REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Nº 88, 1 de mayo de 2001 |
Ana Fani Alessandri Carlos
Professora-Livre Docente
Departamento de Geografia
Universidade de São Paulo, Brasil.
As transformações no processo de reprodução da sociedade se realizam concretamente no processo de reprodução espacial gerando novas contradições, como consequência da socialização da sociedade que tem por essência a urbanização que se revela na planificação racional do espaço, na industrialização global. Esse processo pode ser analisado no espaço metropolitano. Enquanto do ponto de vista da realização econômica, o processo de desconcentração industrial; do desenvolvimento de novos setores da economia (apoiada no desenvolvimento técnico) que ocorre na metrópole produz o fenômeno da "raridade do espaço"; do ponto de vista da reprodução social, a perda dos referenciais urbanos, produzidas pelas rápidas mudanças cria o estranhamento.
Palavras chave: espaço urbano / metrópole / São
Paulo / cidade mundial.
The changes in the process of society reproduction are concretely realized in the process of space reproduction genereting new contradictions as a result of the socialization of society, which is in essence the urbanization that is unveiled in the racional planification of space, in the global industrialization. This process can be seen in the metropolitan space. While from the point of view of economic realization, the process of industrial deconcentration and the development of new economic activities (supported by technology) wich takes place within the metropolis generates the phenomenon called "space rarity"; from the point of view of social reproduction, the loss of urban references caused by quick changes creates ackwardness on city dwellers.
Key- words: urban space / metropolis / São Paulo / global cities.
O processo de reprodução do espaço é ao mesmo tempo contínuo e descontínuo apresentando profundas rupturas provocadas pela interveção do estado em função das contradições decorrentes do próprio processo.
No caso específico da metrópole de São Paulo, o processo de transformação hoje, revela um fenômeno mundial; as mudanças que ocorrem no processo produtivo em função dos novos padrões de competitividade, o desenvolvimento dos serviços modernos, apoiado no crescimento do setor financeiro, o deslocamento dos estabelecimentos industriais e a exigência das novas atividades, metamorfoseam radicalmente o espaço da metrópole pela imposição de novos usos decorrentes do estabelecimento de uma nova divisão espacial do trabalho. Um dos elementos distintivos da chamada "cidade mundial "é a emergência do setor de serviços altamente especializados, articulando espaços com uma racionalidade e eficiência assentada na competitividade estabelecida por padrões impostos mundialmente.
E é esse comportamento que se vislumbra em São Paulo; todavia, o desenvolvimento do setor de serviços encontra uma barreira a sua realização, isto é, as áreas centrais da metrópole aonde, tradicionalmente, se localizam o setor de serviço se tornam raras obrigando a atividade a migrar para outras áreas. No centro, ou nas proximidades do centro, o espaço assume o papel de nova raridade em conseqüência existência da propriedade privada da terra e da generalização, no espaço do valor de troca; um fenômeno que se manifesta em áreas precisas na metrópole (principalmente nas vizinhanças do centro)..
É nesse processo que o Estado vai intervir através das estratégias de renovações urbanas com o objetivo de atenuar as contradições que impedem a reprodução do espaço do "capital", aprofundando os conflitos em torno da reprodução do espaço da vida.
O espaço urbano como nova raridade na metrópole
No momento atual do processo histórico, do ponto de vista da reprodução do capital, o processo de reprodução espacial, com a generalização da urbanização, produz, uma nova contradição: aquela que se refere a diferença entre a antiga possibilidade de ocupar áreas como lugares de expansão da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chácaras ou fazendas, como o caso de muitos bairros na metrópole paulista) e sua presente impossibilidade diante da escassez de áreas. Isto porque o espaço, enquanto valor, entra no circuito da troca geral da sociedade (produção/repartição/distribuição) fazendo parte da reprodução da riqueza, constituindo-se em raridade. Por outro lado, vivemos, hoje, um momento do processo de reprodução em que a propriedade privada do solo urbano – condição da reprodução da cidade no capitalismo - passa a ser um limite a expansão econômica capitalista. Isto é, diante das necessidades impostas pela reprodução do capital, o espaço produzido socialmente - e tornado mercadoria, no processo histórico - é apropriado privativamente, criando limites a sua própria reprodução. Nesse momento, o espaço, produto da reprodução da sociedade, entra em contradição com as necessidades do desenvolvimento do próprio capital. O que significa dizer que a "raridade" é produto do próprio processo de produção do espaço ao mesmo tempo que sua limitação - o que se configura como uma contradição do espaço (inerente ao seu processo de produção).
A reprodução do ciclo do capital exige, em cada momento histórico, determinadas condições especiais para sua realização; a dinâmica da economia metropolitana, antes baseada no setor produtivo industrial, vem se apoiando, agora, no amplo crescimento do setor terciário moderno - serviços, comércio, setor financeiro - como condição de desenvolvimento, numa economia globalizada. Se o centro da metrópole concentra, hoje, o maior número de edifícios de escritórios, a saturação de sua área tanto para renovação, quanto para construção de novos edifícios é um dado importante, que alavanca a ocupação de outras áreas. Com isso, a região do centro vai apresentando tendência a perda de participação em detrimento de novas áreas pois as áreas centrais se esgotam enquanto oportunidade de negócios na metrópole. Ora a metrópole superedificada coloca-se enquanto barreira para o crescimento da economia e o setor terciário moderno não pode ocupar quaisquer áreas. Tal transformação requer a produção de um outro espaço, como condição da acumulação, que se realiza a partir da expansão da área central da metrópole (até então lugar precípuo de realização desta atividade) em direção a região sudoeste da metrópole, numa mancha urbana contínua. Se as áreas tradicionais se encontram densamente ocupadas e o sistema viário congestionado os novos padrões de competitividade da economia, apoiada num profundo desenvolvimento técnico vão impor novos parâmetros para o desenvolvimento desta atividade requerendo a produção de um outro espaço, diferente daquele do centro histórico. Mas como a centralidade é fundamental neste tipo de atividade, a expansão desta área não se fará sem problemas.
A contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada esta na base do entendimento da reprodução espacial; isto porque numa sociedade fundada sobre a troca a apropriação do espaço, ele próprio produzido, enquanto mercadoria, liga-se, cada vez mais à forma mercadoria servindo as necessidades da acumulação através das mudanças / readaptações de usos e funções dos lugares que também se reproduzem sob a lei do reprodutível, a partir de estratégias da reprodução, num determinado momento da história do capitalismo, que se estende cada vez mais ao espaço global, criam novos setores de atividade como extensão das atividades produtivas. Cada vez mais o espaço, produzido enquanto mercadoria, entra no circuito da troca atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reprodução. Nesse as possibilidades de ocupar o espaço são sempre crescentes, o que explica a emergência de uma nova lógica associada a uma nova forma de dominação do espaço que se reproduz ordenando e direcionando a ocupação, fragmentando e tornando os espaços trocáveis a partir de operações que se realizam no mercado. Deste modo o espaço é produzido e reproduzido enquanto mercadoria reprodutível.
A produção do espaço se realiza sob a égide da propriedade privada do solo urbano; onde o espaço fragmentado é vendido em pedaços tornando-se intercambiável a partir de operações que se realizam através e no mercado; tendencialmente produzido enquanto mercadoria, deste modo, o espaço entra no circuito da troca, generalizando-se na sua dimensão de mercadoria. Nesse contexto o espaço é fragmentado, explorado, e as possibilidades de ocupa-lo se redefine constantemente em função da contradição crescente entre a abundância e escassez, o que explica a emergência de uma nova lógica associada e uma nova forma de dominação do espaço que se reproduz ordenando e direcionando a ocupação a partir da interferência do Estado. Deste modo o espaço é produzido e reproduzido de um lado enquanto espaço de dominação e de outro enquanto mercadoria reprodutível. Nesse contexto o uso do espaço na cidade subordina-se cada vez mais à troca, a reprodução do valor de troca que submete o uso às necessidades do mercado imobiliário.
Esta situação coloca como horizonte a necessidade de superar as contradições emergentes no processo de reprodução do espaço onde a raridade não ocorre em qualquer lugar da metrópole, mas em determinados pontos associada a centralidade, no contexto determinado do processo de urbanização. A escassez do espaço, nas proximidades do centro, requer a liberação de amplas parcelas do espaço ocupadas visando a criação de uma "área livre"para novos usos necessárias a expansão da atividade econômica, bem como a supressão dos direitos que é conferido aos proprietários urbanos, pela existência do estatuto da propriedade privada. Nesse contexto, para que o desenvolvimento do ciclo do capital continue o capital necessita de uma aliança com o poder político, na medida em que só ele pode atuar em grandes parcelas do espaço produzindo a infra estrutura necessária a reprodução e no caso específico, "colocar em suspensão" o estatuto da propriedade privada do solo urbano, liberando as áreas ocupadas, para novas atividades; o que significa a criação de novas estratégias entre as várias formas de capital e o Estado.
No caso em questão há uma aliança de interesses entre o mercado imobiliário e o setor produtivo na construção do "novo espaço". De um lado o setor imobiliário, para continuar se reproduzindo, necessita sempre de novas estratégias capazes de permitir sua reprodução, de outro o setor produtivo vê-se diante de novas necessidades quanto ao espaço construído, mas ambos necessitam de uma infra-estrutura moderna. A tendência de escassez do solo urbano entorno dos centros econômicos-financeiros da metrópole, geram a necessidade de novas estratégias capazes de permitem a reprodução do capital, assegurada através da possibilidade para se contornar o problema do espaço urbano enquanto mercadoria tornada rara, em decorrência da intensificação do processo de urbanização e de mudanças no processo produtivo. A interferência do Estado mudando a legislação, permitindo transformações na lei de zoneamento, dirigindo o processo de desapropriação do solo urbano, criando mecanismos que permitam o remembramento de terrenos urbanos, aumentando o coeficiente edificável (o que permite a verticalização) vão criar mudanças significativas na metrópole.
A este processo político a ação do estado no espaço vai produzir a infra estrutura necessária a nova atividade produtiva; é assim que se abrem novas avenidas cortando bairros antigos, ampliando-se a malha viária extendendo as linhas de metro assegurando o fluxo contínuo no espaço. É assim que espaço revela em seu processo de produção interesses divergentes que encontram uma "unidade" no estado que revela um comando, posto que tem a seu cargo a produção de grandes conjuntos e obras de infra estrutura que, para além de nomear e qualificar espaços, redefinem o seu sentido. Por outro lado o estado tem a seu cargo, a orientação e definição de metas que planificam o espaço (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) e com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana, através de estratégias de atuação, que exerce seu poder através do espaço. É no espaço que o poder ganha visibilidade através de intervenções concretas; é por isso que as contradições no processo eclodem no plano institucional. No contexto do espaço planejado, manipulado que aparece como objetivo e neutro, esconde-se seu sentido político enquanto meio de dominação.
Nesse sentido, através do Estado, o espaço é um elemento de dominação em contradição ao espaço da apropriação revelado, claramente, nas lutas que se realizam no espaço questionando as contradições geradas no processo (como por exemplo, a necessidade de uma renovação urbana em detrimento de uma outra melhoria na cidade, como escola ou saúde).
Assim, sob a forma da renovação urbana as transformações necessárias a reprodução do capital aparecem travestidas de necessidade social imposta pelo Estado enquanto de "interesse público" criando a representação necessária, capaz de dissimular os conflitos de interesses, com o discurso da "modernização necessária ao crescimento; com esse objetivo deslocam-se favelas expulsa-se a população residente; destroem-se bairros inteiros da metrópole. É assim que o processo de mercantilização do espaço, enquanto condição da reprodução do capital, só pode se realizar, num determinado momento do processo de urbanização, pela mediação do Estado; com isso, através de mecanismos de gestão, o Estado interfere na reprodução espacial, não apenas redefinindo usos e função do espaço, mas alterando, substancialmente, a prática espaço-temporal.
O processo de reprodução do espaço urbano na metrópole vai se realizando aprofundando as contradições pela extensão do valor de troca; do ponto de vista da reprodução econômica o estado vai interferir no sentido de manter as condições para sua realização ao mesmo tempo em que impõe sua dominação no espaço. Esse processo produz a implosão dos bairros envolvidos no processo de renovação urbana.
Convém sublinhar que as estratégias que percorrem o processo de reprodução espacial são estratégias de classe, referem-se a grupos sociais diferenciados, com objetivos desejos e necessidades diferenciadas, o que tornam as estratégias conflitantes; o Estado, por sua vez, desenvolve estratégias que orientam e asseguram a reprodução das relações no espaço inteiro (elemento que se encontra na base da construção de sua racionalidade). Assim o espaço se revela enquanto instrumento político intencionalmente organizado, e manipulado pelo estado; é portanto um meio e um poder nas mãos de uma classe dominante que diz representar a sociedade, sem abdicar de objetivos próprios de dominação. Nessa perspectiva, o estado, através de renovações urbanas, reorganiza as relações sociais e de produção. A renovação urbana se inscreve, assim, num conjunto de estratégias políticas, imobiliárias e financeiras, com orientação significativa no processo de reprodução espacial que converge para o aprofundamento da segregação e hierarquização espaçial a partir da destruição da morfologia de uma área da metrópole que ameaça/transforma a vida urbana reorientando usos e funções dos lugares da cidade, expulsando a população para a periferia ou, para quem pode pagar, para bairros próximos ao centro.
Deste modo a renovação urbana estabelece uma estratégia espacial de dominação em aliança com setores econômicos que de um lado revela a imposição do setor imobiliário como elemento dinâmico da economia tornando patente a mobilização da riqueza fundiária e imobiliária, compreendida com extensão do capitalismo financeiro; e de outro, as transformações recentes da economia capitalista, a entrada do setor da construção civil no circuito industrial moderno(1), associado ao desenvolvimento maciço da tecnologia em função da imposição dos novos padrões de realização da atividade econômica nas cidades mundiais.
O espaço paulistano
Em São Paulo, pode-se notar duas tendências; uma que diz respeito ao processo e adensamento que se realiza através do processo de verticalização, seja para uso residencial ou de escritórios (o que ocorre fundamentalmente na região sudoeste) e o adensamento através do aumento da área construída horizontalmente principalmente nas regiões leste e sul. Um comportamento chama atenção, por sua magnitude, nesse processo de crescimento urbano, revelando diretamente as mudanças nas atividades econômicas na metrópole; o crescimento do número de edifícios de escritórios. Para o conjunto da cidade a área construída não-residencial aponta um aumento percentual quase equivalente ao aumento da área residêncial revelando um comportamento mais nítido de mudança de uso através da acentuação de seu processo de verticalização.
Já desponta no final da década de 70 e nos anos 80 o esgotamento dos terrenos passíveis de serem incorporados para escritórios (que abrigam o setor moderno de serviços e o financeiro) em São Paulo, o que significa que o desenvolvimento desse setor deverá buscar novas alternativas locacionais para permitir a reprodução de sua atividade. É nesse contexto que os edifícios de escritórios começam a ser construídos fora da área central da metrópole numa região propícia a expansão desta atividade em função das áreas passíveis de serem incorporadas pelo mercado imobiliário e com zoneamento adequado. A mobilidade espacial da construção e ocupação de edifícios de escritórios na metrópole se realiza, em parte, ocupando antigas áreas antes destinadas as atividades industriais (os galpões industriais), ou se impondo em antigas áreas residenciais de ocupação horizontal. Com isso, ao lado das mudanças no uso do solo urbano assistimos a uma mudança funcional significativa, em decorrência das necessidades impostas pela reprodução do capital que redefine a divisão espacial do trabalho.
A ocupação da região sudoeste (da metrópole) principalmente nos anos 90, apresenta características diferenciadas e complementares a região central da cidade. O deslocamento do setor de serviços para o sudoeste forma uma mancha contínua a partir do centro transformando o uso do solo e, como decorrência, produzindo uma nova inserção funcional da área no espaço interno metropolitano. Aqui, espaço e o tempo urbanos se modificam, impondo uma outra urbanidade através de uma racionalidade (organizadora e operacional) que envolve o nível da gestão do espaço propiciando a expansão espacial do valor de troca pela mercantilização do espaço. A generalização do valor de troca no espaço, englobando-o ao mundo da mercadoria aparece como possibilidade de realização do consumo produtivo. O espaço, nesta condição, se reproduz enquanto mercadoria sob a forma de áreas incorporáveis para a construção de prédios para escritórios, a partir das necessidades de crescimento do mercado imobiliário e daquelas impostas pela terciarização / terceirização da economia, onde o tamanho, o tipo de imóvel e o que se chama "qualidade de espaço" vão diferenciar os ocupantes e as atividades dentro do setor de serviços.
A escassez dos espaços disponíveis na metrópole paulista obriga as empresas voltadas ao setor de serviços modernos e o setor financeiro, a optarem por novas localizações dentro da metrópole gerando um movimento espacial onde o processo de reprodução espacial gera novas centralidades. Esta região de expansão da atividade de serviços modernos vai se constituindo num pólo de atração de investimentos imobiliários capaz de sediar as novas funções que se desenvolvem, hoje, onde o tratamento arquitetônico dos edifícios atrai uma ocupação diferenciada de alto padrão como decorrência da aplicação de novas tecnologias. Na esteira dos grandes investimentos públicos dirigidos para esta área da cidade muitos são mega projetos imobiliários tocados pela iniciativa privada, que chegam a combinar em um só empreendimento edifícios de escritório de alto padrão, shopping center, hotéis / centro de convenções com amplas garagens subterrâneas, caso do World Trade Center (que engloba o shopping de Decoração D&D, o Hotel Meliá e torres de escritórios).
A nova atividade econômica que se desenvolve na metrópole alia-se as necessidades da reprodução dos investimentos, é a idéia de que se produz uma mercadoria para o desenvolvimento de uma atividade econômica e ao mesmo tempo para o mercado financeiro enquanto investimento, desenvolvendo o mercado de locação de escritórios através do desenvolvimento da indústria da construção civil; por outro lado responde as necessidades do setor terciário que, para diminuir custos prefere alugar o imóvel ao invés de imobilizar capital na compra de um imóvel próprio.
No momento em que a construção de escritórios passa a figurar como "bem" o que efetivamente ocorre é que o setor de locação de escritórios em São Paulo é substancialmente mais "aquecido" e importante que aquele de compra e venda de imóveis - as placas de aluga-se tendem a desaparecer rapidamente da porta dos imóveis comerciais pois os edifícios tecnologicamente avançados raramente dispõe de unidades vagas; as multinacionais e empresas de ponta disputam as chamadas "áreas nobres" da metrópole - ratificando a tendência de mobilidade do capital financeiro (que se volta para o segmento imobiliário que se tornou importante setor de investimento). Os capitais encontram aí um tipo de refúgio para uma aplicação de rendimento seguro – num pais de economia instável – em relação ao conjunto dos ativos passíveis de aplicação financeira.
Tal investimento pode compensar dificuldades no circuito normal de produção-consumo, apontando uma estratégia de aplicação de capital. Nesse caso o capital financeiro associado ao capital industrial, atendendo a uma nova demanda da economia - o crescimento do setor de serviços - precisa, para se desenvolver, da aliança dos empreendedores imobiliários com o poder municipal garantido a gestão da cidade dentro dos padrões necessário a reprodução continuada do capital. Ocorre que a intervenção do estado produz ou reproduz desigualdades no que se refere aos investimentos no espaço que uma renovação urbana reforça através do processo de valorização da área atingida em detrimento de outras áreas e de outros setores sociais da cidade. Essa é uma das discussões básicas envolvendo o questionamento do projeto pelos habitantes dos bairros atingidos pelas renovações urbanas; a priorização dos recursos públicos da prefeitura – sua hierarquia de gastos destinados a gestão da cidade. Por outro lado, a renovação urbana interfere no mercado de solo urbano na medida que com o processo de desapropriação dos proprietários das casas na área; cria para o mercado imobiliário a possibilidade de reocupar o espaço com outro uso com outro padrão de construção e com outra densidade de ocupação.
No mercado imobiliário urbano, o solo urbano, tornado mercadoria se generaliza assumindo, aqui, uma expressão especulativa, através do desenvolvimento do mercado de locação de escritórios produto do desenvolvimento da troca e da intercambialidade de parcelas do espaço antes nas mãos de pequenos proprietários urbanos gerando conflito entre os usos e o sentido que cada grupo social confere ao espaço. O desenvolvimento desse mercado de imóveis de escritório tem na raridade do espaço (o segmento de escritórios que não pode se localizar em qualquer lugar do espaço metropolitano) um ponto importante definidor de suas estratégias e alianças. A construção de escritórios destinados ao mercado de locação, visando a reprodução do capital industrial ligado ao setor da construção ou financeiro, têm como pressuposto fundamental a possibilidade de realização do valor de uso e com isso realizar o valor de troca (objetivo último daqueles que compram espaços de escritórios construídos com finalidade de investimento). Todavia o valor de troca tende a se impor à sociedade num espaço onde os lugares de apropriação diminuem até quase desaparecerem – caso dos espaços públicos – como decorrência da construção, em São Paulo, dos grandes complexos viários. O uso esta em estado latente nesse tipo de investimento. Há um caráter "especulativo" em jogo (como algo novo) ele pressupõe o uso, mas seu objetivo no ato de compra é o valor de troca que a operação intermediária de locação vai realizar.
O que se deve ressaltar, então é que o uso pode vir a ter sentidos diversos, uma diferença substancial entre a compra de uma moradia e a compra de um escritório para ser alugado. Significa que há interesses diversos envolvendo o uso do espaço como básico em ambas operações imobiliárias – o habitante compra a moradia para seu uso, enquanto o investidor compra um imóvel para alugar porque representa um uso para outrem.
Por sua vez, o desenvolvimento das atividades terciárias na metrópole, como conseqüência, das transformações do processo produtivo, no contexto da flexibilização e globalização da economia impõe uma crescente busca de competitividade exigindo a diminuição dos custos fixos (com imóvel) associado a exigência de um outro tipo de imóvel a medida em que o desenvolvimento técnico traz novas exigências que se refletem nas instalações. O chamado desafio da modernização, como atualização, numa economia competitiva requer outro tipo de espaço diferente do tradicional, circundado por uma rede densa e ampla de circulação viária, terrenos amplos onde a tecnologia aplicada a construção civil, acabará por produzir o "prédio inteligente".
Tal fato significa que as linhas arquitetônicas e a beleza das fachadas dos edifícios, em si, não bastam (apesar de causar boa impressão o que não deixa de ser um elemento de peso, nesse mundo de aparências) mas outros elementos ganham importância para o negócio: a localização, a planta que precisa ter garagens amplas e, fundamentalmente, uma administração para reduzir custos de gerenciamento do imóvel e permitir o aumento da produtividade -baseada num conhecimento técnico especifico. Assim dentre os quesitos básicos para o desenvolvimento da atividade econômica baseada nos serviços aparece o que se chama - no setor imobiliário - de "qualidade do espaço". Isto é, com a crescente necessidade de reduzir custos, as empresas estão cada vez mais preocupadas com a eficiência das áreas que ocupam, onde cada m2 tem custo significativo. Assim, um edifício bem planejado deve ter flexibilidade para poder ser utilizado por várias atividades sucessivamente, e cada andar deverá acomodar, simultaneamente, vários ambientes; por sua vez a segurança aparece como grande exigência, tanto a segurança contra incêndio – (equipamentos como os sprinklers inteligentes), bem como o controle no acesso das pessoas aos prédios com um aparato, terceirizado de alto controle (com sofisiticadas portarias munidas de computadores e monitores de vigilância controlando todos os andares).
Outro quesito diz respeito às necessidades impostas pelas telecomunicações, antenas parabólicas, pré-cablagem, linhas digitais , TV a cabo, etc. A construção dos edifícios com nova tecnologia permite a quantificação mais racional dos dutos verticais (que flexibilizam a passagem de cabeamento entre andares) e horizontalmente com a construção do piso elevado que oferece maior flexibilidade no caso de mudanças de lay out). A atividade exige, ainda, complementação de outros serviços como a infra-estrutura adicional como depósitos no subsolo, auditórios bem equipados, áreas para centro de convenções e até restaurantes e estacionamentos - com boa proporção de vagas em relação ao volume do m2 útil, inclusive, com a facilidade de entrada de caminhões. Portanto estamos diante de uma crescente exigência não solicitada no passado e que vinculadas às preocupações com a "produtividade" nos escritórios, explica o surgimento de novos setores de serviços, na metrópole com o objetivo de prover o setor globalizado da economia.
Esse comportamento aponta para o fato de que está em curso uma revolução nos serviços oferecidos; a preferência por escritórios de qualidade aponta para a busca de escritórios tecnologicamente, mais avançados, com equipamentos de última geração feitos a partir de processos construtivos com alta tecnologia, com o objetivo de barateamento da construção. A nova tecnologia desenvolvida com o objetivo de substanciais reduções nos custos tratam o imóvel como uma indústria e o gerenciamento do edifício como tema central. A administração dos edifícios de escritórios, são feitos por empresas especializadas que substituem a figura do zelador por aquela do gerente altamente qualificado, transformado quase, num executivo enquanto que no centro histórico da metrópole os prédios são antigos, os escritórios menores e não tem garagens.
É assim que se constrói um eixo empresarial na metrópole como extensão do centro histórico numa mancha contínua em direção a região sudoeste pela intrevenção do estado que desapropria uma vasta área residencial permitindo a sua construção com a liberação dos terrenos para a construção de prédios de escritórios. Esta área já abriga, hoje, 38% do número dos edifícios de escritórios produzidos na metrópole. Para se dar uma dimensão desse processo podemos dizer que se encontrava nesta área em 1985, 487.000m2 úteis de área construída de escritórios, um número que aumenta para 1020.000 dez anos depois.
O desenvolvimento do setor imobiliário voltado aos escritórios na cidade de São Paulo, revela que as áreas tradicionais de concentração da atividade vem apresentando uma tendência a diminuição de sua participação no conjunto da metrópole como o centro histórico. O centro esta congestionado tanto em termos da concentração dos edifícios quanto de artérias de circulação fazendo com que seus escritórios sejam ocupados por atividades pontuais que necessitam estar aí concentradas (exemplo dos escritórios de advocacia, em função do forum) já o centro expandido apresenta um preço elevado do m2 (40% superior àquela do centro (2) ). Já na área expandida do eixo empresarial encontramos principalmente os setores voltados ao setor financeiro, serviços modernos e aquele que abriga os escritórios das industrias (muitas das quais mudou o setor produtivo para municípios vizinhos, mas mantêm seus escritórios centrais na metrópole).
Assim vai se construindo um outro polo de escritórios que surge, inicialmente, como necessidade imposta pela expansão dos escritórios em função da escassez das áreas tradicionais a partir de 1975. A renovação urbana que estamos tratando, (chamada de Operação urbana Faria Lima) traz um novo elemento na construção dos espaços para escritórios em São Paulo, consolidando o polo, viabilizando sua articulação com o restante da metrópole, destruindo a barreira que impedia sua expansão, não só criando uma via semi expressa de comunicação, mas "criando uma área "incorporável" para a construção destes edifícios" numa área antes ocupada pelo uso residencial horizontal" criando uma nova área para um novo uso em expansão com a possibilidade da construção em altura, antes proibida pela lei de zoneamento e com a mudança do uso do solo urbano.
O dado importante aqui é que essas contradições assinaladas no processo de reprodução do espaço se dão no interior do processo de reprodução das relações sociais de produção. É a raridade do espaço para essa nova atividade econômica que vai se realizando na metrópole, que move as mais variadas estratégias.
A socialização da sociedade, que tem por essência a urbanização, se revela na planificação racional do espaço, na organização do território, no processo de industrialização global; enquanto aspectos essenciais. Deste modo as contradições entre apropriação para a realização da vida humana – entra em conflito com aquelas dos grupos sociais que exploram o espaço como condição da reprodução do capital.
Mas não se trata, todavia de reduzir a reprodução espacial àquela da intervenção do Estado no sentido de superar a contradição gerada pelo fenômeno da raridade do espaço e os entraves que a existência da propriedade privada cria para a reprodução do capital. Se de um lado se aproximam as estratégias do mercado imobiliário, da industria da construção civil e do setor financeiro, de outro a explicação ganha sentido articulada ao fato de que o processo de reprodução do espaço envolve, também e de modo articulado, outro plano de análise, aquele do indivíduo que se revela na prática sócio-espacial .
O processo de implosão da metrópole cidade e o estranhamento
O processo acima analisado ao provocar uma mudança radical no espaço acaba transformando as possibilidades de sua apropriação pelo cidadão pela implosão dos referenciais construídos enquanto momentos de realização da vida. Isto porque A renovação - transformação do espaço urbano através das mudanças morfológicas da metrópole produz constantes transformações nos tempos urbanos da vida, dos modos e tempos de apropriação/uso dos espaços . No mundo moderno a prática sócio-espacial revela a contradição entre a produção de um espaço em função das necessidades econômicas que se realiza pela imposição de uma racionalidade técnica, assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulação que produz o espaço, enquanto condição da produção, revelando as contradições que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impõe limites e barreiras a sua realização e a reprodução da vida.
A renovação urbana que permitiu a extensão do eixo empresarial-comercial moderno da metrópole paulista, foi uma operação urbana que cortou ao meio três bairros, derrubou 380 casas - dentre elas duas escolas, eliminou uma praça e erradicou uma área de favela liberando-a para a instalação de uma nova atividade econômica e com isso uma nova inserção funcional da área no espaço metropolitano isto porque o investimento produtivo no espaço se sobrepõe ao investimento improdutivo, regulando a repartição das atividades, os usos, e com isso, regulando a atividade econômica. O uso do espaço e a regulação do tempo desestruturando o bairro e a vida no bairro, cristaliza-o dentro de limites fixos gerando o conflito entre valor de uso e valor de troca do espaço. Esta renovação urbana ( Faria Lima ) aparece, neste contexto, como elemento desestruturante no espaço porque quebra as relações entre as pessoas esvaziando a prática sócio-espacial. Isto porque as táticas políticas visam sempre o imediato e o urbanismo, sujeito a organização geral da produção, aparece como dispositivo material para a organização da acumulação – reprodução material, controlando a vida cotidiana pela programação do espaço. Os lugares da metrópole se submetem aos centros de decisão, a homogeneidade se impõe sobre a possibilidade da diferença, subtraindo-se a possibilidade de apropriação pela imposição da troca e do valor de troca no espaço.
Assim o plano da reprodução da vida na metrópole se realiza na relação contraditória entre necessidade e desejo; uso e troca; identidade e não-identidade; estranhamento / reconhecimento que permeiam a prática sócio-espacial.
O entendimento da metrópole se revela no desvendamento do modo como se realiza, concretamente, o processo de reprodução da sociedade urbana em sua totalidade, como tendência inexorável. E se realiza, hoje, enquanto processo de reprodução da sociedade a partir da reprodução do espaço; onde ganha sentido uma nova relação espaço-tempo. Isto porque a acumulação tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que não se realiza apenas produzindo objetos / mercadorias mas a divisão e organização do trabalho, modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana. Deste modo a vida cotidiana se apresenta, tendencialmente, invadida por um sistema regulador, em todos os níveis, que formaliza e fixa as relações sociais reduzindo-a a formas abstratas. Esse fato tende a dissipar a consciência urbana na medida em que o "habitar" hoje a metrópole apresenta um sentido diverso,em função do processo de implosão que impõe mudanças nos hábitos e comportamentos, dissolve antigos modos de vida, transformando as relações entre as pessoas; reduzindo e redefinindo as formas de apropriação do espaço.
Esses dois planos revelam, como em cada dimensão da realidade, o espaço vai adquirindo uma configuração sentido e finalidade diferenciadas. O sentido que a metamorfose do espaço da metrópole assume, baseado na mercantilização do solo urbano provoca o fenômeno de implosão-explosão. Nesse processo se delineia a tendência da submissão dos modos de apropriação do espaço ao mundo da mercadoria; conseqüentemente, o esvaziamento das relações sociais, perda da sociabilidade,pela redução do conteúdo da prática sócio-espacial, neste plano da realidade o lugar da vida, transformado adquire a característica de um espaço amnésico (em função da perda dos referenciais urbanaos que sustentam a vida na metetrópole) em sua relação direta com o tempo efêmero (tempo imposto pela aceleração do processo de produção).
A idéia de tempo é marcada, na metrópole, pela instantaneidade que gera o esmaecimento da memória impressa no espaço, enquanto desaparecimento dos referenciais da vida humana. O tempo enquanto uso que se identifica , enquanto duração da ação no espaço, revelado nos modos de apropriação é hoje, um tempo acelerado, comprimido, imposto e quantitativo. Neste contexto a aceleração do tempo torna a cidade obsoleta sem que siquer tenha envelhecido; como decorrência do fato de que a relação espaço-tempo na sociedade atual é marcada pela quantificação. A quantificação do tempo e do espaço e com isto de toda a sociedade, penetra o universo da vida cotidiana, não só pela rotina altamente organizada, mas pelos atos, gestos, modos de uso dos lugares da vida. Como a quantificação do tempo(3), o capitalismo invade a sociedade, a necessidade de um novo tempo de produção atinge as relações cotidianas e transformam os usos porque o próprio espaço também se transforma. Espaço e tempo abstratos redefinem constantemente os usos, com isso os processos que criam a identidade e acabam destruindo as condições nas quais se gesta a memória coletiva. Nesse contexto a espacialidade das relações sociais se inscreve num espaço que se reproduz tendencialmente, sem referencias. A idéia de construção de um espaço amnésico enfoca a ruptura: uma mudança que não se apresenta como gradual, "era e não é mais"; os referenciais se diluem no espaço da metrópole e com ele os traços em que se baseiam a construção da identidade produzida pela vida de relações, no interior dos bairros. Neste sentido, para os habitantes, o tempo, enquanto presente, aparece sem espessura, e o passado enquanto memória, impressa nas formas se transforma no uso, prende-se, hoje, a um espaço onde o sistema referencial é marcado pela privação da presença, produzindo vazios; criando o estranhamento. O espaço urbano enquanto produto social em constante processo de reprodução nos obriga a pensar a ação humana enquanto obra continuada – ação reprodutora que se refere aos usos do espaço onde tempos se sucedem e se justapõe montando um mosáico que lhe dá forma e impõe característica a cada momento. Hoje na metrópole o tempo e espaço homogêneos tendem a se instituir como condição necessária da reprodução, pois a produção espacial realiza-se no plano da vida cotidiana e aparece como forma de ocupação e uso de determinado lugar, num momento específico.
O tempo diz respeito a um espaço - ao uso do espaço. No mundo moderno uma nova relação espaço-tempo se instaura na sociedade urbana que pode ser entendida, em toda sua extensão, no lugar, nos atos da vida cotidiana. Essa contradição produz o que chamo de estranhamento. Estranhamento porque a rapidez das transformações, na metrópole, obriga as pessoas a se readaptarem constantemente as mudanças impostas pela produção espacial. Isto é, diante de uma metrópole onde as formas mudam e se transformam de modo cada vez mais rápido os referenciais dos habitantes da metrópole se modificam, produzindo a sensação do desconhecido, do não identificado. Aqui as marcas da vida de relações e dos referencias da vida se esfumem, ou se perdem para sempre - o estranhamento provocado pelas mudanças do uso do espaço e de uma nova organização do tempo na vida cotidiana coloca o indivíduo diante de situações mutantes inesperadas - dando conteúdo ao espaço amnésico, produto do processo de implosão da metrópole.
O espaço tornado mercadoria, submetido às estratégias imobiliárias, voltado às novas necessidades da reprodução se recria em função de objetivos específicos que fogem e se sobrepõe aos desejos dos habitantes, de modo coercitivo. Nesse processo, as pessoas se sentem desenraizadas e sem referenciais.
O traçado da Nova Avenida cortando os bairros em dois, separa-os, e muda cada um dos lados, autonomizando-os, de modo que, cada um, ganha novas características, perdendo-se com isso, a antiga unidade. Muitos moradores se mudaram, pois suas casas vieram abaixo, outros se mudam mesmo sem terem sido desapropriados, "expulsos pelas mudanças", o que altera profundamente as relações no bairro: perde-se os referenciais de reconhecimento, as relações de vizinhança com as pessoas. As casas de moradia tem seu uso redefinido transformando-se em pontos comerciais ou de serviços; fotógrafos, chaveiros, floricultura, loja de congelados, móveis antigos, pizzarias, casa de comida à quilo. Por outro lado, há obras e novos personagens que invadem o cenário do bairro, são por exemplo, os pedreiros, que atraem os ambulantes e suas barracas. Pessoas estranhas, caras novas andando pelo bairro, o açougueiro não é mais o mesmo, mudou o tintureiro, o sapateiro; na realidade o pessoal de serviços muda mais, não há permanência. Assim as casas deram lugares aos escritórios e estes fecham à noite: onde, antes tinha uma luz acesa iluminado o quintal de uma casa de família, agora há uma loja, um escritório ou mesmo consultório, onde as luzes se apagam após o expediente, escurecendo a rua, tornando-a perigosa, estranha e sobretudo vazia de rostos conhecidos. A mudança da vizinhança deteriorou a vida do bairro, esvaziou as relações de vizinhança; muitos ficaram "sem vizinho" com as demolições ou mesmo com as mudanças de uso, com isso as pessoas ficaram mais trancadas em casa.
O bairro que se apoiava numa rede de significados se esvazia decompondo o tempo e limitando os espaços da casa e da rua. O umbral da porta, passa a ser o novo limite, as pessoas estão mais dentro de casa, não há gente nem crianças nos pequenos jardins, há insegurança. Antes as pessoas se encontravam nas compras, nas calçadas agora afundam no mundo da vida privada.
A avenida se impõe como barreira, os idosos se sentem receosos com ela e não circulam mais com a mesma freqüência, muitos precisam tomar táxi para ir ao supermercado que fica ao lado só por temor de atravessa-la, que com 4 pistas de cada lado, não dá tempo para chegarem até a ilha que separa as duas mãos de direção da nova avenida (o tempo do semáforo que disciplina o transito, não é o tempo dos passos, mas da sincronia dos semáforos que regem o transito na metrópole); as crianças antes vinham á pé com os pais da escola, agora, chegam, em sua maioria, de carro, acabando o movimento nas calçadas e os encontros que davam um movimento, ruído e colorido ao bairro. As pessoas não se encontram mais, este fato se revela na profusão de placas de "vende-se e aluga-se" que marcam a paisagem. Já placas de "cuidado com o cão" , bem como os novos portões com grades, sinalizam as pequenas mudanças que passam a marcar a vida cotidiana. Mas, substancialmente, o que chama atenção são as guaritas e altos portões que agora impedem as entradas nas vilas do bairro.
O espaço metamorfoseado redefine os ritmos e usos no espaço e com isso aquele da vida cotidiana. Mas a vida não muda só porque existem renovações urbanas, assiste-se, no mundo moderno, transformações no plano da vida cotidiana revelando-se no modo de usar tempos e espaços - nos valores, nos comportamentos, no papel da mulher, no tipo de lazer, etc., que se constitui no plano global e que se refera àquela da constituição da sociedade urbana.
O lugar da identificação, criado através da familiaridade pode ser cada vez mais definido fora do bairro em função do esvaziamento da vida cotidiana no bairro reforçado pela tendência a criação de lugares de lazer privados ou semi públicos que substituem o lugar da rua, da praça, do comércio local. O mundo do lazer, cooptado pelo mundo da mercadoria invade e reestrutura o tempo/modo do lazer deslocando o morador do bairro para os sub - centros, especialmente construídos para este fim. Esse quadro aponta também uma outra tendência; a medida em que o cotidiano se constitui enquanto condição da reprodução da sociedade decorrente da expansão do mundo da mercadoria, este sai da esfera do consumo de objetos para o consumo do espaço, redefinindo os usos (do espaço) e o modo de dispor o tempo enquanto uso do espaço. O cidadão reduzido a condição de usuário evidencia e caracteriza o momento da reprodução espacial do espaço em que o valor de uso cede cada vez mais lugar ao valor de troca.
Assim a produção do espaço deve ser entendida sob uma dupla perspectiva, ao mesmo tempo que se processa um movimento que constitui o processo de mundialização da sociedade urbana acentua-se o processo de fragmentação tanto do espaço quanto do indivíduo cada vez mais preso ao universo do mundo privado. A tendência ao mundial não afasta da realidade o espectro da fragmentação do mundo e do cidadão revelado no nível do lugar na medida em que o espaço se fragmenta em inúmeras parcelas sob a égide de sua condição de mercadoria assentado na propriedade privada que entra no circuito da troca de mercadorias, pela mediação do mercado, o que vai delimitar e definir os modos de uso (e apropriação) produzindo, no processo, um morfologia espacial estratificada articulada à morfologia social estratificada.
De um lado o espaço que parece se dividir e subdividir ao infinito (em função do constante desenvolvimento das técnicas) e de outro a atomização do indivíduo gerando a divisão quase sem limites dos conteúdos da sociedade como suporte das relações sociais (das relações sociais e do uso do espaço). Atomização das relações sociais, parcelamento do espaço, coações sobre o uso em meio num "cenário urbano em ruínas" como aquele que constatamos em decorrência da realização da renovação urbana.
No plano da vida cotidiana o processo de produção do espaço da vida revela a passagem da produção de um lugar conhecido/reconhecido (pelos atos e ações simples suporte da vida cotidiana – posto que lugar da reprodução da vida) para a constituição de "um novo lugar", provocando ausências inexoráveis - este processo decorre do movimento da passagem da produção do espaço enquanto valor de uso para o espaço submetido ao valor de troca. Aqui o desconhecido, o não - reconhecido, aparece como sinal inexorável dos "novos tempos", onde a forma efêmera impõe-se como a única possibilidade da realização do novo". Como contrapartida, a passagem do ato de habitar para o ato de morar; aqui o habitante se transforma no morador, e com isso, de "usador"( cujo sentido é dado pelos modos de apropriação do espaço para a vida) vira "usuário" (onde o habitante se transforma num consumidor de serviços, na cidade). Esse momento revela em toda sua extensão o fenômeno da implosão dos bairros no processo de reprodução do espaço da metrópole.
Assim, a dinâmica urbana ganha um elevado grau de complexidade, a metrópole, o centro, o nó da rede se reproduz, reproduzindo , na escala local, a contradição do lugar e do mundial que se anuncia, contradição esta que se materializa nas novas formas urbanas onde a conquista do espaço, como condição da reprodução das relações sociais, se cumpre pela extensão da propriedade privada. Uma nova forma de planificação integrando-se numa estratégia e práticas globais.
Esses processos aludem uma nova ordem espaço - temporal que se vislumbra a partir do processo de constituição e mundialização da sociedade urbana que é passível de ser analisada a partir da metrópole pois é aqui que, em todos os lugares, misturam-se os sinais de uma modernização imposta na morfologia urbana (através de novas formas arquitetônicas, construção de novas e largas avenidas destinadas ao tráfego cada vez mais denso, que se apresentam como imensas cicatrizes no tecido urbano), se revelam plenamente. Se de um lado, o espaço urbano se afirma enquanto forma, de outro lado, revela na especificidade de sua produção espacial, um conteúdo social, o espaço como fio condutor para o entendimento do mundo moderno aparece através da análise da metrópole como forma material das relações de reprodução no seu sentido amplo; elemento de mediação entre o lugar e o mundial.
É assim, também, que a predominância do valor de troca, como extensão do mundo da mercadoria se revela enquanto produto de lutas surgindo a partir de relações sociais contraditórias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do processo de reprodução lato senso onde as batalhas se resolvem pelo jogo político das forças sociais e, nesse sentido, o espaço aparece como obra histórica que se produz, continuamente, a partir das contradições inerentes à sociedade, produzidas a partir de relações sociais assentadas em relações de dominação-subordinação / uso-apropriação, que produzem conflitos inevitáveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente, enquanto valor de troca (4) e, conseqüentemente, as formas de parcelamento e mercantilização do solo urbano. Por outro lado, a reprodução das relações sociais se processa agora, pela lógica de ações políticas e pelo controle sobre a técnica e o saber. A presença contraditória do estado no espaço, fundada numa estratégia, que se quer hegemônica, organiza as relações sociais e de produção através da reprodução do espaço, enquanto ação planificadora onde o espaço do "habitar" aparece como algo secundário.
Esses elementos caracterizam um momento específico da reprodução; nessa direção a análise da metrópole aparece como um grande desafio. Ultrapassar o limite estreito da produção do espaço enquanto mercadoria e do cidadão enquanto força de trabalho, torna necessário, refletir o espaço urbano em seu sentido mais amplo, o espaço geográfico como uma produção social que se materializa formal e concretamente em algo passível de ser apreendido, entendido e apropriado pelo homem, como condição e produto da reprodução da vida. A relação entre o habitante e cidade é atravessada por modos de apropriação e usos envolvendo uma multiplicidade de elementos. A análise do fenômeno urbano sublinha o que se passa fora do âmbito do trabalho, mas ligado a ele, com isso acentua a esfera da vida cotidiana, de modo que a reprodução do espaço urbano articulado e determinado pelo processo de reprodução das relações sociais se apresenta de modo mais amplo do que relações de produção estrito senso (a da produção de mercadorias), envolvendo momentos dependentes e articulados; nesse sentido o plano da reprodução se impõe àquele da produção.
Podemos, para concluir nosso raciocínio, sugerir a hipótese de que os problemas detectados na metrópole paulista são mundiais, a reprodução do espaço urbano se realiza revelando dramas e estratégias que invadem e determina a instauração do cotidiano no âmbito da sociedade urbana.
Bibliografia
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SASSEN, Saskia. A cidade global in Reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil. São Paulo, ANPUR/Hucitec, 1993.
Notas:
1. Em 1993, por exemplo a produção do setor da construção civil era responsável por 5 % do PIB brasileiro 5%
2. Dado para segundo semestre de 1998
3. "Desde a industrialização o tempo tornou-se uma norma central de julgamento e avaliação da sociedade urbanizada , notadamente pela temporalização de todas as dimensões do mundo do trabalho" (Scherrer in Revista CNRS, La Ville, p. 67) .
4. Idéia também desenvolvida
em nossa tese de doutorado [A (re)produção do espaço
urbano, op.cit.] e retomada em nosso livro: A cidade, São
Paulo, Contexto, 1992.
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