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Scripta Nova. 
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. 
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 69 (30), 1 de agosto de 2000
INNOVACIÓN, DESARROLLO Y MEDIO LOCAL.
DIMENSIONES SOCIALES Y ESPACIALES DE LA INNOVACIÓN
Número extraordinario dedicado al II Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
URBANISMO E MODERNIZAÇÃO DAS CIDADES:
O "EMBELLAZAMENTO" COMO IDEAL, LISBOA, 1858-1891

Álvaro Ferreira da Silva
Faculdade de Economia
Universidade Nova de Lisboa

Ana Cardoso de Matos
Departamento de História
Universidade de Évora 


Urbanismo e modernização das cidades: o "embellazamento" como ideal, Lisboa, 1858-1891 (Resumo)

Este artigo procura abordar os desafios de requalificação urbana colocados pela primeira experiência de globalização na segunda metade do século XIX. Só desta forma as cidades poderiam aproveitar os benefícios provocados pela maior internacionalização das economias nacionais. A cidade de Lisboa viveu também este processo de emulação de experiências no domínio urbanístico ou de transformação das infra-estruturas. Neste texto destaca-se os diferentes momentos por que passou este projecto de modernização da cidade de Lisboa, as razões para o seu sucesso no final da década de 70 do século passado, bem como a sua justificação ideológica, assente num ideal de «embelezamento» da cidade.

Palabras clave: urbanismo/ Lisboa/ recalificación urbana


Urbanization and modernization of cities: the "embellazamento" as ideal.  Lisboa, 1858-1891 (Abstract)

This article analyses the urban development and requalification challenges posed to the city by the first globalization experience throughout the second half of the nineteenth century. Only in this way the benefits coming from the greater internationalization of the national economies could be transmitted to the cities. Lisbon also experienced this process of emulation in the urban layout and the transformation of urban infrastructures. In this article is stressed the timing of this modernization project in the city of Lisbon, the reasons for its success at the end of the 1870s, as well as its ideological justification.

Key words: urbanism/ Lisbon/ urban transformation


Globalização e cidade na segunda metade do século XIX

O objectivo desta comunicação é reflectir sobre o modo como na segunda metade do século XIX foram encarados em Lisboa os reflexos da primeira experiência de globalização da economia internacional, do ponto de vista dos desafios que colocava à cidade. Este processo de globalização é quase sempre encarado sob a perspectiva de uma maior inserção na economia mundial por parte das economias nacionais, através da mais intensa circulação de bens, capital e mão-de-obra. Nesta comunicação a acepção é mais ampla.

A perspectiva presente nesta comunicação é a de que a cidade é profundamente tocada por este processo de globalização. Em primeiro lugar porque a maior integração da economia internacional se reflecte no espaço urbano através do influxo de bens, pessoas e capital, e pelos desafios ambientais colocados pelo acréscimo da pressão demográfica e das actividades económicas. Em segundo lugar porque a internacionalização das economias ao longo da segunda metade do século XIX representou um desafio para o mundo urbano, no sentido de pensar a requalificação das cidades de molde a que pudessem beneficiar dos frutos desta experiência de globalização.

É sob este último ponto de vista que o tema desta comunicação se cruza com os fluxos de informação tecnológica e a padronização de procedimentos que acompanham esta experiência de internacionalização. Nesta perspectiva, são revalorizados aspectos tão importantes quanto o aumento do volume do comércio internacional, o surto das migrações de massas ou o desenvolvimento do investimento externo, os três temas mais frequentemente associados à integração da economia mundial na segunda metade do século passado.

Passemos, pois, em revista o modo como a cidade se relaciona com o surto de integração da economia internacional a partir da década de 60 do século passado.

Localizavam-se em contexto urbano algumas das transformações tecnológicas e económicas mais importantes que se puderam observar ao longo das últimas décadas do século passado. Após quase um século em que o aumento da população das cidades europeias parecia exceder os meios de gestão da vida urbana, na segunda metade de Oitocentos a tecnologia começava a oferecer soluções para lidar com os problemas gerados ao nível sanitário, de circulação e de controlo social pelo intenso crescimento demográfico. Ora, foi fruto de um activo movimento de intercâmbio e de emulação de experiências que se processou uma rápida difusão de inovações entre as principais cidades do continente europeu durante este período.

As infra-estruturas urbanas no domínio do abastecimento de água ou de gás, do transporte ou circulação, associadas aos seus reflexos urbanísticos, constituem uma janela ideal para compreender este processo de transformação. Estes são os sectores que ao longo da segunda metade do século passado personificavam a vida moderna, a banalização da tecnologia e a industrialização da vida quotidiana. Simbolizavam também os novos padrões de conforto, que passam a fazer parte das exigências ou dos sonhos das classes médias das cidades oitocentistas. Não estava em causa apenas a internacionalização da economia, mas também a difusão de um modo de vida. E neste domínio provavelmente nenhum outro fruto da civilização industrial terá tido efeitos tão visíveis e salientes na banalização da tecnologia e na industrialização do quotidiano das cidades quanto a modernização das diferentes infra-estruturas urbanas. A iluminação a gás e os seus efeitos na vida urbana é bem um exemplo desta outra perspectiva com que se pode encarar a relação entre infra-estruturas urbanas e globalização (Schivelbusch, 1988), mas o mesmo se poderia sugerir relativamente à energia eléctrica (Hughes, 1983). Mesmo uma transformação mais prosaica, como a modernização do equipamento sanitário ­ abastecimento de água e esgotos ­, podia ser conotada com o mesmo cunho revolucionário de transformação do ambiente urbano, como já foi salientado noutra ocasião (Silva, 1998).

A industrialização do equipamentos urbanos no século XIX é inseparável da criação do moderno urbanismo e do carácter estratégico que a intervenção urbanística passa a assumir na resolução dos problemas urbanos e na qualificação das cidades. O urbanismo do século XIX constituiu uma resposta aos problemas criados pelo intenso crescimento urbano observado na Europa desde a segunda metade do século XVIII; mas foi também fruto de uma imagem da cidade que incorporava os efeitos das novas infra-estruturas urbanas numa outra concepção do espaço. O carácter estratégico assumido pela intervenção urbanística deveu-se ao facto de se encontrar na confluência de todos os grandes problemas com que se debatia a sociedade oitocentista: circulação, saneamento básico, melhoria do ambiente urbano, transformação estética da cidade. Ruas amplas eram consideradas essenciais para a salubridade urbana, dotando a cidade das volumosas massas de ar em movimento que afastassem as emanações miasmáticas, na visão da medicina profiláctica da segunda metade do século passado. As modernas infra-estruturas urbanas ­ não apenas ao nível dos transportes, mas também considerando os equipamentos de drenagem e de abastecimento de água ­ impunham novos constrangimentos sobre o desenho viário e sobre a disciplina na sua utilização. O traçado rectilíneo, regular e amplo das vias públicas fornecia o ideal de cidade aprazível para o urbanismo da segunda metade do século XIX. A estrutura reticular do ordenamento urbano permitia a reconciliação entre o interesse da circulação, da salubridade e do embelezamento (Silva, 1997). Um movimento internacional de cooperação e de difusão deste novo ideal de cidade passou a ser um impulso importante para a sua emulação em diferentes contextos urbanos e constitui por isso uma componente por vezes esquecida desta primeira experiência de internacionalização da economia (Sutcliffe, 1983).

Por último, este processo de modernização da cidade é entendido num quadro de competição internacional entre metrópoles e capitais. Do ponto de vista dos poderes públicos é esta dupla componente de modernização das infra-estruturas e de novo urbanismo que mobiliza vontades e recursos financeiros, que organiza a emulação de experiências e que cria a imagem de um padrão de modernidade da vida urbana assente no conforto proporcionado pelas novas formas de energia, transporte e saneamento básico, ou nos novos espaços de sociabilidade.

Na próxima secção iremos detalhar a primeira vez que se projectou um programa de requalificação urbana da cidade de Lisboa, em articulação com as mudanças provocadas pela maior integração internacional da economia portuguesa. O final da década de 50 do século XIX surge como o momento em que tal programa é formulado. A terceira secção abordará um segundo tempo nesta tentativa de transformar a malha urbana lisboeta e de modernizar as suas infraestruturas. Circunstâncias excepcionais estiveram associadas a uma maior longevidade e sucesso deste segundo momento, aspecto que também se eclarecerá nesta secção. A última secção conclui.

O programa de melhoramentos materiais em meio urbano: primeiro tempo (1858-1870)

O programa de «melhoramentos materiais» associado ao fontismo(2) é bem conhecido. Ficou associado à tentativa de melhorar as infra-estruturas de circulação no território português, promovendo uma maior capacidade de integração do espaço interno e esboçando as ligações internacionais, ferroviárias e marítimas. Simboliza, por isso, o modo como se reflectem em Portugal os aspectos mais directamente visíveis do movimento de internacionalização das economias ao longo da segunda metade do século passado. Menos sublinhada é a existência de um programa de melhoramentos materiais em meio urbano, assente na requalificação da capital e que foi esboçado em dois tempos ao longo da segunda metade do século XIX.

A primeira etapa surgiu no seguimento do impacto da crise sanitária de 1856-1858, como resposta à situação criada pelos surtos epidémicos de cólera, febre amarela e difteria, que se saldou pela segunda maior crise de mortalidade de todo o século XIX (apenas ultrapassada no ano de 1833), e por níveis de mortalidade sempre acima dos 50 óbitos por mil habitantes ao longo de três anos, quando os valores em anos médios se situavam entre 25 e 30 por mil (Rodrigues, 1995). Por outro lado, é ainda uma crise de mortalidade que se repercute de forma igualmente nefasta por todo o espaço da capital, com um coeficiente de variação das taxas de mortalidade por freguesia na ordem dos 32% (contra uma média secular de 87%), e 46% no outro ano de sobremortalidade, em 1833.

Devido ao carácter maciço dos surtos epidémicos e à reduzida protecção dada pela segmentação residencial na sua incidência (traduzida pelos menores coeficientes de variação na incidência epidémica por freguesia), este é um momento de reconhecimento generalizado da precaridade do equipamento sanitário e das deficientes condições de habitabilidade dos edifícios da cidade. Na imprensa, na Câmara dos Deputados, em relatórios da Sociedade Médica e no seio da vereação, este foi um período de intensa defesa da necessidade de modernização das infra-estruturas da cidade.

A resposta dos poderes públicos incidiu em três áreas que se consideraram como de intervenção imediata: o aumento do volume de água, retomando-se por parte do Ministério das Obras Públicas o propósito de promover o concurso público para o abastecimento domiciliário de água por parte de uma companhia privada; a ampliação e melhoria da velha rede de esgotos, herdada da reconstrução pombalina; a intervenção urbanística, proporcionando-se melhores condições de circulação e de higiene. Por outro lado, em Janeiro de 1858 o município de Lisboa solicitou ao engenheiro da câmara (P. J. Pézerat) que apresentasse um plano de intervenção municipal que respondesse à crise sanitária. Em Maio do mesmo ano estava elaborado, constituindo-se como o primeiro instrumento de intervenção urbanística e sanitária por parte da câmara. É certo que estava longe dos modelos de planeamento do desenho urbano que começavam por esta altura a surgir noutras cidades, sendo sobretudo um elenco de obras e investimentos de execução urgente por forma a melhorar a salubridade da capital. No ano seguinte, traduzindo bem o processo de circulação de informação e de emulação de experiências que caracterizou o período, o engenheiro Pézerat seria encarregado de visitar a cidade de Paris e estudar os melhoramentos e a organização dos serviços municipais. Do relatório entregue à câmara, e não publicado, haveria Pézerat de ir buscar as propostas e considerações que faz na sua obra Mémoire sur les études d'améliorations et embelissements de Lisbonne (1865).

Em suma, pela primeira vez se esboça um projecto integrado para lidar com a crise sanitária. Nunca foi realizado. As dificuldades financeiras vão impedir a concretização deste projecto de melhoramentos das condições sanitárias (Silva, 1999). Em Outubro de 1858 demitiu-se toda a vereação, como protesto contra a inexistência de meios financeiros para resolver o problema do saneamento básico em Lisboa. As respostas continuaram por isso a ser parcelares e sincopadas: reconstrói-se um ou outro troço dos velhos canos reais que ameaçava ruína; atalha-se a qualquer situação mais dramática de insalubridade; alarga-se a rede de esgotos, mas de modo atomístico.

Nas décadas de 60 e 70 do século passado voltou-se à situação de inércia que tinha caracterizado anos anteriores. À debilidade financeira do município associava-se a ausência de propostas técnicas, que proporcionassem a resolução daquele que era o grande problema das infra-estruturas da cidade ao longo da segunda metade do século XIX: o saneamento básico.

Este balanço não significa que nada tenha sido feito durante estas duas décadas, mas sim que se tratava de tentativas erráticas, fruto de iniciativas com um carácter descontínuo, sempre sobressaltadas pelas dificuldades financeiras do município. As novidades técnicas também não estão ausentes do período. A iluminação a gás tinha sido introduzida desde os anos 40, atingindo-se à entrada da segunda metade do século XIX uma situação de relativa normalidade na cobertura das áreas centrais da capital. No entanto, era muito reduzida a difusão doméstica do gás como energia (Matos, 1998).

É porventura numa outra novidade tecnológica no domínio das infra-estruturas urbanas que se notam bem os impasses a que se chegou durante este período. As iniciativas de transformação do saneamento básico da capital ao longo do terceiro quartel do século XIX saldaram-se por resultados negativos, num período crucial de modernização combinada dos sistemas de abastecimento de água e dos esgotos noutros contextos urbanos (Tarr, 1984; Tarr e Konvitz, 1987; Silva, 1999). O abastecimento domiciliário de água, entregue a uma concessionária privada em 1858 foi um rotundo fracasso durante todo o período, fruto de uma combinação entre incapacidade técnica e reduzido investimento por parte da Companhia das Águas de Lisboa. A introdução de um moderno sistema de esgotos nem sequer foi tentada ao longo do período. Do ponto de vista tecnológico todas as iniciativas se mantiveram presas a concepções tradicionais, ainda ligadas a processos atomísticos, baseados na remoção manual dos detritos sólidos e nunca integrados num efectivo sistema de saneamento básico. A noção do tout à l'égout ou do water carriage sewage system (na versão anglo-saxónica) nunca fundamentou as propostas feitas pelas comissões técnicas nomeadas pela câmara ou os estudos realizados por sociedades científicas como a Sociedade Médica. Da mesma forma, também não esteve presente nas propostas realizadas por diversos empreendedores ao longo de todo o período. E quando finalmente evocada pela primeira vez, por Bernardino Gomes, foi também liminarmente afastada, por não se adaptar a uma cidade que não fora capaz de modernizar o seu sistema de abastecimento de água e assim criar padrões de consumo que pudessem fazer funcionar um sistema de esgotos, automatizado, sem intervenção humana, que utilizasse a água como o único elemento de drenagem (Gomes, 1871).

Em suma, soluções atomísticas no domínio do saneamento, falhanço da principal iniciativa privada de transformação das infra-estruturas da capital e, sobretudo, ausência de qualquer projecto continuado de modernização da capital ­ eis as principais características que marcam o terceiro quartel do século passado, no que diz respeito à transformação das infra-estruturas da cidade. A debilidade financeira do município não permitia sequer que pudessem ser realizadas as medidas mais urgentes no domínio sanitário e do reordenamento urbanístico, o que leva a edilidade a quase desejar o efeito refundador de qualquer desastre natural, numa das muitas representações feitas ao governo para obter mais meios financeiros: «só um incendio pode ser facho de civilisação, só um terremoto póde despertar do lethargo, e impellir para o progresso»(3).

O programa de melhoramentos materiais em meio urbano: segundo tempo (1870-1891)

O final dos anos 70 é, em contrapartida, um período de mobilização de capitais e de vontades políticas na transformação da cidade de Lisboa. A prolongada fase de ascensão dos investimentos no imobiliário dá o primeiro sinal de mudança no ambiente económico da capital. Ao longo de década e meia até ao descalabro financeiro de 1891, com sobressaltos ocasionais em dois anos, aumentou a construção privada, indicador sempre inigualável da vitalidade da economia urbana (Silva, 1996). Sobressaiu também o empenho e o investimento público em vários projectos que tinham a ambição de transformar radicalmente a face da cidade: abertura de ruas e jardins, construção de mercados, novo matadouro, entre outras iniciativas. (Silva, 1997).

A ligação entre o programa fontista e a requalificação urbana da cidade é esboçada já nos anos 60. Serve de mote para algumas representações exigindo um maior apoio financeiro por parte do governo e pode considerar-se como a pré-história das ambições que despontam cerca de uma década mais tarde. Em duas sessões municipais, separadas por menos de um ano, reflecte-se no atraso de Lisboa relativamente às outras capitais e grandes cidades europeias, e exige-se do governo um maior apoio técnico e financeiro à modernização da cidade. No final do ano de 1863, uma representação camarária solicitava medidas urgentes de promoção da capital.

«Lisboa, além de ter o melhor porto do mundo, vai ser pellas novas e rapidas communicações a cidade mais frequentada, não só de nacionaes, mas de extrangeiros; o seu commercio será levado ao maior gráu de prosperidade uma vez que as suas condicções de hygiene e embellezamento se elevem, como devem, para obter as comodidades que se encontram nas capitaes dos reynos mais civilisados»(4).

A necessidade de modernização está presente de forma muito mais nítida cinco meses mais tarde, momento em que na vereação se discute uma vez mais a necessidade de apoio financeiro por parte do governo e em que se apresenta um projecto de representação ao executivo que vinque a necessidade urgente de melhorar as condições de vida na cidade. Considerava-se nessa representação que o programa de construção ferroviária, levado a cabo a partir de meados do século XIX, se estava a traduzir num acréscimo das funções de lugar central por parte de Lisboa, existindo por isso a fundada esperança de que tal se pudesse tornar igualmente numa fonte de vantagens acrescidas nas ligações internacionais. Pelo porto de Lisboa circulariam bens e pessoas em maior quantidade, valorizada a sua localização natural pela construção ferroviária. Veja-se como o vereador Severo de Carvalho expressava estas ideias de forma límpida:

«A doze annos de importantes trabalhos e extensa construcção de differentes linhas de caminho de ferro, succede a facilidade de communicações que tem produzido já, e faz antever mui proximamente um grande movimento na capital, um grande desenvolvimento de actividade, muito maior ainda, quando ligado o reino com a Europa central, o porto de Lisboa se torne um emporio commercial, um amplo entrepôsto, um centro de vastas transacções, a que, sem a menor duvida, está destinado, facilitados pelo estabelecimento de linhas telegraphicas transatlanticas, e garantidas pela posição geographica do melhor ponto de partida da Europa para a America: o primeiro e o mais commodo porto a encontrar, vindo d'esta parte do mundo; transacções que serão ao mesmo tempo effeito e causa do desenvolvimento da agricultura, da industria e do commercio, evidenciado já hoje pelo augmento rapido dos rendimentos das alfandegas.»(5)

Este repositório dos avanços técnicos no domínio das infra-estruturas de transporte e comunicações que simbolizam na segunda metade do século XIX a capacidade de crescente internacionalização das economias nacionais serve para assinalar o subdesenvolvimento das infra-estruturas tipicamente urbanas na capital portuguesa. Lisboa estaria vocacionada para um destino glorioso de grande metrópole europeia, mercê da construção ferroviária, da instalação do telégrafo e cabo submarino, de aumento do tráfego marítimo. Porém, este destino só se materializaria se se efectivassem os melhoramentos materiais da cidade, nos domínios sanitário e urbanístico. Doutra forma, os progressos dados na sua localização numa moderna rede de comunicações corriam o risco de não ser acompanhados pelo progresso dos seus equipamentos.

Tornava-se por isso urgente que a cidade de Lisboa acompanhasse a modernização das suas congéneres europeias, «as suas eguaes», e a modernização do próprio país, simbolizada pelo projecto de melhoramentos materiais impulsionado pelo fontismo(6). Para tal seria necessário não apenas apoio financeiro por parte do governo central, mas igualmente capacidades técnicas que o município não possuía, de forma a estabelecer o arranjo urbanístico e a transformação dos seus equipamentos. E o projecto de representação concluía que a câmara não estava em condições de realizar esse «projecto de melhoramentos e aformoseamento da cidade de Lisboa, e de construcções adequadas ao importante serviço de distribuição d'agoas, limpeza e despejos de que carece». Assim, «a camara municipal de Lisboa, tendo a honra de apresentar a Vossa Magestade estas considerações, pede a Vossa Magestade que Se Digne Mandar proceder a um projecto de melhoramentos e aformoseamento da cidade de Lisboa, que preenchendo o fim a que se destina, em vista das ponderações expostas, sirva de base e norma a todas as empresas e projecto de melhoramentos futuros, de que é merecedora a capital.»(7) Caso contrário, continuaria a edificação sem regras nem critérios, tardaria a modernização do saneamento básico e a cidade de Lisboa não aproveitaria as vantagens proporcionadas pela melhoria das suas ligações nacionais e internacionais.

Repare-se como na proposta apresentada por Severo de Carvalho se coloca a íntima relação entre o reforço da posição internacional da cidade de Lisboa, a modernização das suas infra-estruturas e, por fim, o urbanismo, tema com que se finaliza a representação. Uma palavra procura exprimir este ideal de modernidade, num sentimento de emulação e de competição com outras metrópoles: nesta representação trata-se de «aformoseamento», mas mais frequentemente esta palavra será substituída por outra com igual sentido, a de «embelezamento». Qualquer delas continha o desejo de conseguir uma melhoria na estética da capital, através do traçado de ruas mais regulares e harmoniosas, de alcançar uma disposição mais ordeira dos prédios junto da orla das ruas e da dotação de equipamentos que tornassem a cidade num local mais aprazível. Os novos símbolos urbanos de oitocentos ­ desde o conforto doméstico proporcionado pela energia e água canalizadas até aos padrões de sociabilidade e de representação em torno de parques e boulevards ­ constituíam-se igualmente como metas a atingir e a impulsionar a intervenção urbanística.

O «embelezamento» surgia assim como um ideal de renovação e de requalificação urbanas com objectivos funcionais e utilitários, mas que era igualmente investido de motivações estéticas e simbólicas. Motivações estéticas que eram realçadas pela importância dada à harmonia das novas formas urbanas. O simbolismo da intervenção pública na recriação da cidade surgia associado à glorificação do progresso, como foi realçado por Lewis Mumford, quando assinalou os intuitos simultaneamente decorativos e funcionais das novas e amplas avenidas, edificadas no século XIX (Mumford, 1961, p. 186).

Se olhássemos apenas para o resultado da actividade legislativa poder-se-ia pensar que este reconhecimento tinha dado frutos tão positivos quanto a consagração dum instrumento legal que permitia simultaneamente o ordenamento territorial da cidade e o lançamento de projectos de modernização do seu saneamento básico: o decreto de 31 de Dezembro de 1864, primeiro diploma do moderno direito urbanístico em Portugal. O resultado desta lei foi ténue nos cerca de dez anos que se seguiram. Tardou o apoio técnico e financeiro à actividade municipal. A situação económica e financeira foi entretanto sobressaltada pela crise financeira de 1867-1868, o que terá auxiliado à paralisia das iniciativas por vários anos. Apenas na segunda metade da década de 70 do século passado se parecem ter incrementado os estudos que levaram ao estabelecimento do primeiro plano de melhoramentos urbanísticos da cidade de Lisboa, ao mesmo tempo que se davam os primeiros passos sérios para a resolução dos problemas de saneamento básico com que a capital portuguesa se defrontava (Silva, 1997).

No final da década de 1870 estabelece-se por fim uma nova etapa na vida da cidade. De forma simultaneamente mais articulada e mais continuada no tempo surge um projecto para a cidade que aposta na sua requalificação, conjugado com o lançamento de um programa de melhoramentos no saneamento básico, na circulação e no arranjo urbanístico. A construção da Avenida da Liberdade ­ inserida num devir mais amplo de expansão da cidade ­ foi apresentada como um marco no início da transformação urbanística da capital. Início aparentemente modesto, mas que um dos vereadores integrava num programa mais vasto. A citação é longa, mas traduz bem o ambiente de impulso à modernização da cidade de Lisboa que perpassava pelos poderes públicos, tendo como motivações a melhoria das acessibilidades, o saneamento básico, o acréscimo da capacidade de atracção e a requalificação da capital:

«Vão em breve começar as obras do nosso grande boulevard, e vai prosseguir o movimento de transformação material da cidade com a abertura, e prolongamento de diversas vias, e com a realisação de melhoramentos, ­ como o saneamento da cidade, e outros ­ que as necessidades do municipio, nas suas relações interiores e exteriores, reclamam, e o progresso exige.

Estamos, pois, n'um destes momentos solemnes de transição em que nos corre a obrigação severa de lançar a vista um pouco mais além do accanhado horisonte do presente, e cuidar previdentemente do futuro para que não mereçamos da géração d'ámanhã o ephiteto d'indolentes e descuidados.

Ámanhã, senhores n'um futuro muito proximo, a capital está destinada a representar, no movimento geral do paiz, com relação principalmente a viação accelerada, o papel importante que lhe assignaram a sua cathegoria de primeira cidade do reino, a sua grandeza e tradicções, a sua qualidade de séde do governo, da administração e do commercio, e nomeadamente a sua importante posição geographica.

Lisboa, tem de ser a testa de todas as nossas linhas ferreas, o emporio aonde ellas convirjam, o coração onde a vida nacional para ellas reflua, e que seja a circulação das multiplas arterias ramificadas por todos os pontos do paiz.»(8)

Retomava-se a consideração dos efeitos positivos suscitados pelas ligações ferroviárias no reforço do papel central de Lisboa na rede urbana do país, propunha-se o seu reforço com ligações para a sua periferia imediata (linha férrea de cintura, ponte sobre o Tejo, de acordo com o projecto do engenheiro Miguel Paes, e linha férrea para Pombal), e salientavam-se os passos que tinham sido dados no domínio dos «melhoramentos materiais» da cidade: a criação da primeira comissão para a modernização do saneamento básico e o impulso dado na intervenção urbanística, nomeadamente com o início de construção da Avenida da Liberdade.

A abertura da Avenida é apenas o lado emblemático deste projecto de requalificação urbana. Mas porque representa a síntese no ideal de embelezamento, atrás referido como simbolizando a modernização da cidade em todos os domínios (do urbanístico ao sanitário), vai condensar este discurso de modernidade. Isso mesmo é afirmado logo em 1874, quando pela primeira vez se tenta o apoio legislativo à expropriação de terrenos(9). Também Francisco Simões Margiochi, várias vezes vereador municipal ao longo deste período, destaca o triplo papel desempenhado pela Avenida na modernização da cidade: no domínio do saneamento, das comunicações e, finalmente, do «embelezamento» da capital (Margiochi, 1886).

Não se podia encontrar porta-voz mais inesperado deste ideal de modernização e de importação de modelos de saneamento básico ou de urbanismo do que a figura de Rosa Araújo, comerciante e presidente do município, motivo de chacota por parte dos seus adversários políticos pelo trato boçal. Eleito entre 1878 e 1885 como presidente da câmara, depois de já ter servido vários anos como vereador na década de 70, Rosa Araújo representou a presença continuada e estável da maioria regeneradora na vereação e a expressão dos melhoramentos materiais em meio urbano(10). Em discurso directo, o então presidente do município faz a comparação com outras metrópoles europeias e exige recursos financeiros que permitam avançar com os «melhoramentos materiais»:

«A cidade de Lisboa, ­ pelas vantagens da sua situação geographica, ­ pela doçura do seu clima, ­ pela magnificencia do seu porto, ­ e pela riqueza dos seus formosos arrabaldes, pode ufanar-se de ter sido das mais prodigamente dotadas pela naturesa, e de poder não sómente desenvolver-se a par das menos ditosas, mas até mesmo disputar a primasia ás mais bellas capitaes das mais opulentas nações. Isto, porém, sob a imperiosa e providencial condição de trabalhar, e progredir.

E Lisboa como dormente, paralytica, entorpecida e morbida, ia-se deixando ficar atraz de todas as capitaes circumvisinhas [].

Londres crusou-se de largas vias de communicação, e construiu caminhos de ferro subterraneos, permittindo á população, muito especialmente a da City, desaccumular-se, e ir habitar locais mais sadios, e mais economicos, aproximados pela facilidade e frequencia dos transportes.

Paris destruiu-se, por metade, para ostentar os seus numerosos boulevards, e as suas vinte e sete avenidas, se quis a gloria de poder intitular-se a grande capital.

Bruxellas submetteu-se a um plano geral de embelesamentos.

Madrid viu nascer novos bairros, que a engrandeceram.

[...] E Lisboa, estacionada, não possue um mercado central, - não tem um parque, não abriu arruamentos, ­ não facilitou as edificações, ­ não promovia a desaccumulação, ­ resignava-se à insalubridade crescente, ­ percorria viellas indignas, ­ e envergonhava-se ao hediondo espelho das silvas, e urzes, que a deturpavam.»(11)

Finalizava com a exigência de que a câmara fosse dotada de meios financeiros, o que no caso presente passava por ver desbloqueados os entraves que a Junta Distrital colocava a que um empréstimo fosse contratado pelo município.

Quais as novidades deste programa de melhoramentos materiais, que permitem a continuidade das intervenções a partir do último quartel do século XIX? Novidade não é a sua formulação como projecto, já que se encontrava presente em intervenções anteriores, pelo menos desde que fora sistematizado no elenco de iniciativas de modernização da cidade de Lisboa em 1858.

Para o maior sucesso e a continuidade deste programa teremos certamente que procurar razões de carácter técnico, financeiro e político. Comecemos pelas duas últimas.

O terceiro quartel do século XIX é caracterizado por uma realidade nova na história da fazenda municipal: o recurso continuado à contracção de dívida, com o objectivo de proceder à modernização da cidade. Inicia-se em 1873, mas é sobretudo a partir de 1877, com os três sucessivos empréstimos contraídos junto do Banco Lisboa & Açores, que aumenta o recurso à emissão de dívida como meio extraordinário de financiamento e se entra numa fase de acréscimo continuado das despesas municipais.

A abordagem do carácter peculiar das finanças do município de Lisboa foi efectuada noutra ocasião (Silva, 1997). Aqui importa salientar este aumento do financiamento da despesa municipal através do recurso à dívida pública, numa evolução que partiu de um peso relativo de 0,3% das receitas camarárias em 1860-1864, até cerca de 40% na década de 80 do século XIX, cálculos que não consideram a dívida corrente, formada sobretudo pelos créditos de fornecedores do município, e que podia cifrar-se em cerca de 20% das despesas.

Assim, esta política de melhoramentos em meio urbano é levada a cabo com mecanismos de financiamento idênticos aos que tinham suportado a mobilização de recursos para o programa fontista de melhoramentos materiais, associado à dotação de caminhos de ferro, estradas e modernas comunicações telegráficas. A contrapartida deste endividamento do tesouro municipal, sem transformação da estrutura das suas receitas, seria a prazo o estrangulamento da capacidade de recurso à dívida, como acabou por acontecer a partir de 1886.

Uma segunda novidade do período que se inicia com o último quartel do século passado corresponde ao carácter politicamente transversal dos objectivos de renovação e requalificação urbanas, que vão a par com a durabilidade das presidências ao longo de cerca de 12 anos.

A continuidade da gestão política revela-se no carácter duradouro dos mandatos dos presidentes que de forma mais visível estão associados a este projecto. Entre 1878 e 1885 Gregório Rosa Araújo foi presidente da câmara, depois de vários mandatos como vereador (1872-1874) e vice-presidente (1876-1878), continuando mesmo após 1885 como vereador até 1890. Por seu turno, Fernando Palha Osório Cabral foi presidente da câmara entre 1885 e 1890. Em nenhum outro momento do período aqui analisado se encontrou tal longevidade à frente dos destinos da edilidade. Além disso, trata-se igualmente de um período de notável acalmia da política nacional, contrastando com períodos anteriores e seguintes.

Por outro lado, os desígnios e projectos de modernização mantiveram-se idênticos em vereações de maioria política diversa, num arco partidário que incluía os regeneradores, os progressistas e os republicanos. Os projectos de transformação da capital prosseguiram, mesmo quando existiu uma mudança da maioria regeneradora (com Rosa Araújo), para a progressista (associada à presidência de Fernando Palha). Atravessava ainda mais transversalmente o espectro político com representação na edilidade lisboeta, já que os republicanos, sempre minoritários até 1908, não foram apenas seus apoiantes, mas tiveram igualmente um papel de protagonismo. Elias Garcia, ficou mais conhecido pela reforma do ensino primário nas escolas municipais. Mas ao longo da sua passagem pela vereação lisboeta apoiou o modelo de financiamento das obras públicas, a reorganização técnica dos serviços camarários e os projectos urbanísticos. Não só apoiou como desempenhou um papel protagonista, fazendo nomeadamente parte durante anos do núcleo reduzido de vereadores que compunham a Comissão de Obras e Melhoramentos Materiais, informal, mas verdadeiro centro de poder na edilidade. Por último, o carácter consensual e partidariamente transversal deste projecto de modernização vai igualmente revelar-se após a crise finenceira de 1891. Mesmo em condições de grandes dificuldades do tesouro municipal, vai ser tentada a sua concretização parcial, aspecto aqui não focado. A primeira crítica global ao modelo fontista de melhoramentos materiais em meio urbano só seria afinal apresentada com a mudança de vereação para a maioria republicana, em 1909, antecipando em um ano a mudança de regime.

A última novidade deste período tem a ver com o lado técnico dos vários componentes deste projecto. Traduz-se por uma maior preparação técnica das soluções propostas, questão que se pode desdobrar em dois aspectos complementares.

O primeiro, relaciona-se com a existência de uma muito maior permeabilidade às soluções que tinham sido tentadas noutros contextos urbanos para resolver os problemas com que as cidades oitocentistas se deparavam. Existiu uma maior capacidade de acesso e de absorção das experiências mais recentes, quer no domínio urbanístico, quer no que se relacionava, por exemplo, com o saneamento básico, temas do projecto de modernização, esboçados no período que se seguiu à crise sanitária de 1856-1858, mas nunca formulados em soluções tecnicamente evoluídas. O papel dos vários mecanismos de difusão tecnológica ­ formação escolar avançada em instituições estrangeiras; presença continuada em exposições e conferências internacionais; visitas de estudo ­, bem como os agentes desta transmissão e incorporação de novidades técnicas, foi tema de trabalho anterior e integra-se num projecto actualmente em curso de investigação (Matos e Silva,1999).

O segundo, está associado à formação da competência técnica que no interior da câmara pudesse estudar, propor e acompanhar um programa de modernização da capital portuguesa (Silva, 1997). Em 1874 procede-se a uma profunda transformação técnica do município, que se inicia com o preenchimento do lugar de engenheiro da câmara, que há cerca de dez anos se encontrava vago, debilitando a capacidade de intervenção municipal nos domínios urbanístico, sanitário e de acompanhamento das actividades das empresas privadas concessionárias. O escolhido foi Ressano Garcia, recentemente formado pela École des Ponts et Chaussées de Paris, mas já com alguns trabalhos realizados para a Câmara de Belém e para a Repartição das Obras Públicas de Lisboa(12).

Um dos primeiros projectos de Ressano Garcia foi proceder a uma organização administrativa dos serviços a que iria presidir, burocratizando procedimentos informais e não regulamentados. Simultaneamente definiu o modo como se passariam a analisar todos os projectos urbanísticos e de licenciamento de obras, integrando-os num processo de decisão centralizado numa comissão restrita ­ a Comissão de Obras e Melhoramentos Municipais. Esta comissão, constituída por um grupo de cinco vereadores, a que se agregava o recém-contratado chefe da repartição técnica, passaria a avaliar todos os projectos urbanísticos e estava igualmente dotada de poderes executivos relativamente às propostas aprovadas em plenário da vereação. Saía reforçado o papel dos serviços técnicos nas decisões tomadas pela câmara, nomeadamente sobre as que tinham incidência urbanística ou as que diziam respeito às infra-estruturas, fossem responsabilidade pública (esgotos, matadouro, mercados) ou privada (água, energia e transportes). Face a vereadores cujo mandato era renovado de dois em dois anos, a manutenção do mesmo director da Repartição Técnica (denominada Serviço de Obras, numa posterior reforma administrativa) ao longo de 35 anos entre 1874 e 1909 alicerçava este serviço como um centro de poder importante nos assuntos municipais relacionados com o ordenamento urbanístico e a intervenção nos equipamentos urbanos. Por outro lado, é um serviço que ganhou um peso crescente em termos de competências técnicas, com a abertura dos seus quadros a outros engenheiros e a técnicos especializados no domínio da cartografia e desenho, ou a funções de enquadramento técnico e operacional.

Assim, não apenas a Repartição Técnica vai assumir um peso crescente na actividade municipal, como também vai ser responsável pela introdução de novos padrões de racionalidade técnico-administrativa. A permanência de Ressano Garcia à frente do serviço durante um terço de século constituiu um factor de continuidade para alguns dos projectos de modernização lançados durante o período considerado, mesmo após a crise financeira da câmara a partir do final dos anos 80 e a que fez soçobrar as finanças do estado central a partir de 1891.

Conclusão

Esta comunicação destacou a existência de uma ideologia de modernidade e de progresso, associada à disseminação internacional de novos padrões de conforto, proporcionados pela industrialização de actividades essenciais à vida urbana, como os transportes, o fornecimento de energia ou o saneamento básico. O carácter emulatório assumido pela sua introdução numa cidade como Lisboa é perceptível pela própria ausência das pressões sobre o ambiente urbano geradas pelo crescimento demográfico durante grande parte do século passado. Quando finalmente surgiram, tiveram um impacto bem menor do que noutros contextos urbanos.

No caso de Lisboa, o denominado programa de melhoramentos materiais em meio urbano tanto se colou ao que seriam os efeitos desejados do projecto fontista de modernização das infra-estruturas de transportes e comunicações no reforço de Lisboa na rede internacional de cidades, que até sob esta perspectiva se aproxima da visão mais usual da internacionalização da economia portuguesa durante o período, referida logo no início deste trabalho. A resolução do problema da salubridade e a renovação urbanística eram sobretudo associadas à necessidade de aproveitar as condições propícias criadas pelo aparente reforço da posição de Lisboa no quadro da rede europeia de transportes. Só através de um programa de requalificação urbana, que a dotasse de equipamentos modernos semelhantes aos que existiam noutras cidades europeias da mesma importância e dimensão seria possível ter uma posição competitiva face a outras metrópoles.

Esta comunicação procurou igualmente capturar o que se pode denominar como a justificação ideológica desta experiência de modernização urbana. As exigências de «embelezamento» da cidade retêm esta componente mais etérea da importação de novos padrões de qualidade de vida e de civilidade urbana. Mobilizavam um ideal de modernidade que unia a revolução sanitária ao desenho urbano reticular, os novos espaços de lazer público aos novos padrões de conforto doméstico a que atrás se fazia referência. Na tradução territorial do embelezamento da cidade, assumida pelo ordenamento trazido pela disciplina do urbanismo, encontrava-se o denominador comum que permitia unir as várias componentes do projecto oitocentista de modernização das cidades: salubridade, circulação e ideais estéticos.

Mas na sua forma literal, embelezamento da cidade remete unicamente para o desenho urbano. Tal entendimento pode ter consequências desastrosas para a sua feição de denominador programático de esperanças muito mais vastas. Porque não manter a forma do desenho urbano que incorporava as exigências de modernidade do século passado e que enquadrava cenicamente a vida quotidiana na cidade, deixando por fazer ou inacabados os projectos que por natureza eram subterrâneos, caros e tecnicamente mais complexos? Esta interrogação condensa afinal tudo o que sucedeu após 1891, sobre o duplo destino da componente sanitária, por um lado, e da estritamente urbanística, por outro. A segunda, concretizada, mesmo que com alguns percalços de trajecto, passando a constituir uma das zonas emblemáticas da cidade de Lisboa. A primeira, adiada.
 

Notas

1. Este texto beneficiou da investigação feita no âmbito do Projecto Praxis XXI - Engenharia e engenheiros em Portugal (do final do século XVIII até 1931) subsidiado pela Fundação da Ciência e Tecnologia e retoma algumas ideias de (Matos e Silva, 1999)

2. Fontes Pereira de Melo, de cujo nome advém a palavra «fontismo» foi o político português que mais duradouramente marcou a vida política nacional na segunda metade do século XIX. Responsável pelo lançamento de um vasto programa de construção de infra-estruturas, foi sob iniciativa dos governos em que participou ou que chefiou que se lançou um vasto programa de obras públicas, tendente à instalação dos caminhos de ferro e à modernização da rede rodoviária. Este programa ficou contemporaneamente conhecido como o «programa de melhoramentos materiais» Foi também sob Fontes Pereira de Melo como ministro da Fazenda que Portugal aderiu ao padrão-ouro em 1854. Cf. Mónica, 1999.

3. Representação de 11 de Outubro de 1866, Archivo Municipal, 1866, p. 2862.

4. Sessão camarária de 28 de Dezembro de 1863, Archivo Municipal, 1863, p. 1677.

5. Projecto de representação aprovado em 16 de Maio de 1864, Archivo Municipal, 1864, p. 1862.

6. «Todas estas considerações fazem pensar a esta camara municipal [...]que a velha cidade de Lisboa, restaurada em parte de um grande desastre, occorrido em meados do seculo passado, não corresponde a todas as necessidades da epocha actual, não está em harmonia com os progressos do paiz, nem acompanha as suas eguaes [...].» Idem, pp. 1862-1863.

7. Idem, p.1863.

8. Proposta do vereador José Maria Osório, Archivo Municipal, 1879, p. 372.

9. A apresentação na Câmara dos Deputados por parte de Pereira de Miranda deputado eleito por Lisboa, de um projecto de lei tendente à declaração de utilidade pública e expropriação urgente dos terrenos destinados à abertura da Avenida, vai ser responsável por uma outra reiteração deste discurso de modernização da cidade e de emulação de outras metrópoles europeias: «As grandes cidades têem de corresponder às exigencias da civilisação moderna, e mostrarem-se habilitadas a receber commodamente os estrangeiros que as visitam. Vae n'isso o seu credito e o seu interesse. E mais adiante: [...] Lisboa está ainda longe de corresponder ao que há a esperar de uma cidade civilisada, e que pela posição está destinada a ser um dos centros commerciais importantes, não só da Europa mas do mundo». Diario da Camara dos Senhores Deputados, 28 de Janeiro de 1874, p. 237.

10.  Uma das primeiras afirmações de Rosa Araújo na defesa do programa de melhoramentos materiais da cidade de Lisboa foi ­ ainda enquanto vereador ­ quando subscreveu uma proposta que visava estabelecer o montante, modalidades e objectivos do primeiro do ciclo de empréstimos que a câmara municipal vai contrair a partir de 1873 para levar a cabo a modernização das suas infra-estruturas (Proposta apresentada na sessão de 3 de Junho de 1872, Archivo Municipal, 1872, pp. 1332-4).

11.  Archivo Municipal, 1880, pp. 476-477.

12.  Archivo Municipal, 1874, pp. 2034-2039.
 

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