Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] Nº 69 (82), 1 de agosto de 2000 |
INNOVACIÓN, DESARROLLO Y MEDIO LOCAL.
DIMENSIONES SOCIALES Y ESPACIALES DE LA INNOVACIÓN
Número extraordinario dedicado al II Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
QUE INOVAÇÕES POSSÍVEIS PARA O GOVERNO URBANO EM LISBOA?
João Seixas
Doutorando da Universidade Autónoma de Barcelona
Na metrópole Lisboeta, perante as acentuadas alterações registadas nos últimos anos quer em termos das diferentes dimensões estruturais, quer no âmbito das percepções sociais dos problemas urbanos, com a correspondente exigência de uma distinta postura e urgência de actuação política, não se tem ainda percepcionado uma efectiva corrente de mudança dos actuais enquadramentos sócio-políticos e administrativos vigentes. Posicionamentos cívicos com difusas representações, uma contínua cultura de descricionaridade dos círculos de decisão política (especialmente a nível local) importantes questões normativas e processuais e lacunas ao nível da integração de estratégias e clarificação de responsabilidades, tem dificultado profundamente esta evolução. Em algumas áreas sentem-se interessantes iniciativas e inovações, mas não se pode dizer que estas iniciativas sejam parte de uma efectiva onda de motivação cultural e política. Perante as indefinições dos movimentos cívicos, parece competir ao Estado o papel de alavanca da mudança. Mas é precisamente no seu seio que se encontram algumas das maiores dificuldades. Um ambiente de maior governância urbana em Lisboa poderia depender, se a breve trecho, de particulares situações político-partidárias. Mas dadas as fortes ligações entre os aparelhos de Estado e partidários, os caminhos passam essencialmente por uma evolução das motivações sócio-culturais, vontade de participação cívica, e uma correspondente auscultação do poder político perante estes movimentos.
Palavras-Chave: Portugal, Lisboa, Governância Urbana, elitismo político, participação cívica.
In the metropolis of Lisbon, the strong changes felt both in terms of the different structural dimensions, and in terms of the social perceptions of the urban issues, with the demand for a new political environment, has not yet corresponded to an effective change of the present social, political and administrative frameworks. Diffuse civic urban representations, a continuous political discretion culture (mainly at the local level), relevant normative and procedural issues and lacks on the strategic and integration responsibilities, is seriously affecting this evolution. In some areas there has been some relevant initiatives and innovations, but it cannot be said that these efforts are part of an effective new wave of cultural and political motivation. In front of the difficulties of the civic movements, it seems that it would be the State the actor who should have the main leverage role for change. But it is precisely within its body that most of the main problems arise. An urban governance environment in Lisbon can depend (if on short term) on particular political and party situations. But due to the inner linkages between the state and party apparels, the paths must come mainly from the evolution of the civic motivations, the will for participation, and the corresponding auscultation of the political power for these movements.
Key-Words: Portugal, Lisbon, Urban Governance, Political Elite, Civic Participation.
Jordi Borja
Resultado de um crescente despertar de consciência, desde
há algumas décadas que as diversas dimensões de sustentabilidade
e qualidade de vida urbana se têm vindo a tornar cada vez mais prementes
no imaginário e preocupações sociais, e por consequência,
se têm integrado no enquadramento da política, do planeamento,
da elaboração de estratégias, dos mais variados processos
de reflexão e de tomada de decisão desde as instituições
formais, até à consciência de cada cidadão.
No âmbito de uma reflexão iniciada já à algum tempo, e empiricamente baseada numa série de entrevistas conduzidas a diversos actores que, de uma forma ou de outra, actuam e opinam sobre a região de Lisboa1, algumas ideias, mesmo que em certo sentido dedutivas, começam a tornar-se manifestas.
Novas realidades necessitam de novas actuações
Surge de uma forma muito clara a confirmação de uma urgência de mudança. Por uma miríade de dimensões que aqui não debateremos em detalhe, o espaço e a condição de urbanidade na metrópole de Lisboa, assim como as suas distintas representações sociais, têm assistido a profundas alterações. A grande questão, como bem refere V.M. Ferreira (1997), é que pelas características próprias de uma posição ‘semi-periférica’, mais volátil, da sociedade portuguesa (lembrando as teses de Sousa Santos, 1994), alguns dos fenómenos da globalização com repercussões potencialmente mais graves em termos dos espaços urbanos, como a crescente fragmentação e polarização social e espacial, poderão ter um particular impacto na capital portuguesa, ainda para mais dadas as suas dificuldades de afirmação em uma clara ‘vocação estratégica’. E, contudo, apesar dos cada vez mais evidentes alertas, esta evolução não tem resultado na prática em grandes alterações nos sistemas de gestão e actuação política, e num maior exercício de cidadania.
Pela sua natureza, estas mudanças não podem deixar de ter uma índole essencialmente estrutural. Mudar práticas sociais de baixa propensão para a participação associada e mobilização política (ainda profundamente presentes, como mostra o estudo recentemente conduzido por Villaverde Cabral, 1999b), aliadas a sistemas muito próprios de interdependências de poder político ligados a uma cultura de círculos fechados (Rosa Pires, 1994), práticas essas à muito estabelecidas e enraizadas na cultura portuguesa, implica um longo processo de aproximação e aprendizagem, onde o compromisso e a perseverança têm que ser necessariamente muito fortes.
As diversas auscultações realizadas apontam caminhos bem dedutíveis: uma maior mobilização cívica; alterações no sistema político-institucional e nos processos de participação pública; desburocratização e flexibilização administrativa; fomento de canais de cooperação e partilha de informação; e também urgentes alterações nos sistemas legais e normativos, em termos de distribuição e gestão de recursos, planeamento territorial, poder local e democracia.
Perante estes considerandos, imediatas questões se colocam: Estarão as estruturas existentes, nomeadamente a cultura cívica e política da sociedade, e os diferentes níveis de governo, preparadas para as exigências de uma fundamental inovação na gestão urbana? Estarão receptivas a uma nova visão, mais integradora, interdependente nos seus diferentes conceitos e abordagens, deixando para trás posturas de equacionamento tradicionalmente sectorializado de cada questão, obrigando a redefinições institucionais e de relações de interdependência de poderes? Estarão estas estruturas clássicas de poder preparadas para novas formas de interdisciplinaridade de acção política? ...abertas perante uma nova postura de responsabilidades e de legitimidade, e um novo tipo de processos de negociação, discussão e tomadas de decisão ao mesmo tempo eficazes e efectuados de forma democrática? E, não menos importante, estamos nós, cidadãos, prontos a entrar activamente neste campo, responsabilizando-nos efectivamente com parte significativa do estado e evolução da condição e ambientes urbanos, e conscientes da complexidade de construção de uma estrutura de órgãos cívicos participativos?
Ambientes de Lisboa
Perspectivas e Posicionamentos Cívicos
Como se esperaria, alguns dos tópicos levantados mais salientes ligam-se ao exercício activo de cidadania política. Que sucede em Lisboa? De acordo com um estudo recentemente efectuado (Observa, 1999), deparamo-nos com uma elevada componente de ‘abstracção’ dos cidadãos perante representações espaciais comuns, apesar da visível ‘simpatia’ pelas áreas e questões levantadas. Uma clara diversidade de significações em jogo, mesmo em termos locais, dificulta o surgimento de acções abrangentes e de uma motivação cívica cultural nesse sentido. Séculos de fraco envolvimento político, de uma cultura de descricionaridade das comunidades políticas, aliados às múltiplas ‘novas centralidades’ de um território cada vez mais difuso com é a Área Metropolitana de Lisboa, dificultam profundamente representações sociais minimamente abrangentes e relevam a propensão dos cidadãos em actuarem quase exclusivamente em movimentos do tipo NIMBY2. Ora, como Borja (1998) bem elucida, um ângulo fundamental para pressentir o exercício de cidadania é a actuação dos cidadãos perante os espaços públicos. Será nestes campos onde mais se manifesta a ‘crise de urbanidade’.
Estará a sociedade portuguesa a evoluir no sentido do desenvolvimento de uma motivação cultural e política suficientes para influenciar os actuais enquadramentos? Villaverde Cabral (1999a) relembra que as estratégias de afirmação sócio-cultural das classes médias em Portugal - aquelas que, por princípio, deveriam ser o embrião das motivações culturais e políticas - continuam a ser mal conhecidas. Perante este quadro, quase todos os entrevistados parecem convergir na opinião de que deveria competir ao diversos órgãos do Estado, e às ‘elites de governação’, um papel de elemento dinamizador da necessária motivação cívica, numa sociedade com grandes dificuldades de intervenção efectiva. Mas serão estes processos possíveis?
Apontam-se caminhos bem reconhecidos: maior investimento público em campanhas de divulgação de informação e sensibilização nos espaços e comunidades locais; maior discussão e concertação entre diferentes actores; alterações aos processos de participação pública, estímulos aos mecanismos de intervenção, fomento de parcerias com actores sociais, desburocratização e maior agilidade dos processos. Tudo isto aliado, evidentemente, a uma maior preocupação e gestão estratégicas e integração de políticas.
E no entanto, alguma dinâmica social se pressente. Na última década assistimos a alguns (poucos, mas significativos) movimentos sociais que desafiaram e paralisaram mesmo algumas decisões políticas entretanto tomadas3, embora estes movimentos se tenham reflectido essencialmente em termos de questões locais muito concretas. Mas estas iniciativas poderão parecer um interessante prelúdio para a mudança de alguns paradigmas estabelecidos, em termos da governação urbana da cidade e capacidade de intervenção.
Se estes movimentos críticos serão mais fortes do que os ‘status-quo’ de natureza estrutural sócio-política existentes, e se uma evolução de facto será possível sem alguma forte descontinuidade, ainda é difícil dize-lo. O ‘status-quo’ actual é, paradoxalmente, flexível o bastante para se re-inventar e re-estabelecer numa nova cultura de actuação e exigência, mantendo o controlo dos processos de decisão (e mesmo de reflexão), e continuando com procedimentos fechados e de circulação de informação em círculos restritos.
A Discricionaridade das ‘Comunidades Políticas’
Todas estas reflexões trazem a este terreno relevantes considerações de ciência política. Os conhecidos ‘círculos e processos informais de poder e autoridade’, embora algumas vezes permitam o contorno de incómodos e obsoletos procedimentos administrativos, e portanto apresentando vantagens em termos de eficácia, representam vícios estruturais profundos. Uma secular cultura da administração que sempre privilegiou o exercício da autoridade em detrimento da pluralidade na fundamentação da tomada de decisões acarreta a falta grave de dimensões essenciais em qualquer processo político. Exemplo claro, bastará relembrarmo-nos de uma situação tão recente como as atitudes constantes de ‘dissimulação’ e mesmo ‘sonegação’ de informação por parte das entidades gestoras do projecto urbano da Expo’98, perante o Observatório entretanto criado (Ferreira e Indovina, 1999).
O não envolvimento e participação de outras entidades retira a estas (ou não lhes dá) a possibilidade de participação nas reflexões e decisões, não permitindo importantes estímulos a uma cultura mais colectiva de envolvimento. Ao mesmo tempo, através da impossibilidade de participação de outras vozes nos processos, que trariam novas ideias e sugestões, estes tornam-se, quase sempre, mais pobres de conteúdo e alcance do que efectivamente poderiam proporcionar. E sem dúvida mais volúveis perante interesses particulares. Estas formas de actuação tornam-se terrenos extremamente propícios para o desenvolvimento de uma cultura política que facilita a intervenção de clientelismos fechados, e mesmo perigosas aberturas a favores e corrupção.
No actual panorama Português, a dimensão político-partidária é crucial nesta reflexão. Tornou-se a principal lógica nos processos de tomada de decisão no sistema governamental, seja este local ou central. Estas comunidades políticas, que se expressam subtilmente sob diversas formas e fileiras nas mais variadas áreas de governação, detêm um importante controlo em relação às formas de participação, e por conseguinte possíveis formas de influências de outros actores em qualquer processo de tomada de decisão.
Santos Silva (1997: pp. 44) realça que "o debate ao redor das políticas públicas é claramente um debate político. O modo como as entidades de tomada de decisão interpretam situações, definem objectivos e constróem cooperação (...) materializam-se em acções cuja legitimidade é, em primeiro lugar, política, e só depois, técnica". Paradigmático exemplo, e bastante simbólico dado a sua potencial (e falhada) relevância, foi o Plano Estratégico de Lisboa, iniciado com a gestão de Jorge Sampaio. Ao longo dos anos 90, e devido essencialmente a esforços de protagonismo e re-formulação de sensibilidades políticas, o próprio processo de evolução estratégica acabou por acentuar muitas desconfianças e divisões no seio da autarquia (como Soares, em 1990, já pressupunha), e o ‘élan estratégico’ do início da década de 90, na sua grande parte, desde há muito que se perdeu.
Em termos de política local, uma firme liderança municipal num processo de evolução para formas de governação urbana e administração de conflitos mais alargada, implica necessariamente uma forte sensibilidade política na condução dos processos de mudança, na sua regulação e gestão. Esta delicada ‘gestão de tensões’ tem consequências políticas significativas, neste quadro estrutural de falta de fronteiras minimamente claras entre a prática do planeamento e gestão territorial, e os processos políticos.
Os líderes públicos eleitos, sujeitos a esta lógica fracturante de distintas forças e inércias, acabam por colocar uma ênfase substancial das suas acções e estratégias em acções de natureza muito mais casuística, com reduzido efeito de retorno em termos de planeamento e visão estratégica, mas com importante impacto político. Dedicando-se mais particularmente a um dado projecto, ‘o terreno a desminar’, mesmo que difícil, é bem mais perceptível. Preferem, as mais das vezes, (ou, pela lógica inapelável do actual sistema, acabam por ter que preferir) agir por meio de projectos individuais, bem diferentes de uma lógica de estratégia integrada. Estas formas de gerir um território (deliberadas ou não), aliadas à lógica do sistema eleitoral actual, conferem um inevitável carácter populista do exercício do poder público, e a uma cultura discricionária e mais fechada no exercício desse poder. Relembrando o estudo efectuado a propósito da Expo’98, as práticas apontam para ‘a clara prevalência dos interesses eleitorais da elite política e dos interesses materiais dos seus ‘grandes eleitores’, sobre o interesse colectivo’ (Ferreira e Indovina, 1999).
Um outro aspecto essencial prende-se com o actual sistema de obtenção de recursos por parte das autarquias. Grande parte das receitas locais provêm da execução de construção nova, com valores matriciais mais ajustados aos actuais valores de mercado. As autarquias, perante a sua quase nula influência na obtenção de recursos pelo Estado Central, tornam-se profundamente dependentes destas receitas, que podem gerir mais directamente. Este sistema, associado a uma situação de déficit crónico dos governos locais, incentiva profundamente a dependência e as interligações dos autarcas com grupos privados. E resulta totalmente contra os objectivos de estratégia e sustentabilidade urbana, criando-se grandes pressões urbanísticas mesmo quando as intenções dos autarcas são as melhores.
Falta de integração de poderes e responsabilidades
Ao longo dos últimos 25 anos, a afirmação do poder local em Portugal tornou-se sem dúvida numa das essenciais áreas de sucesso face aos grandes desígnios nacionais prosseguidos após a revolução. Em termos de afirmação da democracia, de forma alguma tal se põe em questão. Permitiu, quiçá pela primeira vez de uma forma efectiva, uma importante dose de descentralização política e um novo campo de acção e influência em termos de importantes áreas de responsabilidade e afirmação local.
Porém, todo este processo de descentralização política está ainda longe dos seus mais nobres objectivos. Poder-se-á dizer que existem ainda áreas de poder muito centralizadas. Mas, neste momento, existem questões bem mais urgentes, sem as quais não se poderá avançar efectivamente num processo de reforço dos poderes locais. Como vimos acima, as grandes lacunas de participação cívica e as tendências do actual sistema político, ligadas a ‘perversões normativas’ como as fontes de receitas fiscais locais, são sérios problemas. Uma outra dimensão essencial é a profunda fragmentação sectorial que existe ao nível das distintas práticas de gestão local. A maioria da diferentes instituições intervenientes em áreas como os transportes, os espaços públicos, a habitação, pouco ou nada têm que ver com os poderes locais. Não existe gestão de cidade com políticas sectorializadas e pontuais, sem estratégia e integração. E, por sectorializadas, estas políticas tornam-se cada vez mais submetidas às leis de mercado e aos objectivos da iniciativa privada.
No conjunto, o panorama que se apresenta às autoridades locais é o de uma autonomia municipal muito dependente de outros actores com estratégias (e dependências) de actuação política distintas, uma organização interna rígida e propícia a divergências e conflitos, e limitados poderes de planeamento. Porém, ao mesmo tempo, estas confrontam-se com responsabilidades cada vez mais relevantes. Os entrevistados foram praticamente unânimes, ao declarar que a fragmentação de responsabilidades é claramente uma das maiores dificuldades na governação urbana local, e na própria credibilidade municipal. Um quadro de clara assunção de responsabilidades será uma condição ‘sine-qua-non’ para uma intervenção municipal mais eficiente e democrática, nas suas diferentes áreas.
Estas reflexões destacam a importância dos esforços de articulação entre diferentes órgãos públicos, para o desenvolvimento da governação. Evidentemente, e apesar das dificuldades, existem diversos exemplos deste tipo de parcerias, embora haja a noção de que o caminho a percorrer é ainda bem longo. Nos transportes, talvez por ser uma área com representação social mais clara e com afectação mais directa no quotidiano dos cidadãos, uma política de racionalização de interfaces, e importantes investimentos numa rede mais multimodal já se começam a fazer sentir. Mas em dimensões menos tangíveis para as lógicas públicas, como os espaços públicos, infelizmente o passo é outro.
Organização Administrativa e Burocrática
O cerne do actual código administrativo provém ainda do tempo do Estado Novo, com pesados e rígidos regulamentos. Este enquadramento é visto, manifestamente, como um forte adversário processual. Alguns dos entrevistados (inclusivé dos próprios municípios) descrevem os ambientes administrativos e processuais com que os poderes locais se confrontam como autênticas ‘teias kafkianas’ de burocracia.
Quando temos a situação de em termos médios, na cidade de Lisboa, um projecto de licenciamento poder necessitar de 2 ou mais anos - sem evidentemente se descurar a primordial função de regulação dos órgãos públicos – é inevitável que se criem tensões, focos de divergência entre as diferentes partes envolvidas, e espaços florescentes para clientelismos. O Departamento de Planeamento Urbano da Câmara Lisboeta referiu claramente que o peso do trabalho processual e administrativo é tão grande, que não lhe permite praticamente nenhum tempo de reflexão e necessário esforço de mudança com vista a uma organização mais eficiente e pro-activa: "as pressões são tão altas, que há uma falta clara de tempo e recursos para parar e pensar em mudança".
Nesta lógica, como um dos entrevistados referiu: "paradoxalmente, em tempos de necessidade de esforços de articulação crescentes, há um abismo cada vez maior entre o sector público e privado, porque o sector privado tem que mudar para sobreviver, enquanto que não há coragem política para modernizar os procedimentos administrativos públicos". É desta linha de pensamento que têm surgido das principais dimensões de justificação ideológica para a privatização de algumas importantes responsabilidades públicas.
Devido a estas redes processuais, desenvolveu-se nos diverso órgãos públicos e seus diferentes departamentos, ao longo de décadas, uma ‘cultura administrativa’ que permite muito pouco espaço para procedimentos, negociações e entendimentos mais flexíveis (veja-se, como um bom texto neste sentido, Pinho, 1997). Ao mesmo tempo, esta situação acentuou o desenvolvimento de processos ‘informais’ de contornar as normas vigentes. E verifica-se, neste ponto, que havendo vontade, a ‘informalidade’ ultrapassa efectivamente muitas regras. Evidentemente, esta forma de actuar coloca uma forte tónica de descrédito no sistema, e no seu próprio seio. Ao mesmo tempo, não promove propriamente a cooperação inter-institucional, pelo menos de uma forma normal, não específica, dependente das ‘iniciativas de ruptura’ de este ou aquele órgão ou departamento.
Porém, o panorama é este: é devido essencialmente a esforços pessoais ou de determinadas equipas de trabalho, que alguns departamentos municipais e outros órgãos locais têm conseguido desenvolver uma postura pro-activa na sua busca de uma acção interna e externa mais eficiente. Se, por sua iniciativa, demonstram que a existência de uma máquina administrativa eficiente, apesar da rigidez inerente do sistema, permite a criação e o desenvolvimento de uma nova cultura de iniciativa e inovação, também revelam caminhos urgentes de mudança do actual enquadramento administrativo do governo público.
Já nos anos 80, autores como Portas (1989 e 1990) afirmavam a profunda urgência de desenvolvimento de uma visão e cultura de planeamento muito menos rígido, que passasse de "defensivo a ofensivo (...) orientando o investimento público e regulando negociações com os diferentes agentes, minimizando ‘rendas parasitárias’, conflitualidades sociais e o consequente desgaste ecológico". Estas ideias permanecem profundamente actuais. Esta "metodologia interactiva (...) pode potenciar a participação de grupos sociais e dos interesses sectorais de uma forma directa; a que mais pode mobilizar vontades e combinar recursos endógenos e exógenos".
Estas considerações apontam para uma urgente alteração do actual enquadramento administrativo e normativo para um quadro de regulação bem mais substantivo, bem como para a necessidade de evolução para uma cultura de planeamento mais flexível, ao mesmo tempo com objectivos e critérios de regulação bem claros. Neste ponto, Portas recorda que este "este estilo de planeamento (...) supõe de um lado uma inteligência política constante do que se pretende (fins) e de como se consegue (meios)". Esta cultura de continuidade é fundamental, se bem que pode muito bem ser, ‘et pour cause’, minada uma vez mais pelas iniciativas de protagonismo do sistema político, como aliás parece acontecer em muitas situações de mudança.
Motivação e acção pública
Posições
Pelas características próprias do sistema social, político e de participação em Portugal, os maiores desafios podem parecer perfilar-se perante os órgãos da administração pública. O desafio de administrar as diferentes formas de ‘co-existência’ em espaços partilhados não só implica a construção normativa desses espaços, mas sobretudo um trabalho árduo e estrutural de encorajamento e mesmo de ‘instigação’ para acções de conexão e esforços comuns entre os diferentes actores territoriais. Exige-se uma ‘promoção da criatividade de acção’ (Sousa Santos, 1994), o estabelecimento de mecanismos e instrumentos de Governação efectivos, uma ‘capacidade para criar e lançar’ esses instrumentos e iniciativas (Healey, 1997).
Porém, lembrando novamente Santos Silva (1997), quando nos fala das possibilidades de desenvolvimento de uma ‘sociedade dinâmica‘ em Portugal (no caso, no sector específico da cultura) este sociólogo proporciona-nos uma reflexão semelhante aos desafios aqui presentes: a ideia de ‘criatividade de actuação’ não está madura no seio do sector público, demasiado ocupado em ‘lógicas de competição’ entre diferentes departamentos e iniciativas. No enquadramento Português, a difícil separação das actividades processuais perante as características políticas coloca constrangimentos claros a esta evolução.
O que será necessário para fomentar uma efectiva evolução da motivação cultural? Em termos políticos, uma real vontade de mudança, e de gerir essa mudança de uma forma planeada; uma estratégia clara de integração de iniciativas e instituições; a construção de um enquadramento de partilha, concertação e parceria de iniciativas entre os diferentes actores, com distintas visões; formação dos quadros envolvidos nos processos; e, fundamental, o fomento de um empenho de movimentos críticos e envolvimento cívico nos processos de reflexão e decisão. Relembremo-nos que esta área é citada como uma das dimensões de mais destaque no desenvolvimento integrado e bem sucedido de uma cidade como Barcelona, nas últimas décadas (veja-se, por exemplo, Nel.lo, 1998, Borja, 1998, ou Capel, 1994).
Perspectivas
A Sociedade portuguesa, após um quarto de século de vivência democrática, encontra-se num período charneira do seu desenvolvimento, no qual co-existem imagens de um passado que desaparece rapidamente sob os seus pés, e de um futuro que lhe entra, nas suas mais diversas materializações, forte, diário, mesmo inesperado. Como têm dito alguns autores, vivemos muitas realidades de um claro pós-modernismo, aliadas ainda a algumas situações de pré-modernismo. Saber gerir, coordenar (minimamente) e regular estas transições, e particularmente, no campo do desenvolvimento das cidades, será fundamental no sentido de uma sustentabilidade da evolução.
Uma das áreas mais comentadas e considerada como fundamental que o Governo Central tem que regular e reforçar é a necessidade da chamada "nova geração de planos". Planos que incluam visões de estratégia, integração, e no fundo, de governação, de flexibilidade de negociação e de partilha de ideias e esforços, de desenvolvimento de formas processuais como instrumentos, para além dos evidentes reforços de responsabilidades e recursos.
Mas, evidentemente, novos planos não chegam, nem nunca chegarão. As mudanças passam por necessárias profundas alterações em diversos campos interligados com uma gestão do território socialmente sustentável. Vimos com o sistema de financiamento local é profundamente perverso. Outro exemplo será a política de solos, onde grandes distorções que se agudizam há muito, alargam diversas irracionalidades e perversões do sistema.
Neste sentido, acentua-se a necessidade de desenvolvimento de uma estrutura de instituições cívicas, fora das lógicas burocráticas e dos vícios públicos e municipais, oferecendo aos diferentes actores uma maior confiança para a participação. Este aspecto será fundamental. O (aparente) futuro dos chamados Conselhos de Cidade, previstos nos Planos Estratégicos, com possibilidades de poder e influência em diferentes áreas, será sem dúvida um bom passo nesta direcção. Como alguns entrevistados menos cépticos declararam, há sinais de um movimento efectivo, a diversos níveis. Assim, a grande questão liga-se directamente com o difícil desenvolvimento deste movimento (difícil, porque ténue, fraccionado, de todo uniforme e sem uma estratégia própria – e líderes - para essa mesma mudança), e a reacção (ou melhor, adaptação, e mesmo uma ‘apropriação’ do próprio processo de mudança) por parte da cultura de interesses instalada e pelas crescentes tendências de populismo político.
A força das conexões corporativas, o risco das ‘apropriações políticas’ destas e, sem dúvida, as lacunas de representação social nestes órgãos, transmitem duas mensagens claras: Primeiro, que este processo, tal como Roma e Pavia, não se fará num dia; Segundo, tais ‘embates estruturais’ à mudança obrigarão a um papel claro de regulação do processo de mudança por parte dos órgãos que o podem fazer mover - os órgãos públicos centrais.
Serão estes órgãos eleitos os que podem iniciar um efectivo processo de mudança, pois uma grande dose desta pretendida mudança passa por mudanças normativas, legislativas, e de reorganização administrativa, e os órgãos locais encontram-se declaradamente ‘presos’ em profundas teias de dependências e dificuldades administrativas. Sobretudo numa cidade como Lisboa, onde 92% do investimento público é efectuado pela administração central, e apenas 8% pela administração local (INE, 1997).
Esta ‘pressão’ na responsabilidade e liderança dos processos de mudança na administração pública não desresponsabiliza de forma alguma os deveres da sociedade civil na sua participação. A sociedade tem que agir e tem que unir esforços nesse sentido. É fundamental o desenvolvimento de uma motivação cultural urbana e a consequente tomada de acções políticas no sentido da governação participada e preocupada com as dimensões mais ligadas à qualidade de vida e ao desenvolvimento de um proveito de cidadania. Felizmente, e apesar de existir ainda uma clara distinção entre ‘simpatia’ e compreensão, e a tomada de acções concretas de apoio e participação, alguns resultados de estudos efectuados (e aqui já citados) parecem revelar um crescendo de preocupação com as problemáticas do ambiente urbano, nomeadamente na população mais jovem e instruída.
Inovação, Cidadania e Vontade Política
Em termos da vontade do poder político, e independentemente do nível hierárquico em que nos situemos, se por um lado se sente a necessidade de uma certa ruptura, por outro mudanças estruturais implicam evidentemente compromissos alargados. As diferentes formas e círculos de poder espalhadas pelos diferentes níveis hierárquicos interligam-se, muitas vezes, como um fluxo por forma a se obter um determinado tipo de consenso, seja este do tipo elitista, fechado, ou mais plural (e daí a efectiva força de organizações transversais como os partidos políticos).
Poderão sempre existir departamentos e responsáveis extremamente motivados, pro-activos e com uma cultura inovadora, que através de processos informais instituídos, procurem uma cultura de maior interligação, participação e eficácia nas decisões e planeamento. Porém, sem uma efectiva dinâmica de mudança, estas ‘proto-soluções’ dificilmente se poderão tornar numa dimensão estrutural de mudança do sistema existente. Além de que muitas vezes estes processos informais, mesmo que plenos de boas intenções, podem trazer, paradoxalmente, perigosas possibilidades de ‘tornear’ outros procedimentos de avaliação e análise importantes e necessários.
Por outro lado, poder-se-á argumentar que eventuais alterações político-partidárias podem trazer inovações significativas em algumas das áreas aqui comentadas. Mas, e tal como em relação às situações referidas na parágrafo acima, também dificilmente estas inovações farão parte de uma mudança estrutural. Neste âmbito, devido às grandes ligações entre os aparelhos de estado e os aparelhos partidários.
Por conseguinte, e em primeiro lugar, temos que uma parte fundamental num processo de mudança terá que partir dos órgãos do Governo Central. A responsabilidade de alteração de situações do actual enquadramento normativo e processual que pervertem profundamente o sistema, como as actuais fontes de receitas autárquicas, ou os mecanismos legais dos diferimentos tácitos e direitos adquiridos, pertence por inteiro aos poderes centrais.
Mas como sabemos, ao nível central as regras deste complexo jogo não são muito distintas, serão quiçá bem mais complexas. Assim, muito provavelmente os caminhos mais inovadores terão que ser feitos pela própria sociedade civil. Num quadro, como vimos, de uma estrutural falta de cultura de participação e de difícil reconhecimento perante representações sociais comuns, a motivação cultural da sociedade, e especialmente das suas vozes e movimentos mais influentes, torna-se muito provavelmente a pedra de toque para a inovação na governação urbana.
Caminhos? Algumas propostas passarão fundamentalmente pelo reforço das associações cívicas já existentes, e pelo desenvolvimento de novos espaços de reflexão e intervenção de índole eminentemente local. Mas poder-se-á esperar um apoio efectivo a estas iniciativas, por parte dos órgãos e instituições políticas? Como lembra M. E. Gonçalves, num recente artigo no jornal Público (Março de 2000), alguns exemplos de mobilização social parecem ser "indicativos de que a cultura cívica dos portugueses está a evoluir (...) mas é menos evidente que esteja em curso um processo paralelo de mudança de atitudes e práticas do aparelho político-administrativo. Neste capítulo, as inovações representam sobretudo ‘conquistas de movimentos sociais, e não tanto o resultado de um processo de auto-reflexão interno ao poder político e à administração".
De facto, não será muito verosímil vermos grandes perspectivas de apoio a ‘alavancagens cívicas’ por parte dos órgãos públicos. Para além dos apoios passíveis de existir neste ou naquele programa, o necessário será uma real vontade política de suporte perante a demonstração de motivações cívicas. Como, por exemplo, a busca e concretização de iniciativas do género ‘parcerias sector público - movimentos cívicos’ (incluindo a participação de privados, evidentemente). Não obstante, em algumas situações tem-se verificado uma certa vontade política. Mas até agora são excepções que infelizmente confirmam a regra.
Evidentemente, as influências às lógicas de poder
e motivações de acção existem também
fortemente ao nível da alta política. Com a movimentação
da sociedade, os líderes e decisores políticos (não
apenas públicos) terão maiores preocupações
em assimilar, tentar compreender e fomentar uma nova cultura de envolvimento,
integração e participação que, em certo sentido,
poderá parecer-lhes contrária ao seu poder. Será um
‘potencial social’ que, a realmente revelar-se, não deixarão
de olhar com atenção.
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Notas:
1.Entrevistas conduzidas a actores e observadores privilegiados,
desde responsáveis das autarquias locais da Área Metropolitana
de Lisboa a entidades privadas com clara influência urbana, passando
por investigadores universitários, consultores e outros ‘opinion
makers’
2. ‘Not in my Backyard’, sigla inglesa muito reconhecida
3.Relembremo-nos, por exemplo, das contestações
nos casos do Plano de Ordenamento da Zona do Porto de Lisboa (POZOR), ou
da perspectivada construção dos molhes na foz do Rio Douro,
no Porto.
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