REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Nº 93, 15 de julio de 2001 |
ESPAÇO GEOGRÁFICO UNO E MÚLTIPLO
Dirce
Maria Antunes Suertegaray
Departamento de Geografia,
Universidade Federal do Rio Grande
doSul.
Porto Alegre, Brasil.
O presente artigo pretende realizar uma compreensão objetiva dos conceitos balizadores da ciência geográfica. Para isso trabalhamos com as categorias geográficas de espaço, território, paisagem, lugar e ambiente. O espaço geográfico é encarado como "uno e múltiplo". O objetivo final do artigo é construir um corpo referencial que expresse as possibilidades análiticas da Geografia, principalmente com relação à questão ambiental.
Palavras-chave: espaço / território / paisagem / lugar / ambiente.
This paper seeks to accomplish an objective understanding of the geography's primordial concepts. For that, we have worked with the geographical categories of space, territory, landscape, place and environment. The geographical space is considerated as "unitary and multiple". The mainly objective of the paper is to build a referential corpus that expresses the geography's analytical possibilities, mainly with relationship to the environmental subject.
Key-words: space / territory / landscape / place / environment.
Fundamenta-se este texto numa preocupação e numa tentativa. A preocupação relaciona-se com a necessidade de uma compreensão mais objetiva e sistemática dos conceitos que denomino balizadores da Geografia. A tentativa relaciona-se com nossa proposição neste texto, qual seja: a partir de uma conceitualização, construirmos um corpo referencial que expresse possibilidades analíticas da Geografia, entre elas a relativa à questão ambiental.
Nosso pensamento é de que a Geografia se expressou e se expressa suportada por um conjunto de conceitos que, por vezes, são considerados como equivalentes, a exemplo do uso do conceito de espaço geográfico como equivalente ao de paisagem, entre outros. De nossa parte percebemos que os conceitos geográficos expressam níveis de abstração diferenciados e, por conseqüência, possibilidades operacionais também diferenciadas.
Optamos trabalhar neste artigo com os conceitos de espaço geográfico, paisagem, território, lugar e ambiente. Outros conceitos poderiam ser também trabalhados, a exemplo do conceito de região. Escolhemos estes em razão de nossas preocupações no âmbito da temática com a qual trabalhamos: a questão ambiental.
Partimos então da seguinte consideração: a Geografia como área de conhecimento sempre expressou (desde sua autonomia) sua preocupação com a busca da compreensão da relação do homem com o meio (entendido como entorno natural). Neste sentido ela se diferenciou e se contrapôs as demais ciências, que por força de seus objetos e das classificações, foram individualizadas em Ciências Naturais e Sociais. Este paradoxo acompanha a Geografia, ainda que hoje possa ser seu privilégio. Constitui um paradoxo, porque, na medida em que na Modernidade se expandiu a racionalidade e se constituiu a ciência moderna, o caminho foi a disjunção, a separação, a compartimentação do conhecimento; a divisão entre as ciências naturais e as ciências sociais.
Em decorrência, a Geografia foi impossibilitada (pelo caminho que assumiu) de construção unitária e mesmo de um lugar preciso entre as ciências. Isto, nos parece, dificultou, para a Geografia, a construção de um método, pois propunha-se a unidade natureza-sociedade num contexto científico onde estas dimensões disjuntas perseguiam métodos diferentes. Hoje esta perspectiva de conjuntividade inicia seus alicerces, para além da Geografia no âmbito das demais ciências.
Partindo destas breves considerações, passemos aos conceitos. Considerando o exposto, entendo que o campo de atuação da Geografia está balizado pelo conceito de espaço geográfico. Constitui este, o conceito mais abrangente, por conseqüência o mais abstrato.
Ao longo da história da Geografia, espaço geográfico foi concebido de diferentes maneiras, entretanto, não é nosso objetivo retomá-las. Tomamos como referência para nossas finalidades, o conceito expresso por Milton Santos (1997) no qual o espaço geográfico constitui "um sistema de objetos e um sistema de ações" que:
Faz-se necessário, então, refletir sobre como a Geografia concebeu e concebe estas categorias na construção do conceito de espaço geográfico.
Iniciamos trabalhando com o conceito de natureza. Desde sua autonomia enquanto ciência, a concepção de natureza veiculada pelos geógrafos constitui-se como algo externo ao homem. Natureza são os elementos ou o conjunto dos elementos formadores do planeta Terra, ou seja, ar, água, solos, relevo, fauna e flora. Esta separação constitui herança, como de resto nas demais ciências, das idéias de Descartes de separação entre natureza e homem, dessacralização da natureza, transformando-a em objeto e o homem em sujeito conhecedor e dominador desta.
Mesmo anteriormente à autonomia da Geografia, na introdução de sua obra Cosmos (1862), Humboldt, diferenciava a análise da Terra sob duas formas: a da Física, cujo objetivo seria o estudo dos processos físicos reduzidos a princípios abstratos e a da geografia física, ou o estudo da articulação dos elementos constituintes da configuração do planeta. (Humboldt, 1862, in Mendoza et al, l982).
Não obstante, a Geografia, mesmo pensada, por vezes, como estudo da natureza enquanto paisagem natural, portanto algo independente do homem, ao se tornar autônoma propõe uma concepção conjuntiva. Os fundadores da Geografia, a exemplo de Ritter, Ratzel e La Blache, entre outros, propõem ainda que sob formas diferentes, um objeto para a Geografia centrado na relação homem-meio (natureza). Sob esta perspectiva, resgata a Geografia uma outra categoria analítica: a sociedade. Nesta articulação em seus primeiros momentos a Geografia trabalhou mais com o conceito de comunidade do que propriamente com o conceito de sociedade, aqui entendida como expressão da vida humana através das relações sociais temporalmente estabelecidas.
Os geógrafos críticos da Geografia deste período observam que a mesma tendeu, no seu início, a naturalizar o homem na medida em que o via como mais um constituinte do espaço geográfico. Dizia La Blache, "a Geografia é a ciência dos lugares e não dos homens", interessando à Geografia a obra materializada e não as relações sociais. Esta visão modifica-se com o tempo, em parte devido a aproximação da Geografia com a Sociologia, a exemplo de Pierre George, e da Geografia com a Economia e a Ciência Política, a partir do materialismo histórico. Neste momento, parte da Geografia passa a preocupar-se com o espaço geográfico, entendendo-o como resultado das formas como os homens organizam sua vida e suas formas de produção. Nesta perspectiva, a Geografia concebe a relação natureza-sociedade sob a ótica da apropriação, concebendo a natureza como recurso à produção. Este debate, por vezes embate e combate, ampliou a visão social e econômica da constituição do espaço geográfico, mas limitou a possibilidade analítica da natureza em si, no seu corpo referencial.
A construção do conceito de espaço geográfico implica trabalharmos outras duas categorias: tempo e espaço. Estas também apresentam-se sob concepções diferenciadas.
Para construirmos a idéia de tempo que perpassou e perpassa a análise geográfica através de seu conceito balizador, o espaço geográfico, utilizaremos as seguintes representações: seta, ciclo e espiral. A Geografia, em seu início, assumiu uma concepção de tempo à maneira de Kant, concebendo-o de forma seqüencial, linear, como sucessão de fatos no espaço. Neste sentido, construiu suas análises numa perspectiva histórica seqüencial, onde buscava explicar as relações da comunidade (grupo particularizado) com o meio (natureza) ao longo do tempo. Trata-se de uma visão de tempo como seta-evolução. Sob uma outra ótica, o espaço geográfico foi analisado numa visão de tempo como ciclo, onde a compreensão era de fatos sucessivos que voltam ao ponto inicial. O tempo, nesta perspectiva, evoca a idéia de uma dinâmica estável, um movimento que se repete.
A visão crítica da Geografia, ao romper com a visão de estabilidade, passa a conceber o tempo como espiral. Neste sentido, o tempo é entendido como seta e ciclo, ou seja, o espaço geográfico se forma (no sentido de formação, origem) e se organiza (no sentido de funcionalidade), projetando-se como determinação ou como possibilidade. Esta projeção se faz por avanços (seta) e retornos (ciclo). Neste contexto, o espaço geográfico é a coexistência das formas herdadas (de uma outra funcionalidade), reconstruídas sob uma nova organização com formas novas em construção, ou seja, é a coexistência do passado e do presente ou de um passado reconstituído no presente. Esta concepção permite aos geógrafos, como faz Milton Santos (1997), propor uma nova concepção de tempo-espaço indissociável, como veremos posteriormente.
O espaço constituirá, por sua vez, a categoria central para a Geografia. Este tendo sido, por vezes, confundido com o objeto próprio da Geografia. Da mesma forma que as demais categorias analisadas, a concepção de espaço para os geógrafos foi e é concebida diferentemente. Inicialmente, assim como o tempo, o espaço foi concebido à maneira de Kant, como espaço absoluto, espaço receptáculo, espaço continente, lugar de ocorrência do fenômeno geográfico. Adquiriu dimensões específicas, tornou- se demarcável, passível de delimitação, de localização, de forma absoluta. A cartografia de base e a localização absoluta (coordenadas geográficas) foi em parte o suporte desta concepção.
As transformações do mundo pós-guerra associadas à difusão de novas concepções científicas (Física de Einstein) permitem à Geografia, após os anos 50, falar de outro espaço: o espaço relativo. Neste contexto, os geógrafos passaram a falar de espaço como algo definível a partir de variáveis pré-estabelecidas, definidas a priori, a partir dos objetivos de delimitação. O espaço existiria, então, como representação, podendo ser objetivamente delimitado em cartas e mapas. Neste sentido, o clássico trabalho de Grigg, (in Chorley e Haggett,1974), Regiões Modelos e Classes, para quem, o processo de regionalização e a região nada mais são do que uma classificação e uma representação a partir de determinados critérios, é um bom exemplo.
David Harvey (l980) em seu livro Justiça Social e a Cidade, aborda o espaço sob outra perspectiva. Num contexto dialético, vai conceber o espaço como sendo ao mesmo tempo, absoluto (com existência material), relativo (como relação entre objetos) e relacional (espaço que contém e que está contido nos objetos). Explicando, "o objeto existe somente na medida em que contém e representa dentro de si próprio as relações com outros objetos". Importa também considerar que, para este autor, o espaço não é nem um, nem outro em si mesmo, podendo transformar-se em um ou outro, dependendo das circunstâncias.
Mais recentemente, outras concepções fazem parte da concepção de espaço geográfico. Milton Santos(1982) vai se referir a esta categoria dizendo: "o espaço é acumulação desigual de tempos". O que significa conceber espaço como heranças. O mesmo Milton Santos (1997) vai se referir a espaço–tempo como categorias indissociáveis, nos permitindo uma reflexão sobre espaço como coexistência de tempos. Desta forma, num mesmo espaço coabitam tempos diferentes, tempos tecnológicos diferentes, resultando daí inserções diferentes do lugar no sistema ou na rede mundial (mundo globalizado), bem como resultando diferentes ritmos e coexistências nos lugares. Constituindo estas diferentes formas de coexistir, materializações diversas, por conseqüência espaço(s) geográfico(s) complexo(s) e carregado(s) de heranças e de novas possibilidades.
A partir da formulação do conceito de espaço geográfico, considero que os geógrafos trabalharam e trabalham com conceitos mais operacionais, como os de paisagem, território, lugar e ambiente. Como já dissemos, não desconhecemos a existência de outros, porém em razão de nossos objetivos, nos deteremos nestes acima citados. Considero estes conceitos mais operacionais, pois visualizo neles uma perspectiva balizadora da Geografia sob diferentes óticas do espaço geográfico, ou seja, cada conceito expressa uma possibilidade de leitura de espaço geográfico delineando, portanto, um caminho metodológico. Trataremos cada um individualmente.
Paisagem
De uma perspectiva clássica, os geógrafos perceberam a paisagem como a expressão materializada das relações do homem com a natureza num espaço circunscrito. Para muitos, o limite da paisagem atrelava-se à possibilidade visual.
Não obstante, é importante frisar que geógrafos também consideraram paisagem para além da forma. Troll (1950), ao referir-se à paisagem, concebia-a como o conjunto das interações homem e meio. Tal conjunto, para o autor, apresentava-se sob dupla possibilidade de análise: a da forma (configuração) e da funcionalidade (interação de geofatores incluindo a economia e a cultura humana). Para ele, paisagem é algo além do visível, é resultado de um processo de articulação entre os elementos constituintes. Assim, a paisagem deveria ser "estudada na sua morfologia, estrutura e divisão além da ecologia da paisagem, nível máximo de interação entre os diferentes elementos". Esta análise, em sua visão, poderia ser de ordem exclusivamente natural (paisagens naturais) ou de ordem humana (paisagens culturais).
Georges Bertrand (1968), ao propor o estudo de Geografia Física Global, pensou a paisagem como "resultado sobre uma certa porção do espaço, da combinação dinâmica e portanto, instável dos elementos físicos, biológicos e antrópicos que interagindo dialeticamente uns sobre os outros fazem da paisagem um conjunto único e indissociável em contínua evolução".
Contemporaneamente, Milton Santos (1997) concebe paisagem como a expressão materializada do espaço geográfico, interpretando-a como forma. Neste sentido considera paisagem como um constituinte do espaço geográfico (sistema de objetos). Para Milton Santos:
Nesta perspectiva, diferencia paisagem de espaço: paisagem é "transtemporal" juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal juntando objetos. Espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única. Ou ainda, paisagem é um sistema material, nessa condição, relativamente imutável, espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente."Paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza". Ou ainda, A paisagem se dá como conjunto de objetos reais concretos".
De nosso ponto de vista, percebemos paisagem como um conceito operacional, ou seja, um conceito que nos permite analisar o espaço geográfico sob uma dimensão, qual seja o da conjunção de elementos naturais e tecnificados, sócio-econômicos e culturais. Ao optarmos pela análise geográfica a partir do conceito de paisagem, poderemos concebê-la enquanto forma (formação) e funcionalidade (organização). Não necessariamente entendendo forma–funcionalidade como uma relação de causa e efeito, mas percebendo-a como um processo de constituição e reconstituição de formas na sua conjugação com a dinâmica social. Neste sentido, a paisagem pode ser analisada como a materialização das condições sociais de existência diacrônica e sincronicamente. Nela poderão persistir elementos naturais, embora já transfigurados (ou natureza artificializada). O conceito de paisagem privilegia a coexistência de objetos e ações sociais na sua face econômica e cultural manifesta.
Território
Sob o conceito de Território, tratamos o espaço geográfico a partir de uma concepção que privilegia o político ou a dominação-apropriação. Historicamente, o território na Geografia foi pensado, definido e delimitado a partir de relações de poder. No passado da Geografia, Ratzel (1899), ao tratar do território, vincula-o ao solo, enquanto espaço ocupado por uma determinada sociedade. A concepção clássica de território vincula-se ao domínio de uma determinada área, imprimindo uma perspectiva de análise centrada na identidade nacional. Afirmava Ratzel (1899),"no que se refere ao Estado, a Geografia Política está desde a muito tempo habituada a considerar junto ao tamanho da população, o tamanho do território". Continuando, "a organização de uma sociedade depende estritamente da natureza de seu solo, de sua situação, o conhecimento da natureza física do país, suas vantagens e desvantagens pertence a história política" (Ratzel, 1899).
Álvaro Heidrich (1998), ao referir-se à constituição do território, nos diz
"a diferenciação do espaço em âmbito histórico tem início a partir da delimitação do mesmo, isto é; por sua apropriação como território; em parte determinado pela necessidade e posse de recursos naturais para a conquista das condições de sobrevivência, por outra parte, por sua ocupação física como habitat. Neste instante, na origem, a defesa territorial é exercida diretamente pelos membros da coletividade. Noutro extremo, como já ocorre desde a criação do Estado, quando há população fixada territorialmente e socialmente organizada para produção de riquezas, cada indivíduo não mantém mais uma relação de domínio direto e repartido com o restante da coletividade sobre o território que habita. Neste momento, a defesa territorial passa a ser realizada por uma configuração social voltada exclusivamente para a organização e manutenção do poder".
Observa-se que, historicamente,
a concepção de território associa-se a idéia
de natureza e sociedade configuradas por um limite de extensão do
poder.
Contemporaneamente, fala-se em complexidades territoriais, entendendo território como campo de forças, ou "teias ou redes de relações sociais". Segundo Souza (1995), não há hoje possibilidade de conceber "uma superposição tão absoluta entre espaço concreto com seus atributos materiais e o território como campo de forças". Para este autor, "territórios são no fundo relações sociais projetadas no espaço". Por conseqüência, estes espaços concretos podem formarem-se ou dissolverem-se de modo muito rápido, podendo ter existência regular, porém periódica, podendo o substrato material permanecer o mesmo.
Em breves considerações, o que queremos frisar é a ótica analítica do conceito de território. Este norteou na Geografia perspectivas analíticas vinculadas a idéia de poder sobre um espaço e seus recursos; o poder em escala nacional: o Estado-nação. Mais recentemente, este conceito indica possibilidades analíticas que não deixam de privilegiar a idéia de dominação-apropriação(1) de espaço. Esta flexibilização do conceito permite tratar de territorialidades como expressão da coexistência de grupos, por vezes num mesmo espaço físico em tempos diferentes. Trata-se de uma dimensão do espaço geográfico que desvincula as relações humanas e sociais da relação direta com a dimensão natural do espaço, extraindo deste conceito a necessidade direta de domínio, também dos recursos naturais, como expressa-se na concepção clássica de território. A natureza, enquanto recurso associada à idéia de território, já não é mais necessária. Nestas territorialidades, a apropriação se faz pelo domínio de território, não só para a produção mas também para a circulação de uma mercadoria, a exemplo das territorialidades por vezes estudadas, como o território das drogas. Estas novas territorialidades apresentam-se como voláteis e constituem parte do tecido social, expressam uma realidade, mas não substituem em nosso entender a dominação política de territórios em escalas mais amplas. Devendo essas, para serem explicadas e não somente descritas, serem inseridas em espaços de dimensão relacional.
Lugar
O lugar é um outro conceito, de nosso ponto de vista, operacional em Geografia. Consistiria, a partir da Cartografia, a expressão do espaço geográfico na escala local; a dimensão pontual. Por muito tempo, a Geografia tratou o lugar nesta perspectiva e considerou-o como único e auto- explicável.
Recentemente, o lugar é resgatado na Geografia como conceito fundamental, passando a ser analisado de forma mais abrangente. Lugar constitui a dimensão da existência que se manifesta através "de um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas, instituições–cooperação e conflito são a base da vida em comum"(Milton Santos, 1997).
Trata-se de um conceito que nos remete a reflexão de nossa relação com o mundo. Para Milton Santos (1997) resgatando Serres (1990), esta relação era local-local agora é local-global.
O conceito de lugar induz a análise geográfica a uma outra dimensão - a da existência- "pois refere-se a um tratamento geográfico do mundo vivido" (Milton Santos, 1997). Este tratamento vem assumindo diferentes dimensões. De um lado, o lugar se singulariza a partir de visões subjetivas vinculadas a percepções emotivas, a exemplo do sentimento topofílico (experiências felizes) das quais se refere Yu-Fu Tuan (1975). De outro, o lugar pode ser lido através do conceito de geograficidade, termo que, segundo Relph (1979),"encerra todas as respostas e experiências que temos de ambientes na qual vivemos, antes de analisarmos e atribuirmos conceitos a essas experiências". Isto implica em compreender o lugar através de nossas necessidades existenciais quais sejam, localização, posição, mobilidade, interação com os objetos e/ou com as pessoas. Identifica-se esta perspectiva com a nossa corporeidade e, a partir dela, o nosso estar no mundo, no caso, a partir do lugar como espaço de existência e coexistência.
Mas o lugar pode também ser trabalhado na perspectiva de um mundo vivido, que leve em conta outras dimensões do espaço geográfico, conforme se refere Milton Santos (1997), quais sejam os objetos, as ações, a técnica, o tempo.
É nesta perspectiva que Milton Santos (1997) se refere ao lugar, dizendo:
"no lugar, nosso próximo, se superpõe, dialeticamente ao eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo".
Resulta daqui sua visão
de mundo vivido local–global. Para o autor, o lugar expressa relações
de ordem objetiva em articulação com relações
subjetivas, relações verticais resultado do poder hegemônico,
imbricadas com relações horizontais de coexistência
e resistência. Daí a força do lugar no contexto atual
da Geografia.
Ambiente
Em seu período inicial, referia-se a Geografia não ao ambiente, mas ao meio (milieu). Para Bertrand (1968), o conceito de meio se define em relação a alguma coisa, portanto, está impregnado de um sentido ecológico. Aliata e Silvestri (1994), em capítulo referente a passagem do conceito de paisagem ao de ambiente, indica que a idéia de ambiente ou meio apresenta raízes científicas. Para estes, a origem histórica desta noção está vinculada à biologia, tendo sido introduzida nesta área de conhecimento, pele mecânica newtoniana. Em seu desenvolvimento histórico, no entanto, o conceito perde suas raízes (a de veículo mediando um objeto a outro) e assume a concepção "de unidade de diversas manifestações entre si relacionadas, sistema, nos termos que o estruturalismo o redefiniu, organismo". (Aliata e Silvestri,1994).
Nesta perspectiva, o ambiente pode ser lido como algo externo ao homem, cuja preocupação seria estudar o funcionamento dos sistemas naturais. Ou, incluir o homem, neste caso "em uma única esfera cuja chave principal de leitura está constituída por processos naturais" (Aliata e Silvestri, 1994). Para estes autores, a idéia de ambiente elimina por conseguinte "toda a tensão, toda a contradição e neste particular a tensão essencial qual seja a de ser o homem sujeito. O único sujeito em um mundo oposto a ele".
Ambiente, para os autores acima referidos, contrapõe-se à paisagem, embora esta também tenha se transformado no tempo, tendo sido apropriada por outras definições como meio, habitat e ecossistema, todas elas designando o mundo exterior ao homem. A paisagem concebida, neste contexto, como integração orgânica, tem na sua origem um diferencial. Este diferencial está na sua marca inicial, a arte. Assim, a paisagem, na visão do artista, acentua a tensão. "Acentua, nas palavras de Adorno, essa profunda ferida com que o homem nasceu". (Aliata e Silvestri,1994).
Historicamente, temos também em relação à Geografia uma naturalização do homem, seja no conceito de paisagem, como no de ambiente. Entretanto, Gonçalves (1989), em sua crítica ao conceito de meio ambiente, propõe uma visão de ambiente por inteiro, ou seja, considerá-lo nas suas múltiplas facetas. Não sendo mais possível conceber ambiente como equivalente a natural. O ambiente por inteiro como se refere, implica em privilegiar o homem como sujeito das transformações, sem negar as tensões sob as mais diferentes dimensões.
Resta, no entanto, observar que na atualidade geógrafos compartilham de conceitos diferentes. A ótica ambiental, na perspectiva naturalista e naturalizante, ainda se auxilia de conceitos que não dimensionam a tensão sob as quais se originam os impactos, mas esta não tem sido a regra. Por conseguinte, podemos afirmar que a Geografia tem pensado o ambiente diferentemente da Ecologia, nele o homem se inclui não como ser naturalizado mas como um ser social produto e produtor de várias tensões ambientais.
Uno e Múltiplo
A partir desta exposição, cabem algumas considerações com a intenção de síntese. Partilhamos da idéia de que o espaço geográfico constitui o conceito balizador da Geografia. A formulação deste conceito apresentou e apresenta ainda hoje variadas interpretações. Ainda, no século passado, como vimos com Humbolt (1862), a Geografia constitui-se uma ciência natural. Este sugeria uma interpretação da natureza sub-dividida em Física e Geografia Física. (Figura 1)
Figura 1
Os geógrafos, posteriormente, conceberam uma geografia que propunha a conjunção do natural e do humano, transformando o espaço geográfico em um conceito que expressa a articulação Natureza e Sociedade, ou seja constituíram um objeto de interface entre as ciências naturais e as ciências sociais (Figura 2).
Figura 2
Em inúmeras obras geográficas, o conceito de espaço geográfico expressou-se através da concepção de paisagem, região, território, lugar. Já observamos que Humboldt (1862), ao falar em Geografia Física, referia- se à paisagem natural. Pensamos poder estabelecer diferenças entre esses conceitos. A expressão do geográfico encontra-se representada no conceito de espaço geográfico, conforme já nos referimos, adotando a conceituação de Milton Santos (1997). Este conceito expressa a articulação entre natureza e sociedade, conforme a representação da figura 2.
Agora cabe perguntar: a que natureza se refere o autor? Trata- se, neste caso, de uma concepção de natureza denominada de natureza artificial ou tecnificada. Para Milton Santos (1997), o período atual, período "Técnico Científico Informacional" não nos permite pensar a natureza como primariamente natural, ou melhor como decorrente de processos que advém exclusivamente de sua auto organização.
A presença do homem concretamente como ser natural e, ao mesmo tempo, como alguém oposto a natureza, promoveu/promove profundas transformações na natureza mesma e na sua própria natureza. Isto exige uma reflexão efetiva sobre o que é natureza hoje. Algumas proposições encaminham a discussão. Milton Santos (1997) qualifica a natureza denominando- a de natureza artificial ou tecnificada ou, ainda, natureza instrumental. Isto porque a técnica no seu estágio atual permite a intervenção, não só nas formas, como nos processos naturais. Alguns exemplos cabem para melhor ilustrar: a intervenção no ciclo cicardiano de maneira generalizada, seja entre os homens, onde a necessidade do relógio na vida diária constitui um exemplo expressivo, seja entre os animais e vegetais através da aceleração nos processos de produção e reprodução destes para o consumo humano. Além deste exemplo, cabe registrar a constituição de sementes transgênicas, assim como a transmutação de animais (ovelha Dolly), entre tantos outros mais comumente lembrados, o efeito estufa e a camada de ozônio (na Climatologia), as águas superficiais contaminadas (na Hidrologia) e os depósitos tecnogênicos (na Geomorfologia e na Geologia). Tratar-se-ia a natureza, nesta circunstância, não mais como uma dimensão de interface com a sociedade, mas como uma dimensão de transmutação e transfiguração.
O termo transfiguração aqui adotado é entendido conforme apresenta Maffesoli (1995) "transfiguração é a passagem de uma figura para a outra. Além disso, ela é de uma certa maneira, mesmo que mínima, próxima da possessão" ( Maffesoli,1995). Assim, uma natureza possuída pelo homem transfigura-se , adquire uma outra dimensão.
Retornando à nossa representação como interface e transfiguração, podemos pensar o espaço geográfico como um todo uno e múltiplo aberto a múltiplas conexões que se expressam através dos diferentes conceitos já apresentados. Estes, ao mesmo tempo em que separam visões, também as unem.
Representamos esta interpretação na figura 3. Ela expressa no círculo a idéia de espaço geográfico aqui setorizado em quatro partes. Cada parte representa a visão analítica privilegiada por um ou outro geógrafo.
Figura 3
Assim, temos nesta representação a expressão da possibilidade de diferentes leituras. Não obstante, o espaço geográfico é dinâmico. Sua dinâmica é representada pelo movimento, o girar do círculo. Este giro expressa a idéia: um todo uno, múltiplo e complexo. Esta representação é elaborada no sentido de expressar a concepção de que: o espaço geográfico pode ser lido através do conceito de paisagem e ou território, e ou lugar, e ou ambiente; sem desconhecermos que cada uma dessas dimensões está contida em todas as demais. Paisagens contêm territórios que contêm lugares que contêm ambientes valendo, para cada um, todas as conexões possíveis.
Algumas questões se impõem à discussão. A primeira delas diz respeito aos recortes analíticos, o que poderia ser lido como um reducionismo na concepção de espaço geográfico. Entretanto, pensando em uma Geografia que se construiu independentemente desses conceitos, compartimentada em geografia física e geografia humana com seus respectivos setores, não seriam estes, instrumentos operacionais que permitiriam o retorno a conjunção?
Se de um lado ainda trabalhamos com o recorte do espaço geográfico, de outro acreditamos que esses recortes poderão mais unir o discurso geográfico, do que separar. Isto porque cada um deles enfatiza uma dimensão da complexidade organizacional do espaço geográfico: o econômico/cultural (na paisagem), o político (no território), a existência objetiva e subjetiva ( no lugar) e a transfiguração da natureza (no ambiente). Não obstante, nenhum deles prescinde das determinações expressas em uns e em outros.
Por outro lado, acreditamos que conceber esta como uma das possibilidades analíticas da Geografia, tende a nos permitir a diferença de enfoques, ao mesmo tempo em que nos articula pelas conexões derivadas da fronteira tênue entre cada um desses conceitos. Costuma- se dizer na atualidade, que o objeto de estudo se constrói num contexto relacional (contém e está contido). Por conseguinte, as conexões que permeiam os conceitos que aqui denominamos operacionais, aproximam as nossas práticas geográficas, muito mais que nos dividem.
Por último, cabe ressaltar que os trabalhos expressos nesta coletânea, analisam o espaço geográfico a partir do conceito de ambiente. Apresentam uma leitura do espaço geográfico, a partir da transfiguração do natural, do social. Dimensionam esta análise, a partir da perspectiva do lugar, enquanto locus da vida . Buscam resgatar um ambiente que não se confunda com impactos na natureza, mas que privilegia as derivações e transmutações destes lugares, a partir da construção da vida em sociedade com a natureza.
Expressam também, uma análise
do ambiente na perspectiva de um diálogo. Este se faz a partir do
lugar. Por vezes, ele se dirige ao poder público, neste sentido
busca compreender e repensar determinações verticais , ou
seja, aquelas que emanam da macro-economia e da política. Em outros
momentos, este diálogo busca compreender e repensar as determinações
horizontais, neste sentido colabora para a articulação comunitária,
a partir do reconhecimento do mundo vivido. Propõe, desta forma,
uma possibilidade de participação. Estes dois eixos compõe
em nosso entendimento a dimensão analítica do conjunto dos
trabalhos aqui reunidos.
Nota
1.Chamamos
a atenção sobre o conceito de apropriação,
ele expressa uma concepção diferenciada do poder sobre o
território, tratar-se-ia de um domínio, originalmente como
condição necessária a sobrevivência. Hoje está
apropriação se faz sob os mais diferentes objetivos muitas
vezes de ordem cultural. Trata-se conforme Heidrich (1998) em comunicação
oral, uma discussão em aberto entre os teóricos da Constituição
do Território.
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Suertegaray, 2001
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