Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] Nº 94 (108), 1 de agosto de 2001 |
MIGRACIÓN Y CAMBIO SOCIAL
Número extraordinario dedicado al III Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
IMIGRANTES DESPORTISTAS: OS ALEMÃES NO SUL DO BRASIL
Gilmar Mascarenhas de
Jesus
Departamento de Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Imigrantes desportistas: os alemães no sul do Brasil. (Resumo)
O significativo aporte de imigrantes europeus no Brasil, no final do século XIX, em muito contribuiu para inovações no plano sócio-cultural. O Rio Grande do Sul (estado situado no extremo sul do país) recebeu o maior contingente de alemães, onda migratória que foi de fundamental importância na introdução da vida esportiva. O objetivo deste trabalho é dimensionar e identificar as razões desta contribuição, considerando a "bagagem desportista" daqueles imigrantes e sua posição proeminente na sociedade gaúcha naquele período. Quanto aos efeitos da presença alemã, centraremos o foco no êxito alcançado pelo Rio Grande do Sul no processo de adoção de uma inovação esportiva, o futebol.
Palavras-chave: imigração alemã / Rio Grande do Sul (Brasil) / inovação esportiva.
Sportsmen immigrants: the Germans in the southern Brazil (Abstract)
In the late nineteenth century, the arrival of European immigrants in significant numbers in Brazil has greatly contributed for social and cultural innovations. Rio Grande do Sul (the southernmost state of Brazil) received the bigger effective of German immigrants in the country, and such wave was of great importance for the introduction of sports in social life. The aim of this article is to appraise and to identify the reasons for the important role played by the Germans. To do it we consider their sports tradition and their prominence in the society of Rio Grande do Sul at that moment. To verify the effects of German presence, we will focus on the successful process of adoption of a sports innovation, the football.
Key-words: German immigration / Rio Grande do Sul (Brazil) / sport innovation.
No censo de 1872, os alemães figuram como o terceiro grupo estrangeiro mais numeroso no Brasil, ficando atrás somente de portugueses e "africanos" (estes tomados assim indistintamente). Portanto, excluindo aqueles segmentos basilares para a clássica formação colonial brasileira, isto é, considerando-se somente os novos aportes migratórios, frutos da política do Império, os alemães comparecem em primeiro lugar e com destaque absoluto frente às demais nacionalidades (Alencastro e Renaux, 1997). No Rio Grande do Sul, estado que recebeu o maior contingente de alemães, a onda migratória recobriu progressivamente o território e adicionou à formação sócio-espacial uma nova camada de técnicas, relações sociais, atitudes e valores.
Argumentaremos que foram os alemães de inequívoca importância na implantação de uma "base esportiva", que por fim favoreceu o êxito na adoção do futebol no Rio Grande do Sul, doravante designado pela sigla RS (1). Antes de mais, cumpre alertar que usaremos indistintamente os termos "alemão", teuto ou germânico para designar instituições mas também indivíduos, não importando se de nacionalidade brasileira, desde que descendente de alemães. Pois naquele momento, os chamados "teuto-brasileiros" comportavam-se de forma a preservar e difundir sua germanidade (no uso da língua, nas atitudes, no espírito associativo etc.), procedimento aliás comum no contexto das grandes ondas migratórias e de afirmação das identidades nacionais (2). A colônia alemã no RS, como em geral os grupos imigrantes em diversas partes do mundo, se empenhou particularmente no sentido de fortalecer os laços com a terra pátria e, partindo de determinada concepção de germanismo, tratou de construir sua identidade em terras alheias, inclusive através de associações de cunho esportivo, objeto de nossa atenção.
O texto se divide em três segmentos. Inicia com a avaliação
da importância dos esportes na identidade cultural alemã,
para a seguir dimensionar o peso e a presença desta comunidade na
sociedade gaúcha. Por fim, a partir da base esportiva, verificamos
os efeitos da contribuição germânica na difusão
do futebol no RS.
Imigração alemã: desportistas em potencial
Durante séculos, e atravessando todo a Idade Média, a atividade corporal para fins de desenvolvimento muscular e aprimoramento estético esteve completamente ausente da pauta de comportamentos ditada pelas instituições dominantes. Mais tarde, a retomada de valores greco-romanos a partir do Renascimento inicia um lento processo de redefinição de atitudes, que entretanto somente vai adquirir maior envergadura no século XVIII, no bojo do Iluminismo. No conjunto de reflexões e tratados pedagógicos desenvolvidos com vistas ao estímulo e à sistematização do exercício físico, os alemães aparecem destacadamente e desde o início. Ao tratar do renascimento da educação física, Vítor Oliveira (1994) posiciona a "corrente alemã" como a mais importante de todas, realçando inclusive seu pioneirismo, a partir de 1774, na fundação de estabelecimentos escolares onde a ginástica e as disciplinas "intelectuais" tinham ambas o mesmo peso curricular (Oliveira, 1994:39), algo então revolucionário. Segundo Bill Murray (1994:56), nenhuma outra nação européia organizou sua vida esportiva antes da Alemanha.
O precoce desenvolvimento de uma pedagogia incentivadora da educação física entre os alemães tem íntima relação com interesses militares. Após uma primeira fase de inspiração helênica, verifica-se a partir do início do século XIX a prevalência de um modelo massificado, "social-patriótico", no qual o exercício corporal se dirige a toda a população, escolarizada ou não, tentando catalisar um sentimento nacionalista pan-germânico. Naquele momento, esporte era "treino político", segundo Eckardt e Gilman, (1996:129). O contexto da derrota sofrida pelos prussianos para o exército napoleônico, que em 1806 ocupou Berlim, teria impulsionado este movimento de re-orientação do sentido da atividade física regular (Oliveira, 1994:41).
Voltemo-nos para o Brasil. Em 1824 se verifica o início da colonização oficial alemã no Rio Grande do Sul. Por volta de 1840, os colonos já superavam uma fase inicial de mera agricultura de subsistência, iniciando a produção em grande escala para abastecer Porto Alegre, a capital do estado. Com efeito, é a partir de 1870/1880 que se manifesta mais claramente a forte ascensão econômica de grupos germânicos, controlando dois setores fundamentais da economia local: a nascente indústria e o grande comércio (Pesavento, 1980).
O fato de prevalecer nas colônias alemães um forte espírito associativo colaborou na formação e disseminação de sociedades de ginástica e clubes de caça e tiro (Alencastro e Renaux, 1997:325-6). A título de ilustração, registre-se que desde o início da colonização no RS, praticavam regularmente um jogo tradicional alemão, o "bolão", criado na Idade Média e similar ao boliche (Kreling, 1984). Este é justamente o assunto a seguir: os esportistas alemães e seu lugar na sociedade, formando uma verdadeira "base esportiva" no RS. Devemos antes, todavia, afirmar que conceituamos a base esportiva como o resultado local de determinado acúmulo de condições gerais de prática fisicultural favoráveis ao advento de inovações esportivas. Tais condições podem se manifestar em três níveis:
1) o físico (material ou espacial): geração de objetos geográficos/equipamentos destinados à prática esportiva, ou adequação/apropriação de áreas (praças, parques, praias etc) para tal fim.
2) o social (comportamental): existência de círculos sociais e instituições (clubes, por exemplo) promotoras de esportes; estas associações definem uma rede social na qual circulam informações esportivas e pessoas interessadas na prática esportiva.
3) o simbólico: valores que definem o esporte como prática
positiva, isto é, benéfica, moderna, civilizada etc. Aspecto
fundamental para que as iniciativas e eventos sejam bem recebidos no lugar.
Os alemães e a formação da base esportiva no RS
Aqueles alemães que atravessaram o Atlântico aqui encontraram uma sociedade de hábitos sedentários, avessa aos exercícios físicos. Ademais, a cidade colonial brasileira, quase privada de poder, dinamismo e vida cultural, pouco contribuiu para o desenvolvimento de uma rede de sociabilidades sobre a qual pudessem mais tarde germinar as associações esportivas. Jean Baptiste Debret, membro da missão de artistas franceses ao Brasil, nos deixou registrado que o único esporte praticado no Brasil Colonial é a caça. Havia ainda a eventual tourada, mas Fernando de Azevedo (1930:25) admite que até 1888 nossa prática esportiva era ínfima, pois "a vida social, tolhida de preconceitos, não estimulava os exercícios físicos".
Era escasso o hábito de sair de casa, exceto a freqüência socialmente obrigatória à missa dominical. Seguindo o desenho urbano medieval, os espaços públicos apresentavam acanhada dimensão e não propiciavam condições para eventos coletivos. Outros aspectos como o mau cheiro, o tráfego barulhento e perigoso dos carroceiros, além do péssimo estado do calçamento das ruas, tornavam os espaços públicos muito pouco convidativos, sobretudo para as senhoras brancas, que praticamente viviam enclausuradas em seus lares. A atitude das classes dominantes é bastante clara neste aspecto: deixar evidente a profunda diferença para com aqueles que, desprovidos de qualquer nobreza, necessitam trabalhar com base no esforço muscular.
No sul do Brasil, todavia, um amplo movimento começa a reverter este quadro. Segundo Ostermann (1992), até o início do século XX os alemães se espalharam por "todos os rincões" do RS, primeiramente como mascates, e a seguir como lojistas, e assim, segundo o autor, muito contribuíram para a difusão da prática esportiva. Nas palavras de Paul Singer, formaram-se verdadeiras dinastias germano-riograndenses, a controlar a importante navegação fluvial (vimos que a integração ferroviária somente viria a se consumar no século XX), a formar conglomerados industriais e tornar-se os grandes agentes de loteamento urbano na capital gaúcha. Sem dúvida, Porto Alegre na República Velha é a "cidade dos alemães" (Singer, 1974:161-164), condição que ao nosso ver influirá decisivamente no âmbito esportivo. Aliás, se Paul Singer tivesse observado o panorama esportivo porto-alegrense de então, este muito bem serviria para endossar a avaliação do autor quanto ao poderio germânico na cidade (3).
A notória influência alemã propaga-se nos hábitos e costumes, incluindo-se aqui a vida atlética e esportiva (Oliveira, 1996:159). Já em 1867 é criada em Porto Alegre a primeira "sociedade de ginástica" no Rio Grande do Sul, a Deutscher Turnverein, (que perdura até nossos dias, com o nome de Sociedade Ginástica Porto-alegrense - SOGIPA) introduzindo a clássica metodologia alemã de exercícios físicos. Para Jean Roche (1969:645) tal sociedade cumpriu importante papel na formação de desportistas, atuando como "viveiro de campeões e campeãs riograndenses", que "viu surgir" o atletismo, o escotismo, o futebol etc.
Segundo Tesche (1998:376), a adesão à prática da ginástica foi significativa nos estabelecimentos educacionais da colônia alemã, pois as escolas eram regularmente supridas por pastores ou professores formados na Alemanha, seguindo por conseguinte o modelo pedagógico lá adotado (4). Os indivíduos egressos destes estabelecimentos estavam certamente mais aptos que seus contemporâneos a desenvolver a prática esportiva, por nela reconhecer um grande papel no desenvolvimento moral e pelo valorizado condicionamento físico obtido. Mais tarde, com a continuidade do fluxo migratório em direção ao Brasil, vão chegando alemães já conhecedores e praticantes dos "esportes modernos", iniciando assim uma difusão mais abrangente da prática esportiva.
Por seu elevado custo, o remo figurava entre as modalidades esportivas restritas às camadas sociais mais favorecidas. E no Rio Grande do Sul tal esporte foi essencialmente introduzido por alemães. Foi uma "guarnição hamburguesa (5)" a grande vitoriosa na Regata Imperial realizada em 1865, por ocasião da visita de Dom Pedro II à capital gaúcha (Hofmeister, 1978:11). A prática do remo vai progressivamente tornando-se mais regular, e em 1888 funda-se o Ruder-Club, (ruder é remo, em alemão) considerado a primeira associação esportiva do Rio Grande do Sul, fato destacável numa época em que a mocidade porto-alegrense "desconhecia os esportes náuticos", que tampouco eram "recomendados pela ciência" como importantes na formação física (Hofmeister, 1978:12). Ao mesmo modo, a Federação Gaúcha de Remo, criada em 1894, foi a primeira entidade estadual de remo no Brasil (Melo, 1999:108). Em 1898, registra-se a realização do "primeiro campeonato estadual de remo". Neste certame, todas as equipes são oriundas da colônia alemã, sendo consequentemente o alemão a língua oficial das atas (Hofmeister, 1978).
Não podemos omitir o Tiro Alemão, entidade esportiva muito difundida pelos alemães em todo o RS: na zona colonial, "não havia picada sem sociedade de tiro" segundo Roche (1969:647). Na cidade de Rio Grande, principal porto gaúcho de então, tal agremiação reúne inclusive operários da União Fabril, o maior estabelecimento industrial gaúcho de então (Copstein, 1982:26). Nela havia espaço físico adequado e ambiente propício à prática do futebol. Não por acaso, ali mesmo foram realizadas as primeiras experiências futebolísticas em todo o Rio Grande do Sul (6). Mas um dado a favor da contribuição alemã ao desenvolvimento dos esportes, e do futebol em particular. Aliás, podemos levantar a hipótese de que os alemães foram menos "fechados" em relação ao meio social circundante que os ingleses, em sua arrogante posição imperial de senhores do mundo civilizado (7). Neste sentido, teriam sido mais interativos e portanto agentes mais eficazes na difusão de inovações culturais. Dentre outros exemplos que aqui serão citados, Oliveira (1996:163) observou que em Porto Alegre havia dois clubes de tênis: o Albion, completamente restrito aos membros da colônia inglesa, e o dos alemães, a aceitar o ingresso de brasileiros.
O ciclismo também merece alusão. Difundiu-se amplamente
na Europa a ponto de ser considerado o primeiro esporte de massa na escala
continental (Hobsbawm e Ranger, 1984:188-9), pois os fabricantes de bicicleta,
divulgando a grande mobilidade do novo equipamento, conseguiram alçá-lo
à condição de um dos símbolos máximos
da liberdade individual. Na imprensa do RS a primeira aparição
do então chamado "velocípede de duas rodas" ocorre em 1895,
e este é rapidamente assimilado pelos jovens, que organizam excursões
coletivas aos arredores de Porto Alegre. Dois anos depois já se
realiza a primeira corrida municipal, disputada pelas ruas da cidade. Duas
sociedades ciclísticas rivalizam-se na cidade. Uma delas, a Rodforvier
Verein Blitz, é totalmente alemã e está plenamente
consolidada, sendo proprietária de um velódromo muito bem
localizado, na rua Voluntários da Pátria (Franco, 1988:113).
As redes sociais que articulam o ciclismo em Porto Alegre estarão
na base do advento do futebol, inclusive através da participação
direta na fundação dos primeiros clubes da capital: o Fuss
Ball Club surge por iniciativa dos ciclistas da Rodforvier Verein
Blitz. Sobre a contribuição alemã na adoção
do futebol, trataremos a seguir.
Os alemães e o advento do futebol no RS
Na Alemanha, segundo Allen Gutmann (1994), no contexto de acirrado nacionalismo do final do século XIX, as elites mantiveram-se inicialmente refratárias à adoção do futebol, preferindo oficialmente a ginástica e as modalidades tomadas como patrióticas, supostamente menos competitivas e mais "pedagógicas". Entretanto, fora das escolas o futebol foi rapidamente assimilado a partir de 1890, gerando clubes e mais tarde ligas regionais. Finalmente, funda-se em 1900 a liga nacional, a Deutscher Fussball-Bund. O caráter de adoção tardia, se comparada a países como França e Itália, contou entretanto com ingrediente peculiar: a ampla e decisiva adesão das classes trabalhadoras (Guttmann, 1994:47-9). Para o presente estudo, o que importa é o fato de que na primeira década do século XX o futebol encontra-se amplamente "nacionalizado" e assimilado na Alemanha, o que facilita sua adoção por parte da colônia germânica no Brasil.
Com efeito, para o êxito verificado na introdução do futebol no RS acreditamos que os alemães estabeleceram algumas bases fundamentais, a exemplo aliás do que se pode verificar em diversas outras localidades, como Curitiba, São Paulo e Montevideo (8). Em se tratando de uma inovação comportamental sujeita a alto índice de rejeição na sociedade brasileira na virada para o século XX, os alemães cumpriram o papel de preparar o "terreno" para a sua fácil assimilação e aceitação.
O S.C. Rio Grande, o primeiro clube de futebol criado no RS, contou com participação majoritária e decisiva de alemães, pois foi um hamburguês chamado Minnemann seu principal articulador e eram de origem germânica a grande maioria dos sobrenomes dos fundadores do clube. Sabemos que a cidade de Rio Grande era foco de atração de comerciantes alemães enriquecidos nos circuitos coloniais (9). Segundo Mulhall (1974:48), ingleses e alemães dominavam o comércio principal da cidade já em 1871, e o setor industrial também foi alvo dos capitais germânicos acumulados na expropriação do pequeno produtor da zona colonial. No final do século XIX, os alemães em Rio Grande representam um percentual insignificante da população urbana, mas são dominantes no comércio de importação e no setor fabril (têxtil, chapéu, charutos etc), configurando assim um segmento muito influente na cidade (Roche, 1969:192).
E o SC Rio Grande nasceu justamente a partir do "Tiro Alemão" e do Clube Germânia, conforme se nota a seguir:
"Foi por uma nota redigida em alemão que os moradores de Rio Grande, pelo menos os da colônia germânica, souberam da existência daquele esporte novo, em que 22 homens tentavam chutar uma bola de couro. Assinado pelo alemão Johannes Minnemann, o convite anunciava que haveria um jogo de futebol às 9h30min do dia 14 de julho de 1900, no campo do Clube de Tiro Alemão. Havia ainda um aviso: após a partida seria discutida a criação de um clube em Rio Grande (10)".
O advento do futebol no RS também tem, obviamente, relação
com a presença de ingleses. Eram eles os principais importadores
dos produtos das charqueadas platinas (Haesbaert e Moreira, 1980:84), e
sobrenomes como Lawson, Mackenzie e Robinson circulavam com prestígio
na Câmara do Comércio em Rio Grande. Esta pequena colônia
inglesa, que por tradição sabemos fechada a influências
culturais locais, reunia-se periodicamente, no estilo club, para
suas típicas diversões e encontros sociais, incluindo-se
o futebol na última década do século XIX. Em suma,
os ingleses trouxeram a inovação (a informação,
as regras e os equipamentos), e os alemães se empenharam na fundação
do clube pioneiro, particularmente nas figuras de Johannes Christian Moritz
Minnemann e Richard Völkers. Miguel Ramos (2000) sugere que nos primeiros
anos do clube os ingleses garantiam a importação de bolas,
uniformes e outros apetrechos enquanto os alemães ofereciam a sede
social, o maior número de sócios (não por acaso as
atas eram redigidas em alemão) e a perspectiva de expansão
através da abertura gradual à participação
de outras etnias, atitude aparentemente incomum entre ingleses.
Na capital, vemos a fundação do Grêmio Foot Ball
Porto Alegrense no mesmo dia, 15 de setembro de 1903, que era criado o
Fuss-Ball Club de Porto Alegre. Ambos amplamente dominados pela presença
germânica. O Fuss-Ball ("futebol" em alemão), conforme já
dito anteriormente, foi fundado por membros da Rodforvier Verein Blitz,
e
era completamente fechado à participação de indivíduos
externos à esta comunidade. O Grêmio FBPA, por sua vez, se
apresentava como uma espécie de clube alemão sem restrições
absolutas a elementos alheios àquela comunidade, pois dentre os
seus 23 fundadores, havia quatro nomes não-germânicos (Coimbra
e Pinto, 1994; Pires, 1967). Trata-se da reprodução, no âmbito
particular do futebol, de uma situação que se generalizava
na vida social da Porto Alegre de então, a "cidade dos alemães".
Conclusão
Os fluxos migratórios internacionais tendem a colocar em contato direto culturas completamente distintas. Neste contato, tanto os migrantes absorvem atitudes e valores da nova pátria como também nela aportam os seus próprios, propiciando processos de inovação sócio-cultural. No Brasil, a corrente alemã foi particularmente volumosa, em especial no Rio Grande do Sul. Ao encontrar uma sociedade imersa no sedentarismo, herança do regime escravista, os alemães inovaram ao aportar seus princípios fisiculturais e sua tradição associativa, preparando o terreno para que o RS fosse um dos primeiros estados brasileiros a se destacar na prática esportiva organizada.
Devido em grande parte à contribuição cultural alemã, o futebol, enquanto novidade européia, encontrou no RS rápida aceitação, diferentemente do que podemos perceber em outro estados e regiões brasileiras. Ao abordar o problema, preocupamo-nos tanto com a influência direta (na criação de clubes e ligas futebolísticas por agentes alemães) quanto com o que podemos qualificar como influência indireta, isto é, na formação de uma base esportiva na cidade.
Em síntese, a contribuição alemã à formação de uma base esportiva e ao advento do futebol no RS se ampara nos seguintes elementos:
1) dispondo de elevados recursos materiais, os alemães se organizam em associações (inclusive clubes e ligas) que reforçam sua identidade no lugar e alimentam o desejado espírito patriótico;
2) naquele contexto, os alemães são praticantes de esportes em grande escala, atitude inovadora ao contrastar-se com o sedentarismo da herança cultural lusitana e calcado no preconceito ao esforço muscular de nossa sociedade escravista;
3) enquanto numerosa e proeminente, a comunidade germânica no RS afeta a dinâmica social e está em condições de liderar processos de difusão de inovações;
4) ao exibir força, coragem e seu poderio nas competições esportivas, os alemães legitimam sua supremacia econômica, ao mesmo tempo que se qualificam como arautos da modernidade;
5) no final do século XIX os alemães edificaram uma ampla
base esportiva, sobretudo nas cidades de Rio Grande e Porto Alegre, facilitando
a adoção posterior do futebol. Estiveram diretamente envolvidos
na fundação dos primeiros clubes de futebol nas duas cidades
supracitadas.
Notas
1. O êxito gaúcho no contexto do futebol brasileiro a que nos referimos é o seu pioneirismo, que aliás extrapola em muito o fato de possuir o mais longevo clube de futebol em atividade no Brasil. Verificamos por exemplo que o RS se antecipou a praticamente todos os demais estados brasileiros na organização em 1920 de um campeonato estadual de ampla cobertura espacial. Naquela época, nos demais estados onde já se organizavam campeonatos, a maioria ainda em suas edições iniciais, a competição praticamente se restringia aos clubes da capital. (Mascarenhas, 2001).
2. Sobre a crescimento inédito do peso da "questão nacional" a partir de 1870, sobretudo entre os povos europeus, consultar o trabalho fundamental de Eric Hobsbawm (1991).
3. O viajante irlandês Michael Mulhall esteve em Porto Alegre em 1871, e definiu a cidade como um "principado alemão" no Brasil (Mulhall, 1974:57).
4.A título de exemplificação, em 1893 um colégio em São Leopoldo exigia nos exames finais a demonstração da ginástica.
5. Segundo Anatol Rosenfeld (1993:76), em Hamburgo se pratica regularmente o remo desde 1836.
6. Zero Hora, 19/07/1999, extraído do primeiro capítulo da série "Centenário do Sport Club Rio Grande".
7. Também pode influir neste diferenciado comportamento a própria perspectiva quanto à permanência no lugar: os alemães são colonizadores, enquanto muitos ingleses estão "de passagem", construindo ferrovias e implantando serviços urbanos.
8. No Uruguai, dentre os quatro clubes fundadores da primeira liga de futebol, em 1900, estava o DeutscherF.K. cercado por três equipes inglesas. No Brasil, vale mencionar o empenho de Hans Nobiling, que jogava futebol em Hamburgo e chegou em 1897 a São Paulo, fundando dois anos depois um clube exclusivo para alemães, o S.C. Germania (Mazzoni, 1950:24). Mais efetiva é a contribuição alemã em Curitiba, cabendo a introdução do novo esporte a F. Essenfelder, reunindo para este fim colegas do clube de ginástica (também alemão) Turnverein em 1909, formando um time para desafiar os ingleses da cidade de Ponta Grossa (Chrestenzen e Machado, 1991:2).
9. Sobre a crescente influência alemã na economia urbana, Fortunato Pimentel (1944:113) observa que entre 1844 e 1871, na presidência da prestigiada Câmara de Comércio de Rio Grande, apenas se nota um único alemão, ao passo que entre 1872 e 1896 esta comunidade dominará oito gestões, alternando cinco ricos comerciantes na presidência desta poderosa instituição.
10. Zero Hora, 19/07/1999, Encarte Especial
Centenário
do Sport Club Rio Grande. Grifos de nossa autoria.
Bibliografía
ALENCASTRO, L. F., e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: NOVAIS, F. (org.) História da vida privada no Brasil. Volume 2: pp. 291-335, São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
AZEVEDO, F. A Evolução do Esporte no Brasil. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1930.
BARROS, E., e LANDO, A. Capitalismo e Colonização: os alemães no Rio Grande do Sul. In DACANAL, J.H. RS: Migração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
CHRESTENZEN, L. e MACHADO, H. Futebol. Paraná. História. Curitiba: Dígitus, 1991, 654 p.
COIMBRA, D. e PINTO, A. História dos Grenais. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994.
COPSTEIN, R. Evolução urbana de Rio Grande. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. 122, pp.43-68, 1982.
ECKARDT, & GILMAN. A Berlim de Bertold Brecht. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1996.
FRANCO, S. Porto Alegre: Guia Histórico. Porto Alegre: Ed. da UFRGS e Pref. Municipal de P.Alegre, 1988.
GUTTMANN, A. Games and Empires: modern sports and cultural imperialism. N.York: Columbia University Press, 1994. 275 p.
HAESBAERT, R. e MOREIRA, I. Espaço e sociedade no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, 109 p.
HOBSBAWM, E. Nações e nacionalismos desde 1870. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
HOFMEISTER, C. Pequena História do Remo Gaúcho. Porto Alegre: CORAG, 1978.
KRELING, H. Bolão: os esportes nas colônias alemães no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1984.
MASCARENHAS, Gilmar. A via platina de introdução do futebol no RS. LECTURAS: Educación Física y Deporte - Revista Digital, 2000 - Buenos Aires - Año 5 - N° 26.
MASCARENHAS, Gilmar. Considerações teórico-metodológicas sobre a difusão do futebol. Scripta Nova. Revista Eletrónica de Geografia y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, 2000, vol. 4, numero 69 (23). [http://www.ub.es/geocrit/sn-69(23).htm]
MASCARENHAS, Gilmar.. A bola nas redes e o enredo do lugar. Uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado em Geografia Humana, Universidade de São Paulo, 2001 (a ser defendida em junho de 2001).
MAZZONI, T. História do Futebol no Brasil. São Paulo: Ceia. 1950.
MELO, V. "Cidade Sportiva": o turfe e o remo no Rio de Janeiro (1849-1903). Tese de doutorado em Educação Física, Universidade Gama Filho, 1999.
MULHALL, M. O Rio Grande do Sul e suas colônias alemães. Porto Alegre: Bels / Instituto Estadual do Livro, 1974.
MURRAY, B. Football: a history of the world game. Aldershot Hants: Scolar Press, 1994, 297p.
OLIVEIRA, P. G. Esportes trazidos pela imigração, in: FISCHER, L. e GERTZ, R. Nós, os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1996.
OLIVEIRA, V. M. O que é Educação Física. São Paulo: Brasiliense, 1994.
OSTERMANN, R. C. Frei de olhos verdes. In: (v.a.) Cultura em movimento: a presença alemã no RS. Porto Alegre: Riocelli, 1992.
PESAVENTO, S. J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.
PIMENTEL, F. Aspectos gerais do município de Rio Grande. CNG/IBGE, edição comemorativa do centenário da Câmara de Comércio de Rio de Grande, 1944.
PIRES, Edison. A História do Gremio FBPA. Porto Alegre: Firmo, 1967.
RAMOS, M. Sport Club Rio Grande: centenário do futebol brasileiro. Rio Grande: Editora da FURG, 2000, 211 p.
ROCHE, J. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969.
ROSENFELD, A. Negro, Macumba e Futebol. São Paulo: EDUSP/Unicamp/Perspectiva, Coleção Debates, vol. 258, 1993.
SINGER, P. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Nacional, 1977, 2ª edição, 377 p.
TESCHE, L. A Educação Física como meio de preservação cultural alemã no RS. in VI Congresso Brasileiro de Historia do Esporte, Lazer e Educação Física. Rio de Janeiro, UGF, 1998, pp 372 -377.
WEISS, G. Esporte e Identidade Regional. Redes,
Santa Cruz do Sul, vol. 1, p. 201-201, julho de 1996.
© Copyright: Gilmar Mascarenhas de Jesus, 2001
© Copyright: Scripta Nova, 2001