a urgências hospitalares, mas também como um importante
instrumento eleitoral, uma vez que a falta de conscientização e de informação
dos que têm utilizado esse serviço os faz entendê-lo como um benefício prestado
pelo prefeito, o que lhe impõe fidelidade partidária; deixando de ser visto
como uma obrigação que a prefeitura tem para com o cidadão, visto que a saúde está sob a responsabilidade municipal.
Tratando-se de assistência social e de
direitos da criança e do adolescente, podemos assinalar que, certamente, esse é
um aspecto que se apresenta ainda mais frágil que os demais já mencionados.
Transcorridos quinze anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente
e cinco anos da aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social, ainda é lento
o processo de institucionalização e de participação popular no âmbito dos
municípios do Rio Grande do Norte. Particularmente, essa situação ainda é mais
contundente quando se trata das pequenas cidades. As
experiências mais significativas que encontramos tem sido a “Casa da Família.
Trata-se de um programa que, embora não esteja vinculado diretamente à criança
ou ao adolescente, tem sido o seu público principal. Nesse caso, atendimentos
odontológicos, psicológicos e outros tipos de acompanhamento são feitos junto
às crianças e seus familiares.
Em nossa compreensão, essa realidade
decorre do fato de que a criação de mecanismos institucionais de participação popular,
por si, só não são suficientes. Para que ocorra um verdadeiro processo de
participação popular e, por conseguinte, uma nova forma de gestão, faz-se
mister que mudanças sejam efetivadas não apenas nas atitudes isoladas, mas,
principalmente, nas práticas dos sujeitos coletivos envolvidos, que assim serão
os responsáveis pela formulação e implementação
destas políticas.
Portanto, embora reconhecendo que nos
diversos setores aqui mencionados ainda não podemos falar de um verdadeiro
processo de descentralização política e, por conseguinte, falar de uma
participação popular plena e eficaz, entendemos que a criação de Conselhos
Municipais nas áreas de educação, saúde e assistência à criança e ao
adolescente, deve ser considerada como um passo importante nesse processo.
Embora os dados e informações
disponibilizados ainda sejam insuficientes, procuraremos fazer uma análise da
atuação e do funcionamento desses Conselhos, no âmbito das pequenas cidades do
Rio Grande do Norte. Para nós, os Conselhos Municipais são a forma pela qual se
permite uma maior participação da sociedade civil em algumas instituições do
Estado, sobretudo nos anos de 1990. Compreendê-los a partir dos seus limites,
possibilidades e contradições parece-nos um bom exercício para verificarmos o
alcance e as inovações do processo de democratização que é vivenciado pela
sociedade brasileira.
Os conselhos municipais nas pequenas
cidades do Rio Grande do Norte
No atual contexto político brasileiro,
marcado por uma proposta de descentralização política, compreender o papel dos
Conselhos Municipais nas pequenas cidades apresenta-se para nós como algo de
muita importância e de caráter bastante instigante. Isto porque, no cerne do
debate sobre a relação entre Estado e Sociedade no Brasil, os Conselhos
Municipais, enquanto instrumentos de gestão participativa, constituem-se em
espaços importantes na formulação e na fiscalização de políticas públicas.
Assim sendo, a participação popular e a descentralização política são questões
que não podem ser negligenciadas quando está em pauta a apreensão da real
natureza dos mecanismos institucionais de gestão participativa existentes ou
não nas pequenas cidades do Rio grande do Norte.
Felicíssimo (1994), analisa a
descentralização, segundo os seguintes eixos: administrativo, econômico e
político, tomando como referência dois modelos – o democratizante e o
neoliberal. O eixo administrativo diz respeito à transferência, dentro do
Estado, de funções, recursos e competências de um nível superior ou central
para um nível local (que pode ser estadual, municipal, empresas
descentralizadas etc). No que concerne ao eixo econômico, trata-se das
transferências de recursos e partes completas do aparelho do Estado para a
iniciativa privada. Essa prática se fundamenta em argumentos de que a
iniciativa privada é mais eficiente. Quanto ao eixo
político, este se refere a uma mudança dos
mecanismos de decisão política, resultando, portanto, numa maior democratização
do Estado e da sociedade (Felicíssimo, 1994: 47-49).
Na realidade, embora esses três eixos
sejam importantes nesse contexto, o eixo econômico pode vir a ser um limitante
no processo de descentralização e de
participação. Entendemos que não basta a autonomia política; a autonomia
financeira é fundamental. Embora tenham
conquistado uma certa autonomia política na Constituição de 1988, os municípios
não tiveram assegurada a autonomia econômica e financeira; ou seja, não lhes
foi dado o real poder para promover o desenvolvimento local, apesar de ter
ocorrido um aumento considerável dos valores repassados aos municípios
brasileiros, como já demos a conhecer. Entretanto, considerando a realidade
socioespacial existente nos pequenos municípios, o volume de recursos
repassados atualmente é insuficiente para que estes consigam responder às
inúmeras demandas e responsabilidades que lhes são atribuídas, em nome da
descentralização e da municipalização.
No que diz respeito à participação da
sociedade no processo de gestão, ainda não é evidente que os Conselhos
Municipais possam ser vistos como garantia de uma efetiva democratização das
decisões no âmbito das políticas públicas. Para nós, até o momento, os
Conselhos têm se constituído muito mais em uma formalidade legal, que garante o
repasse de recursos federais aos municípios, já que a maior parte dos Conselhos
vem se caracterizando como uma forma meramente simbólica de participação da
sociedade. Na maioria das pequenas cidades analisadas, a representatividade é
apenas de caráter formal, uma vez que ainda persiste o estilo centralizador e
autoritário nas decisões de governos municipais, com ações formuladas “de cima
para baixo”, cabendo aos Conselhos o papel de referendá-las.
Essa realidade pode ser atribuída a dois
fatores: a história política do país, marcada por vinte anos de uma ditadura,
que tinha nas suas bases de formação, o rompimento com qualquer ação
democrática, prevalecendo ações fragmentadas e descontínuas, distantes da
sociedade e de seus objetivos; e ao despreparo da sociedade no âmbito civil,
cultural e, principalmente, político para assumir a prática democrática e
cidadã, rompendo assim com todos os princípios até então estabelecidos.
Com relação ao segundo fator – o
despreparo da sociedade civil –, a pesquisa revelou que nas pequenas cidades, a
maior parte dos representantes da sociedade civil organizada, tais como:
associações de bairro, associações de jovens e de idosos, não possuem um bom
nível de informação, capacitação teórica, técnica e política necessárias ao
exercício da participação nos Conselhos. Isso, certamente, dificulta a
definição de políticas, principalmente do controle social. Embora os Conselhos
Municipais sejam, na atualidade, importantes fóruns de negociação coletiva, o
pouco interesse e a pouca compreensão por parte da população sobre o papel que
ela deve desempenhar nessa nova forma de definição e de encaminhamento das
políticas públicas também devem ser considerados, uma vez que dificultam a
consolidação de práticas participativas e democráticas.
Os mecanismos institucionais que permitem
a participação popular expressos na Constituição Federal e nas Leis Orgânicas
Municipais abre a possibilidade de que os interesses corporativos e
eleitoreiros sejam vetados, fazendo prevalecer o interesse público. É nesse
sentido que os Conselhos Municipais de gestão participativa devem atuar e vir a
ser uma garantia da participação da sociedade nos processos decisórios na
definição das políticas públicas para o desenvolvimento social. Entretanto, a
sociedade civil brasileira ainda se encontra pouco mobilizada, de modo que até
mesmo aqueles setores que, historicamente se apresentavam como setores
organizados, expressam, na atualidade, um desconhecimento da importância dos
Conselhos enquanto mecanismo de controle social.
A existência de Conselhos é no atual
contexto de descentralização política no Brasil, uma das condições básicas para
que o município receba recursos dos governos federal ou estadual. Esse fato é o
que explica a existência de inúmeros Conselhos,
merecendo destaque aqueles cujas leis complementares já avançaram na sua
regulamentação, como é o caso dos Conselhos de saúde, de educação, de
assistência social e da criança e adolescente.
Diante do exposto e na tentativa de
enfrentar os desafios colocados, realizamos a pesquisa sobre o perfil dos
Conselhos Municipais de gestão participativa nas áreas de saúde, educação,
assistência social e direitos da criança e do adolescente, num caráter
eminentemente exploratório, constituindo-se numa iniciativa que busca subsidiar
o enfrentamento dos impasses observados em torno da participação nos referidos
Conselhos.
[1] No presente estudo, as pequenas cidades
correspondem àquelas que possuem menos de 20000 habitantes.
[2] No Brasil, as experiências de
descentralização intensificadas a partir da Constituição de 1988 fazem parte do
processo de reforma do Estado. Com isso, estados e, principalmente, municípios
foram dotados de maior autonomia política e se constituíram nos protagonistas do
planejamento, da reestruturação urbana e da implementação de políticas públicas
setoriais.
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© Copyright Rita de Cássia da Conceição Gomes, Anieres Barbosa da Silva, Valdenildo Pedro da
Silva 2005.
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Scripta Nova, 2005
Ficha
bibliográfica:
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número 194
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