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O trabalho argumenta a favor de uma renovação epistemológica da biogeografia em sintonia com as modificações projetadas, para o espaço mundial, pelo desenvolvimento recente da biotecnologia, e, consequentemente, com alguns do novos fundamentos que deverão balizar as relações entre os países detentores dos mananciais de biodiversidade e os detentores de tecnologia: entre eles, o fundamento biogeográfico.
Dessa forma, a biogeografia, ao mesmo tempo em que retoma algumas de suas formulações originais, inspiradas em Friedrich Ratzel (1844-1904) e sua proposta de inclusão das dimensões antropogeográfica e geopolítica naquilo que ele denominou de biogeografia universal, inova e se renova, pois se oferece enquanto disciplina tributária e organizadora de novos campos de conhecimentos cujas abordagens se caracterizam pela promoção de formulações em que as dimensões humanas, biológicas e físicas sejam consideradas de modo indissociável e, portanto, podem nos ajudar a compreender e desvendar os nexos existentes entre diversidade biológica e sócio-cultural. (**)
Palavras-chave: Biogeografia, Antropogeografia, Ratzel, Biotecnologia, Biodiversidade, Sociodiversidade.
El artículo plantea por una renovación de la biogeografia en sintonia con los cambios proyectados, hacia el espacio mundial, por el reciente desarrollo de la biotecnologia y por lo tanto con algunos de los nuevos fundamentos que deberan enmarcar las relaciones entre los paises poseedores de manantiales de biodiversidad y los poseedores de tecnologia: entre ellos, el fundamento biogeográfico.
De esta manera, la biogeografia, al mismo tiempo en que recupera algunas de suyas formulaciones originales, inspiradas por Friedrich Ratzel (1844-1904) y su propuesta de inclusion de las dimensiones antropogeográfica y geopolítica en el ambito de lo que el mismo ha denominado de biogeografia universal, innova y renovase, pués se ofrece como una disciplina tributaria y organizadora de nuevos campos de conocimientos cuyos planteamientos sean caracterizados por la promoción de formulaciones en que las dimensiones humanas, biológicas y físicas sean consideradas de modo inseparable y, por lo tanto, puedem ayudarnos en la comprensión y en la revelación de los vínculos entre la diversidad biológica y la diversidad socio-cultural.
Palabras clave: Biogeografia, Antropogeografia, Ratzel, Biotecnologia, Biodiversidad, Sociodiversidad
This paper provides arguments in favour of an epistemological renovation of biogeography syntonized with the projected modifications for the global space by the recent development of biotechnology and consequently with some of the new basis that will demarcate the relationships between countries which own biodiversity sources and the ones that own technology. Among this new basis, the biogeographical.becomes in evidence.
In so doing, biogeography, as well as rescues some of the original formulations, inspired by Friedrich Ratzel (1844-1904) and his proposal to include the anthropogeographical and geopolitical dimensions on what he calls universal biogeography, innovates and renovates itself, whereas offers itself as a tributary and organizing discipline of new knowledge areas which approaches promote propositions in which human, biological and physical dimensions to be considered in a inseparable way, and, therefore, may help us to understand and clear up the connections between biological and cultural diversities.
Key words: Biogeography, Anthropogeography, Ratzel, Biotechnology, Biodiversity, Socialdiversity
Por essa razão e por não pretendermos alimentar a lista dessas omissões, nem tampouco apresentar como novidade absoluta o que buscará ser apenas uma proposta original (no sentido emprestado a esse termo pelo famoso arquiteto catalão), seria conveniente enumerar, antes de quaisquer outras considerações, alguns fatos indicativos da importância que as formulações ratzelianas poderiam ter na renovação de fundamentos para a biogeografia.
O primeiro deles que, por si só e para muitos, pode consistir uma verdadeira novidade é o fato dessa disciplina dever a sua própria denominação a F. Ratzel, que a teria utilizado pela primeira vez em 1880(1).
Um segundo fato é que a apropriação cognitiva da dimensão biológica pela geografia, conforme sugeria o geógrafo alemão, pretendia não só ampliar, mas, até certo ponto romper com aquelas formulações mais comumente admitidas como precursoras desse campo disciplinar, como as que foram desenvolvidas, entre outros, por L. F. Kämtz, A. von Humboldt ou F. von Richthofen, cujas abordagens limitavam-se em torno do alcance sugerido por antigas denominações como "geografia das plantas", "geografia botânica" ou "geografia da história natural" -- Naturhistorische Geographie.(2)
P. Matagne nos esclarece os termos dessa ampliação e ruptura sugeridas por Ratzel: "Todos os biogeógrafos do século XIX colocavam o homem à margem dos fenômenos naturais, excluindo-o totalmente como elemento modificador ou destruidor do ambiente. A grande originalidade de Ratzel, após Ritter, foi a de integrar o homem à natureza e desenvolver a noção de Raubwirstschaft".(3)
A introdução dessa noção -- Raubwirstschaft (literalmente "economia de pilhagem", em alemão) -- nos proporciona, portanto, o conhecimento de um terceiro fato, que também deve ser creditato na "conta" do pioneirismo ratzeliano, e é coincidente com os notórios esforços de biogeógrafos atuais no sentido de incluir a ação humana entre os principais elementos a serem considerados nas análises das biocenoses e dos ecossistemas(4). Tais esforços são consensualmente interpretados como indicativos de uma necessidade crescente, manifestada por alguns pesquisadores da atualidade, em se conferir maior conteúdo geográfico aos interesses de estudo da biogeografia.
Stoddart, em seu conhecido livro On Geography, assinala essa tendência exatamente em um capítulo sugestivamente denominado Putting the Geography Back in the Bio-. Nele o autor afirma que a biogeografia apesar de ter se tornado, em período recente, um dos ramos mais populares da geografia física nas escolas britânicas, segue omitindo uma consideração central: "Análises estratigráfícas e reconstituição faunífera, não são temas especificamente geográficos e estabelecem uma sobreposição com o trabalho de paleobiólogos. Geógrafos, é verdade, frequentemente enfatizam o papel do homem na modificação de ambientes primitivos, mas isso também é feito por outros cientistas paleoambientais..."(5)
Mais recentemente, G. Houzard em um artigo entitulado Evolution de la biogeographie, não deixa de reforçar a tendência assinalada por Stoddart e outros, indagando: "Os geógrafos estarão necessariamente condenados a fundar o estudo dos meios naturais em um conceito elaborado pelos biólogos? Não se sentem mutilados nas suas perspectivas? Não seria desejável integrar os homens aos meios de vida que eles transformaram profundamente?"(6)
Nesse texto, Houzard não se limita às queixas, mas também evidencia aquilo que acredita ser o principal potencial da biogeografia, destacando que "ela ocupa uma posição original na interface das ciências da natureza e as ciências da sociedade" e, por fim, vaticina: "É provável que sua influência se afirme em um futuro próximo, pois ela pode fornecer a referência, o modelo de um caminho global, transdisciplinar."(7)
Por também acreditarmos nesse potencial, é que afirmamos a necessidade de retomar alguns dos fundamentos e conexões disciplinares presentes na formulação original da biogeografia sugerida por Ratzel.
O geógrafo alemão pretendia o estabelecimento de uma biogeografia universal, que se oferecesse como instrumento alternativo às fragmentações promovidas pelos estudos especializados de flora e fauna, sobretudo quando estes se desenvolvem excluindo a ação humana , ou antropogeográfica, da esfera de suas preocupações.
O princípio no qual se pautava era o de proporcionar, também para os procedimentos cognitivos, a consideração dos vínculos indissociáveis estabelecidos ente as dimensões biofísicas e antropogeográficas (nos seus desdobramentos econômicos, políticos e culturais), para a configuração da realidade dos ambientes terrestres.
Para um mundo como o de hoje, submetido aos imperativos de uma ordem econômica e social que se pretende global, e em que nem mesmo os últimos redutos de concentração da biodiversidade terrestre podem ser observados fora dessa condição, nada seria mais adequado do que recuperar-se algumas das idéias contidas nessas antigas e pioneiras formulações, infelizmente abandonadas pela pressão do desenvolvimento analítico e fragmentador.(8)
Por isso vale a pena, antes de nos dedicarmos integralmente à verificação dessa sintonia, entre as propostas da biogeografia ratzeliana e as exigências de compreensão do mundo contemporâneo, especialmente em seus componentes bióticos, destacarmos brevemente algumas da principais idéias contidas nessas propostas.
Os fundamentos de uma biogeografia universal
Mesmo tendo sido produzida em outro contexto, por razões bastante diferentes das de agora, com consequências e resultados que muitos poderiam considerar questionáveis, é inegável que a obra de Ratzel nos deixou como legado, no mínimo, um instrumental teórico-metodológico capaz de proporcionar uma abordagem integrada dos diversos fatores constituintes da geografia planetária.
Ao definir, de saída, essa geografia como biogeografia universal, Ratzel sugere a constituição de um campo de conhecimentos que, não limitado à descrição e classificação dos aspectos da flora (fitogeografia) e da fauna (zogeografia), estendesse seus objetivos ao exame das conexões existentes entre tais aspectos e, destes, com a geografia das populações humanas. Para Ratzel, diferentemente daquelas abordagens que posteriormente vieram a se consagrar como biogeográficas, a "geografia do homem [antropogeografia] não pode ser considerada senão como um ramo da biogeografia"(9).
Ratzel entendia o processo de evolução como resultado das interações entre as dinâmicas da flora, da fauna e da vida humana. É na explicitação desse processo e na diferenciação dos papéis exercidos pelos homens, plantas e animais, nessa evolução compartilhada, que ele ancora os principais argumentos para justificar a inclusão da antropogeografia como disciplina tributária dessa biogeografia universal: "Em verdade, na história dessa evolução, as plantas influenciaram as plantas, os animais influenciaram os animais, e estes aquelas e vice-versa; mas nenhum outro organismo exerceu uma influência tão ampla e extensa sobre os outros seres como fez o homem, transformando de maneira muito profunda a fisionomia da vida na Terra"(10).
A consideração dessas mútuas influências e, também, das diferenças nas ações particulares de cada uma das dinâmicas envolvidas, impunha, para Ratzel, a necessidade de superar os procedimentos até então desenvolvidos pelas ciências preocupadas em estudar a difusão da vida orgânica sobre a Terra, que, invariavelmente, tratavam como "partes desconectadas umas das outras, a fitogeografia, a zoogeografia e a geografia do homem"(11).
Para o geógrafo alemão, o que diferenciava a perspectiva biológica da geográfica, na atribuição de conteúdos para essa ciência da difusão da vida na terra -- a biogeografia --, seria exatamente a recusa, por parte da geografia, dos tratamentos desconectados, ou, o que seria pior, dos tratamentos excludentes da ação humana: "A nossa ciência tem que estudar a Terra unida, como ela é, incluindo o homem, por isso não pode afastar-se do estudo da vida humana, e nem mesmo do da vida vegetal e animal. As mútuas relações existentes entre a Terra e a vida, que nela se produz e se desenvolve, constituem precisamente o nexo entre uma e outra e portanto devem ser especialmente consideradas"(12).
Como se vê, os princípios teóricos e metodológicos que deveriam nortear a biogeografia, Ratzel os expôs na introdução de sua primeira e principal grande obra, Anthropogeographie. Nela, empenhou-se em dotar de significação geográfica esse campo de conhecimentos por ele chamado de biogeografia universal. Denominar de antropogeografia a própria obra em que essa proposta se formula, parece já querer afirmar isso desde o título.
Essa insistência na necessidade da compreensão do papel do homem na "transformação profunda da fisionomia da vida na terra", sem no entanto abandonar o "estudo da vida vegetal e animal", teve prosseguimento em pelo menos três outras grandes obras: Völkerkunde, Politische Geographie e Die Erde und das Leben.
Em todas elas Ratzel reafirma essa perspectiva do tratamento geográfico para o entendimento da difusão da vida no planeta. Em Völkerkunde isso se realiza através de "uma espécie de cartografia etnográfica dos diversos povos do mundo", consubstanciada por um imenso inventário das diversidades culturais e ambientais a que estão submetidos(13); em Politische Geographie, isso também se realiza, avaliando o papel do Estado, como síntese da "apropriação econômica do solo e captura de uma possessão política", que foi produzida pela difusão da vida humana no planeta e pretende subordinar com a "repartição e combinação de elementos"(14) a difusão de todas as outras formas de vida. E em sua última grande obra, Die erde und das leben, Ratzel sintetiza e reafirma as perspectivas de sua biogeografia universal, reiterando sua oposição a uma abordagem fragmentada: "A rígida divisão desta ciência em três ramos abandona o seu projeto original e a desvia para uma ciência que tem por objetivo apenas descrever e classificar."(15)
Die erde und das leben é uma obra emoldurada, do começo ao fim, por essas exortações conectivas. Entre os argumentos enumerados para justificar tais exortações, Ratzel indicava as próprias características do ambiente geográfico mundial da época, considerado em todas as suas dimensões. Nesse sentido, suas exortações não só rechaçavam o reducionismo descritivo e classificatório para sua pretendida biogeografia universal, mas sugeriam também que se extraisse dos próprios rumos projetados para esse ambiente geográfico, os objetivos em que se deveriam inscrever o progresso desse campo de conhecimentos. Ilustram isso, afirmações como as deste tipo, que podem ser encontradas na conclusão dessa sua derradeira obra: "É próprio do nosso tempo! Fala-se de ciência universal, de comércio mundial, de política mundial, e se busca ao mesmo tempo ansiosamente evitar cada sinal que possa revelar que as barreiras nacionais existem para estreitar o olhar que aspira a abraçar o mundo inteiro. Mas é evidente que no progresso da civilização, no incremento da cultura, das comunicações, dos Estados se inscreve uma tendência em direção a uma cidadania universal." (16)
Apesar das exortações anti-reducionistas e dessa sugestão de se adotar propósitos circunscritos na "antropogeografia" do mundo, lançadas na introdução e na conclusão dessa sua última grande obra, a biogeografia que posteriormente se desenvolveu não só alimentou e se nutriu da rígida divisão, contra a qual se batia Ratzel, como simplesmente excluiu a ação humana da esfera de suas preocupações(17). Pelo menos foi assim até muito recentemente.
Os ingredientes biogeográficos do mundo globalizado
Como já ilustramos no início deste texto, há hoje alguns trabalhos produzidos pelos mais diversos autores que já nos dão mostras de que a biogeografia busca se reconciliar com algumas daquelas pretensões formuladas por Ratzel. Muitos desses trabalhos indicam que há uma clara disposição em reforçar o conteúdo geográfico da biogeografia e, consequentemente, (re)inserir o homem e os processos de sua produção espacial, no circuito das abordagens que em nome dessa disciplina se promovam.
Essa reintegração da antropogeografia nas abordagens biogeográficas, porém, ainda não ultrapassou os limites de uma afirmação teórica das vontades e das boas intenções daqueles que tem se manifestado nesse sentido.
Entretanto, bastaria destacar algumas das importantes características que hoje presidem a dinâmica dos espaços mundiais, para percebermos os caminhos que não só seriam capazes de promover, mas, que sobretudo, exigiriam essa reconciliação entre o conhecimento acumulado pelas biogeografias especializadas, em fito ou zoogeografia, e aquele inspirado em considerações da dimensão antropogeográfica desses espaços.
O fato é que, para o mundo de hoje, às voltas com o desenvolvimento da biotecnologia e preocupado (por razões econômicas e/ou ecológicas) com o destino e situação dos mananciais de biodiversidade, nada seria mais oportuno, como já adiantamos, do que o aprimoramento ou a reconstituição de áreas de conhecimento que fossem capazes de evidenciar as conexões estabelecidas entre as dimensões biológicas e as culturais (em seus desdobramentos econômicos, sociais e políticos), no desenvolvimento da produção espacial contemporânea
O conhecimento dos ingredientes de parte dessas dimensões, as próprias biogeografias desconectadas já nos forneceram. Os inventários descritivos de flora e fauna que realizaram, associados às análises das condições físicas dos diversos ambientes terrestres, nos permitem hoje um conhecimento bastante ampliado da distribuição das diversas manifestações de vida pelo planeta. As amostragens extensamente pesquisadas já nos permitem até mesmo estimar os números de espécies e, em muitos casos, de indivíduos, que poderemos encontrar nas diversas regiões do globo, assim como nos permitem também explicar, evocando condicionantes climáticas e geomorfológicas, quais, dentre elas, são as áreas mais e as menos propícias para o desenvolvimento e concentração da vida.
De posse desses dados, produzidos sobretudo por aqueles que se dedicaram à realização dessas biogeografias especializadas em flora ou fauna, é possível realizar uma cartografia do espaço mundial que localize os territórios e as características desses ambientes de concentração de biodiversidade.
No entanto, hoje sabemos, essa cartografia só se explica mais completamente, se a inserimos no contexto de um espaço mundial fragmentado pelos interesses de mais de duzentos países, sintonizados, ou subordinados, se se preferir, às regras e propósitos de um padrão de acumulação globalizado, cujas fronteiras políticas e econômicas não necessariamente contemplam aquelas fronteiras que também são almejadas pelos mais variados interesses históricos e culturais dos diversos agrupamentos humanos presentes no planeta. Quer dizer, as discussões de interesse de uma biogeografia que se pretenda geográfica, isto é sintonizada com a compreensão dos espaços mundiais, sobretudo as que concentram o foco de sua atenção sobre a geografia dos mananciais de biodiversidade, só pode desenvolver-se em conexão com considerações acerca dos ingredientes políticos, econômicos e culturais do mundo, pois da dinâmica estabelecida também pelas "fronteiras" produzidas pelos agrupamentos humanos, depende essa geografia dos mananciais de vida.
Há algum tempo já não é mais possível explicar-se a distribuição geográfica dos territórios de concentração da diversidade biológica a não ser caracterizando-os como territórios remanescentes, isto é, como áreas que sobreviveram mais ou menos incólumes aos processos de degradação ambiental imposto pelas escalas de produção e consumo, adotadas pelas modernas sociedades urbanas e industriais. Ou seja, se é verdade, como nos ensinam os manuais de biogeografia, que há no planeta, naturalmente, áreas mais propícias para a proliferação da diversidade da vida, como é o caso das regiões equatoriais e tropicais, é verdade também que a concentração da diversidade que aí verificamos foi extremamente potencializada pela quase extinção da variedade de espécies nas outras regiões.
O resultado disso pode ser observado em mapas como aqueles que hoje se divulgam com o objetivo de expressar cartograficamente esses territórios de maior ou menor concentração da vida. Um desses mapas o Banco Mundial estampou nas páginas de seu último relatório anual, dedicado à avaliação das condições ambientais do planeta. Nesse relatório, sob o título "Áreas de conservação prioritária: três enfoques", apresenta-se a cartografia da biodiversidade mundial, destacando-se a sua concentração (cerca de 70%) em apenas doze países caracterizados como detentores de megadiversidade(18). Aí, o Banco Mundial nos chama a atenção para o fato dessas áreas se concentrarem, à exceção da Austália, nos chamados países "em desenvolvimento": México, Colômbia, Equador, Peru, Brasil, Congo, Madagascar, India, Bangladesh, China, Indonésia e a já mencionada Austrália.
Como se vê, esse não é mais um tema a estar presente apenas nos manuais de biogeografia, mas passa a figurar também, e em tom de alerta, no material de análise e divulgação dos balanços e projeções dos principais gestores das finanças mundiais.
Em contrapartida à tremenda concentração produzida da biodiversidade terrestre, essas projeções estampam também a extrema concentração de poderio tecnológico e econômico que se poderia verificar exatamente em alguns dos países apresentados, nesses mesmos mapas, como possuidores de índices não significativos de diversidade da vida.
Mas, se é fato que a biotecnologia está crescentemente demonstrando tratar-se da próxima onda de altas tecnologias que promoverá a produção do novo patamar tecnológico que, de tempos em tempos, ou de crises em crises, o padrão de acumulação requisita para sua revitalização e continuidade, então o "alerta" do Banco Mundial justifica-se(19).
Independentemente de serem ou não sinceras as preocupações com o escasseamento das áreas de concentração de vida, estampadas em mapas que as evocam como "Áreas de conservação prioritária", são indiscutíveis as reais preocupações com o escasseamento das matérias-primas, dos princípios ativos e das informações biogenéticas, encerradas em apenas uma dúzia de países, e das quais dependem os atuais investimentos e desenvolvimentos biotecnológicos.
Portanto, o pleno desenvolvimento da biotecnologia, depara-se, no mínimo, com um problema da dimensão de um planeta cujo espaço caracteriza-se por uma espécie de divórcio territorial entre os países detentores de megadiversidade (concentrados no sul) e os países detentores de recursos econômicos e tecnológicos (concentrados no norte).
Ou seja, não seria necessário aqui desenvolvermos longos argumentos para demonstrarmos que, no mundo atual, seria irresponsável pensar a geografia da distribuição da vida, sem, ao mesmo tempo, pensarmos sobre os rumos e as interferências que as dimensões políticas e econômicas projetam para essa biogeografia.
Se há algum tempo o precursor desse campo de conhecimentos, F. Ratzel, imaginou a antropogeografia como tributária das "ciências da difusão da vida na terra", hoje os imperativos biotecnológicos, projetam uma espécie de inversão de valores e buscam reduzir o papel dessas ciências à condição de mero instrumento cognitivo a serviço das imposições econômicas. Ou seja, por meio da pressão biotecnológica, o conhecimento da dinâmica e da distribuição da vida no planeta, corre o risco de ver-se convertido em um ramo tributário de apenas um dos componentes da dimensão antropogeográfica, pois, como sintetiza C. Lévêque "o fato marcante dos últimos anos é o da tomada de consciência que a biodiversidade tornou-se uma verdadeira aposta industrial e comercial"(20).
Essa tomada de consciência, porém, vale tanto para aqueles que querem apenas se aproveitar dessa nova "corrida do ouro", como para aqueles que manifestam-se preocupados com o possível esgotamento da biodiversidade global, em consequência de "um processo de conversão no qual os diversos recursos biológicos são deslocados por outros que geram benefícios globais menores, mas benefícios privados maiores"(21).
Como se vê, a biogeografia, queiramos ou não, converteu-se em uma área de conhecimento indissoluvelmente vinculada à geografia política e econômica do globo. Se ignorarmos essa nova condição e continuarmos apenas realizando os inventários descritivos de flora e fauna, desconectados da realidade global, apenas assistiremos o definhamento desses "objetos de estudo", graças ao ritmo geométrico de extinção a que as espécies já estão hoje submetidas(22).
A biotecnologia não pode, evidentemente, ser tomada como única responsável por esse ritmo de extinção, mas o seu desenvolvimento, a despeito do otimismo com que alguns a encaram, inegavelmente projeta uma potencialização desse ritmo, pois, até aqui, ela tem se mostrado muito mais uma força promotora de uniformidade e homogeneidade, como atestam os processos de reengenharia genética já amplamente aplicados à produção agrícola e à pecuária(23).
Além do mais, graças a tais processos os países detentores de tecnologia tentam libertar-se de uma dependência anunciada em relação aos mananciais de biodiversidade (que, como vimos, concentram-se nos países do sul), transferindo amostras dessa diversidade para os bancos de germoplasma que, também concentradamente, se implantaram nos países do norte, tornando mais preocupante, ainda, quaisquer projeções quanto ao futuro desses mananciais(24).
Assim, uma biogeografia que queira se afirmar como um campo de conhecimentos que se traduza também por um mínimo de compromisso com o seu objeto de estudo -- a vida e seus territórios -- não pode continuar apenas se prestando ao papel de mapear as áreas mais ou menos propícias para que a aposta biotecnológica deposite suas fichas, nem tampouco pode continuar ignorando os graus de interferência dessa "aposta", ou de quaisquer outros desdobramentos da ação antrópica, nas dinâmicas dos territórios remanescentes da vida.
O caminho para reverter essas reduzidas condições, de certa maneira já nos foi indicado por quem sugeriu a própria formulação original da biogeografia: conectá-la com a dimensão antropogeográfica.
Essa conexão, poderia nos ajudar a evidenciar não só as possíveis interferências que se projetam como nefastas para a diversidade biológica e seus territórios, como também ajudaria a evidenciar as que contribuem para a sua manutenção e vitalidade.
Isso pode e deve ser realizado se, ao invés de nos restringirmos apenas ao exame e confecção dos mapeamentos globais e genéricos, aprofundarmos o conhecimento das regiões onde efetivamente concentram-se os mananciais de biodiversidade e adotarmos, desde o início, procedimentos investigativos, para a explicação do florescimento e diversificação da vida, que não se esqueçam de indagar até que ponto as populações humanas, que tradicionalmente desenvolveram seus universos culturais nessas áreas, não são também, tanto quanto os fatores físicos do ambiente, agentes de produção e manutenção da diversidade de flora e fauna que lá se encontram.
A adoção de tais procedimentos pode nos revelar que a "bio e a sociodiversidade estão inextricavelmente interligadas" e que a "biodiversidade, só pode ser salva caso a sociodiversidade também o seja"(25)
. À conclusões desse tipo, estudiosos (antropólogos e sociólogos, principalmente) que tem se dedicado ao entendimento do espaço amazônico, chegam inevitavelmente. A Amazônia, no entanto, não é apenas um importante manancial brasileiro, mas o mais significativo manancial da biodiversidade terrestre, abrigando cerca de 1/3 de todas as espécies que estimamos existir. Portanto, os resultados a que se chegam, examinando sua dinâmica, deveriam interferir nos procedimentos adotados para as análises de todas as outras importantes zonas de megadiversidade.
Investir nessa perspectiva, evidenciando a bio-sociodiversidade das regiões do planeta, não só permitiria uma revitalização da biogeografia, como também facilitaria a sua aproximação com aqueles outros profissionais e campos de conhecimento que, aproveitando essa situção de "tomada de consciência em torno da biodiversidade", direcionam seus esforços investigativos não para o servilismo em relação às novidades do mercado mundial, mas para amparar com argumentos técnicos e científicos aqueles que se disponham a lutar pela manutenção e ampliação dos espaços remanescentes de vida.
Em tempos de revolução biotecnológica e, portanto, de ameaças concretas ao conjunto da biosfera, que corre o risco de ver os seus principais mananciais subordinarem-se aos imperativos da ordem econômica e a serem valorizados apenas pelo potencial que apresentam para a conversão de valores ambientais em valores de troca, argumentar com a necessidade de amparar os procedimentos cognitivos em princípios éticos de defesa da diversidade biológica e cultural, ou, numa palavra, da vida, deixa de ser um truísmo ineficaz, e passa a ser uma responsabilidade concreta que se espera daqueles que desfrutam do acesso privilegiado à produção ao conhecimento que ainda é o mais valorizado social e institucionalmente: o conhecimento científico.
No caso específico da geografia, a releitura daquela formulação original, sugerida por Ratzel, -- "considerar a antropogeografia como um ramo da biogeografia" --, nesse contexto balizado não só pelas ameaças, mas também pelas alegadas boas promessas da revolução biotecnológica, pode traduzir-se em um esforço no sentido de sugerir a adoção de um princípio ético: sejam quais forem os caminhos adotados pelas ações dos homens, nos seus esforços cognitivos, esses caminhos, necessariamente, deverão considerar-se como tributários do esforço coletivo de conhecimento e manutenção dos espaços de vida.
A biotecnologia, como qualquer outra ação humana, deve
se subordinar a isso. E a biogeografia, desde que assuma como tarefa a
demonstração de que todo espaço biodiverso é
também socialmente e culturalmente diversificado, isto é,
desde que se assuma como ciência antropogeográfica, pode colaborar
com os argumentos que faltam aos outros campos de conhecimento, para enquadrar
e subordinar as pretensões da biotecnologia às necessidades
de desenvolvimento e manutenção da bio-sociodiversidade.
** Este trabalho foi produzido com o apoio da FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Brasil.
Notas
1. Cf. Müller, 1992, Ratzel a utiliza pela primeira vez em um artigo sobre a noção de ecúmeno (Müller, p. 448). Bassin (1997) nos informa que este e outros pequenos artigos de Müller resultam de uma extensa pesquisa, integralmente apresentada por Müller em uma tese de habilitação de três volumes, feita a partir dos arquivos, cartas pessoais, anotações de aulas e manuscritos inéditos, produzidos por Ratzel. Nessa tese de Müller, nos é apresentado o texto completo das aulas preparadas para um curso de biogeografia que Ratzel pretendia publicar em 1904, ano de sua prematura morte (Bassin, 1997: 568).
2. Cf. Müller, 1992 e Castrillon, 1992.
4. Em Gregory, 1992, estão relacionadas inúmeras definições da biogeografia, extraídas de livros textos recentes, nas quais são nítidos os esforços em enfatizar o papel do homem nos processos biogeográficos (p. 149 e p. 150 da edição brasileira)
5. Stoddart, 1987, p. 272 e 273.
8. Não é o caso aqui de examinarmos as razões que explicam esse abandono e, consequentemente, muitas das omissões que se podem verificar, sobretudo nos manuais e trabalhos dedicados à história da biogeografia, acerca do papel de Ratzel também no desenvolvimento desse campo disciplinar. Além dos autores que já mencionamos neste artigo já terem dado conta disso, tomamos a liberdade de remeter o leitor, interessado em maiores detalhes, a artigos de nossa própria lavra, onde tais razões são examinadas em profundidade e com mais vagar: Carvalho (1997a), Carvalho (1997b) e Carvalho (1999).
13. Cf. Carvalho, 1998, p. 35.
14. Ratzel, 1988, p. 55 e 106.
17. Tal afirmação deve ser entendida como válida, em geral, para caracterizar os caminhos tomados pela biogeografia. Não nos referimos aqui às exceções, pois o fato é que a biogeografia não só deixou de ser essa espécie de matriz disciplinar pretendida por Ratzel, como teve seu conteúdo reduzido e enquadrado como uma especialidade da geografia física, sem quaisquer conexões com abordagens antropogeográficas ou geopolíticas. A esse propósito afirmava Jean Tricart em um texto escrito no final dos anos 70: "À exceção de M. Sorre, de C. Troll e de alguns poucos, os geógrafos não se interessaram pela ecologia e pela biogeografia. Eles se acantonaram, sobretudo em França, Inglaterra e Estados Unidos, em uma visão setorial de nosso ambiente natural, erigindo a climatologia, a geomorfologia, a hidrologia, em disciplinas separadas, sem liames entre elas..." (Tricart, 1981, p. 10).
19. Em outra oportunidade (Carvalho, 1997c) já tivemos a ocasião de argumentar sobre esse fato da biotecnologia ser, na atualidade, entre as clássicas sáidas comumente adotadas pelo padrão de acumulação vigente para superação de suas crises, a "aposta" mais provável. O crescimento acelerado dos investimentos no setor, incluindo sua crescente influência na determinação dos preços das ações nas principais bolsas de valores do mundo, reafirmam isso. As empresas de biotecnologia, hoje, já figuram entre algumas das principais balizadoras das oscilações verificadas no índice Nasdaq, criado pela bolsa de Nova York, para aferir o comportamento dos empreendimentos em alta tecnologia. Já é farta a literatura sobre o tema e gostaríamos de destacar especialmente: Grace (1997), Rifkin (1999), Mainero (1996), Seiler (1998), Rabinow (1991)
22. Bastante indicativo desse ritmo são as taxas de desmatamento anual, verificadas nas coberturas florestais remascentes de países como o Brasil (2,3%) , Indonésia (1,4%) ou Congo (0,4%), que são considerados os principais redutos da diversidade biológica terrestre (Myers 1992, p. 348). Dados também bastante ilustrativos, nesse sentido, nos são fornecidos por Rifkin (1999, p. 8): "Para colocar a magnitude do problema em perspectiva, é estimado que durante a idade dos dinossauros, espécies tornaram-se extintas a uma taxa de aproximadamente uma a cada mil anos. Nos primeiros estágios da idade industrial, as espécies morriam a uma média de uma por década. Hoje perdemos três espécies por hora."
23. Laymert G. dos Santos (1994, p. 174), mencionando Vandana Shiva, afirma: "Shiva identifica na relação biotecnologia-biodiversidade o eixo do confronto entre meio ambiente e economia. Ela sabe que a riqueza da biodiversidade é vista como fonte de matéria-prima estratégica para a produção industrial de alimentos, medicamentos, fibras, energia etc. que só a biotecnologia pode desenvolver. Mas isso não basta para estabelecer um vínculo positivo entre a tecnologia e as diversas formas de vida; antes de tudo, pela simples razão de que a biotecnologia já vem produzindo uniformidade e homogeneidade. Como esperar então que uma força produtora de uniformidade conserve a diversidade?"
24. Segundo dados obtidos em material de divulgação distribuido na Convenção de Biodiversidade, ocorrida na Malásia em junho de 1994 e patrocinada pela Third World Network, esses bancos de germoplasma, embora já se espalhem por cerca de 130 países, concentram-se sobretudo nos chamados desenvolvidos, ou em centros por estes controlados, num total de 65%. Entre esses "bancos" encontram-se algumas empresas de controle privado ou de governos nacionais, mas eles são constituídos principalmente pelos centros de pesquisa pertencentes ao sitema CGIAR (Consultative Group on International Agricultural Research) e IARC (International Agricultural Research Centres), institucionalmente instalados no âmbito das Nações Unidas, financiados pelo Banco Mundial, Fundações Ford e Rockefeller. Nesses centros genéticos já estariam catalogadas e depositadas cerca de 4,2 milhões de coleções de sementes, extraídas principalmente de países do sul (TWN, 1994).
25. As afirmações são de Laymert G. dos Santos e foram extraídas de seu texto, já citado (Santos, 1998), em que ele discute, entre outras coisas, os vínculos estabelecidos entre as populações tradicionais e as caracterísitcas de diversificação física e biológica presentes nos ambientes em que vivem essas populações. Mencionando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e lideranças indígenas como Davi Yanomami, Santos, referindo-se especificamente ao espaço amazônico e aos cerca de 200 agupamentos indígenas que lá se encontram, conclui e alerta: "o destino da floresta não pode ser dissociado do que acontece com os povos da floresta" (p. 33).
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