REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 Vol. XVI, nº 924, 25 de mayo de 2011 [Serie documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana] |
ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), 2 vols. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio & Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010, 420 p. + 484 p.; il. color. ISBN: 978-85-88742-45-1 (vol. 1); ISBN: 978-85-88742-46-8 (vol. 2)
Francisco Roque de Oliveira
Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa
f.oliveira@campus.ul.pt
Recibido: 15 de abril de 2011. Aceptado: 30 de abril de 2011
Palavras-chave: Geografia Histórica, Rio de Janeiro, cidades coloniais portuguesas, séculos XVI e XVII
Key words: Historical Geography, Rio de Janeiro, Portuguese colonial cities, 16th and 17th centuries
A oficina do geógrafo
Mais de quatro décadas dedicadas à investigação académica e à Geografia aplicada ao planeamento urbano e regional fazem de Mauricio de Almeida Abreu um dos mais completos e originais geógrafos brasileiros da sua geração. Apesar da variedade de interesses que têm preenchido o seu percurso intelectual, arriscamos fixar duas constantes ao longo de todos estes anos. Por um lado, uma clara preferência pelo estudo das cidades, de que o livro que hoje recenseamos constitui apenas o exemplo mais recente. Por outro lado, o permanente exercício de uma reflexão crítica sobre as várias agendas teóricas e metodológicas que têm ocupado a ciência geográfica desde que esta superou a matriz hegemónica da Escola Francesa, facto acompanhado por uma consciência muito aguda sobre a necessidade de harmonizar a aparelhagem conceptual com as particularidades de cada objecto de estudo seleccionado: como o próprio lembra amiúde, é tão equívoco tratar o empírico sem bagagem teórica, como forçá-lo a uma qualquer moldura epistemológica definida de antemão[1].
Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mauricio Abreu reconhece no magistério e nas principais publicações produzidas na década de 1960 por Maria Therezinha de Segadas Soares a génese do seu interesse duradouro pela Geografia Urbana[2]. Sintomaticamente, “As causas do crescimento urbano recente de Itaboarí-Venda das Pedras” (1970), constituirá o seu artigo de estreia[3]. Escrito em parceria com Maria do Socorro Diniz, este texto partia já do renovado modelo de trabalho que a Associação de Geógrafos Brasileiros ia difundindo em substituição da monografia urbana tradicional de modo a integrar questões como a da área de influência da cidade[4]. Pela mesma época, Abreu estagia no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde participa na realização de estudos de desenvolvimento urbano e regional que ensaiavam a transposição da teoria dos pólos de crescimento formalizada por economistas como François Perroux no contexto europeu pós-1945 para o cenário do Nordeste do país[5]. Entre 1970 e 1979, esteve vinculado ao Centro de Pesquisas Urbanas do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), instituição privada para a qual realizou estudos como “A geografia e os problemas urbanos” (1970)[6] e o livro Sistema Urbano de Conservação do Meio Ambiente (1971)[7] – pesquisas que tanto confirmavam a sua atenção às questões de planeamento urbano, como abriam à temática ainda embrionária dos problemas ambientais. Com o patrocínio do IBAM e da Fundação Ford, realiza uma estada de cinco anos na Ohio State University, num dos departamentos de Geografia mais neo-positivistas dos Estados Unidos[8], onde obtém o mestrado (1973) e o doutoramento (1976) enquanto lecciona World Regional Geography a alunos de licenciatura. Na sua tese de mestrado, Abreu tratará do desenvolvimento regional no Brasil, sendo a tese de doutoramento sobre migrações e absorção de força de trabalho migrante e não-migrante nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo[9].
Entre os primeiros estudos que Mauricio Abreu foi incumbido de realizar para o IBAM uma vez regressado ao Brasil contou-se um trabalho sobre a distribuição da população à escala metropolitana que ambicionava definir o “modelo metropolitano” surgido no país. O ponto de partida para esta pesquisa, muito devedor do paradigma crítico cultivado em Social justice and the city de David Harvey e La question urbaine de Manuel Castells, interrogava o impacto das políticas públicas no processo de estruturação interna das cidades – e, em concreto, no processo de segregação urbana na área metropolitana do Rio. Desta pesquisa resultou o importante livro Evolução Urbana do Rio de Janeiro, escrito em 1978, mas que apenas teve a sua primeira edição em 1987[10]. Ora, para além do tratamento das questões de relegação espacial a partir da análise dos mecanismos de decisão e dos jogos de poder[11], a realização desta pesquisa mobilizou o autor para uma investigação alargada sobre os fundamentos históricos do processo de produção do espaço urbano carioca.
Tal constituiu a génese da sua transformação em geógrafo urbano histórico, algo que Mauricio Abreu tem datado do início da década de 1980, coincidindo com o seu ingresso no Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no preciso momento em que intuiu que apenas uma investigação fundada na pesquisa de fontes primárias permitiria sustentar as considerações gerais expostas na versão preliminar desse trabalho. A partir daí, vemo-lo afastar-se progressivamente do tratamento das questões associadas à cidade actual, para abraçar os grandes temas da segregação física e social caros à Geografia Histórica contemporânea[12]. A escala temporal também vem sendo dilatada. Assim, tendo começado por centrar a sua atenção no Rio de Janeiro do século XIX, Abreu investiga hoje os primórdios da cidade colonial, na primeira metade do século XVI. A Geografia Histórica do Rio de Janeiro confirma-nos esta verticalização gradual dos seus inquéritos, a qual foi entretanto amparada pela formação do Núcleo de Pesquisas de Geografia Histórica da UFRJ, coordenado pelo próprio[13].
Oficiante de um campo de estudos minoritário na Geografia de qualquer parte do mundo, Mauricio de Almeida Abreu conhece bem as dificuldades que uma aproximação retrospectiva ao espaço tem que enfrentar num meio académico que parece ter herdado do século XIX uma necessidade de demarcação face à História, quando não uma aversão pela própria dimensão temporal dos fenómenos, que se traduz numa indiferença recorrente pelas análises que não privilegiam o presente e as formas geográficas actuais. Pelo mesmo motivo, sabe também que a generalidade daqueles que se aventuram no terreno híbrido da Geografia Histórica valorizam a reconstituição das formas morfológicas, desatendendo, em contrapartida, os processos e normas sociais, jurídicas e culturais que estão na sua génese. No domínio específico da Geografia Urbana histórica, esta propensão tende a traduzir-se em estudos focados naqueles aspectos que permitem recuperar os traços de paisagem entretanto desaparecidos: evolução dos planos das cidades, conversão do solo rural em solo urbano, loteamento e suas escalas, sistema viário, muralhas, edificações ou a marcação das antigas linhas de litoral, para citar apenas os mais trabalhados[14]. Face a isto, a proposta que Abreu subscreve, visando analisar as “formas não espaciais que dão conteúdo às morfologias” (vol. 1, p. 19), não apenas alarga a interpretação sobre a memória da cidade eleita pela pesquisa, como resulta na opção metodológica mais ajustada para concretizar comparações pertinentes nos domínios da história social e urbana do período colonial[15].
O processo de produção do território que esteve sob jurisdição da cidade e da capitania do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII define o ambicioso objecto das mais de 900 páginas de Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). O intervalo cronológico considerado para este livro estende-se entre o momento em que aparecem as primeiras informações sobre a baía de Guanabara e a transição do século XVII para o século XVIII, quando a cidade que fora fundada em 1565 adquiriu uma centralidade indiscutível no contexto do espaço e da economia colonial brasileira, em consequência dos fluxos de ouro e escravos que a passaram a cruzar por efeito da emergência de Minas Gerais. O ajuste gradual da escala abrangida pelo estudo – que começou por se restringir ao actual território municipal do Rio de Janeiro, mas terminou por abranger toda a antiga capitania fluminense – traduz uma preocupação paralela em encontrar uma coerência geográfica para o estudo ditada pela leitura dos mecanismos de apropriação territorial em presença (vol. 1, p. 19-26)[16].
Ensaios já hoje clássicos como Royal Government in Colonial Brazil de Dauril Alden constituem um ponto de partida confesso deste inquérito (vol. 1, p. 23). Em qualquer caso, o principal feito de Mauricio Abreu resulta de ter sabido acrescentar à literatura disponível sobre o tema uma investigação assente num extenso conjunto de fontes primárias inéditas. A destruição de muitos dos fundos documentais relativos ao período colonial, que sucedeu aquando do incêndio do arquivo da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1790, constituía um obstáculo aparentemente intransponível para a concretização desta tarefa. Abreu soube contornar essa dificuldade e reconstituir boa parte do puzzle a partir dos materiais escritos e iconográficos que levantou sobretudo em fundos alternativos: uma ciclópica descida aos arquivos, que abrangeu a documentação colonial sobrevivente no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, os cerca de 500 livros cartoriais que integram o espólio reservado do Arquivo Nacional da mesma cidade (onde leu dezenas de milhares de escrituras de venda, aforamento ou troca de imóveis) e os largos milhares de “documentos avulsos” da capitania do Rio de Janeiro guardados no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa; foram identificados ainda inúmeros materiais complementares noutros fundos existentes fora do Brasil, como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, o Archivum Historicum Societatis Iesu, em Roma, e a Bibliothèque nationale de France, em Paris (vol. 1, p. 24-27)[17].
O Rio do açúcar
Dezoito capítulos distribuídos por quatro partes dão forma aos dois volumes de Geografia Histórica do Rio de Janeiro de Mauricio de Almeida Abreu. A Parte I, sobre “O processo de conquista”, centra-se no século XVI e articula a fundação do Rio de Janeiro com a etapa inaugural da colonização portuguesa do Brasil. São revistas questões recorrentes nas historiografias brasileira e portuguesa, como o início do reconhecimento dos litorais, a interpretação das primeiras representações cartográficas, a fixação da toponímia, a chegada da primeira expedição exploradora, a implantação da primeira feitoria e as primeiras décadas da disputa luso-francesa pelo comércio do Atlântico, que haveria de desembocar nos conflitos da década de 1550 pelo controlo da baía de Guanabara (Cap. 1, “Contatos e aproximações”). A malograda aventura da “França Antárctica”, concebida por Nicolas Durand de Villegagnon e tentada por Gaspard de Coligny (1555-1560), merece um capítulo autónomo, que inclui um ensaio sobre o contributo indígena à sustentação do projecto colonial francês e a reconstituição do território da ilha e da fortaleza de Coligny. Este capítulo também retoma as principais conclusões que Luciana de Lima Martins e Frank Lestringant formularam a propósito das imprecisões e manipulações simbólicas do “Brasil francês” na cartografia renascentista[18], assim como aquelas que Lestringant apresentou sobre a função instrumental de La vrai pourtraict de Geneure et du Cap de Frie – o mapa da região da Guanabara esboçado por Jacques de Vau de Claye, em 1579, quando a França refez o sonho de uma implantação duradoura na América do Sul (Cap. 2, “A França Antártica: um território que não foi”)[19].
A conquista portuguesa da baía de Guanabara, ao longo das primeiras décadas do século XVI, e o seu significado no âmbito do processo de colonização do Brasil levam o autor a rever as várias fases e modalidades da participação dos indígenas no estabelecimento das primeiras povoações e engenhos de açúcar, assim como a natureza específica dessas relações no palco da capitania de São Vicente. Envolvendo o plano militar que visou e logrou pôr termo à “França Antárctida”, a conquista e a consolidação do território luso na Guanabara são ainda lidas em consonância com o projecto missionário da Companhia de Jesus e o impulso que os jesuítas deram ao combate à colónia financiada pelos huguenotes no rio de Janeiro. Não sem deixar de anotar várias das dúvidas que permanecem por resolver sobre os sucessos militares do início de 1560 que ditaram a derrota dos franceses (do saldo em vidas humanas do combate aos contornos da participação dos indígenas nessa guerra), Abreu sintetiza, de seguida, os principais pontos que permitem compreender a fundação e as especificidades da cidade real do Rio de Janeiro: a qualidade estratégico-militar do sítio original, a fisionomia desse lugar, as relações com o hinterland e as outras capitanias para o provimento de reforços e mantimentos, a precoce adopção das estruturas sociais e jurídicas portuguesas, a primeira concessão de terras, os primeiros povoadores e as razões locativas que determinaram a transferência da povoação primitiva para o sítio elevado do morro de São Januário, depois chamado do Castelo, que acolheu o seu assento definitivo, em 1567 (Cap. 3, “A conquista da Guanabara”). O complexo tema dos aldeamentos indígenas fluminenses e a importância que tiveram no demorado processo de colonização são analisados no capítulo seguinte, onde também se detalha a progressão do povoamento português do litoral e dos baixos vales dos rios da margem ocidental da baía de Guanabara na direcção do cabo Frio, sucessivamente desafiado pela presença dos tamoios, franceses e goitacás, tal como pelas ambições inglesas e holandesas na costa sudeste do Brasil (Cap. 4, “A submissão do indígena e a consolidação da conquista”).
Nos seis capítulos que compõem a Parte II do seu livro, Mauríco Abreu disseca os agentes, ritmos e conflitos que acompanharam a apropriação do território e a formação da sociedade colonial da capitania fluminense entre a segunda metade do século XVI e o termo do século seguinte. O primeiro aspecto tratado prende-se com a transferência para o Brasil da prática de repartição de terras em regime de sesmaria vigente em Portugal, análise que atende às especificidades deste sistema em solo brasileiro, designadamente pelas implicações resultantes da coexistência de “sesmarias de terras” e de “sesmarias de chão”. Seguindo de perto o que o próprio autor já expusera no artigo “A apropriação do território no Brasil colonial”[20], ensaia-se aqui a periodização da matéria em causa nas terras da Guanabara, junto com a identificação das formas jurídicas, materiais e, finalmente, espaciais que a apropriação adquiriu. Neste caso, a elaboração de seis mapas conjecturais sobre a concessão de sesmarias na capitania real do Rio de Janeiro constitui um auxiliar precioso para a visualização de todo este processo (Cap. 5, “Concessão de sesmarias e expansão do povoamento”).
Confere-se, a seguir, o papel exercido por dois dos protagonistas centrais da fase inicial deste mesmo processo de apropriação e modelação do espaço da colónia, a Câmara do Rio de Janeiro e as ordens religiosas regulares – jesuítas, beneditinos e carmelitas (Cap. 6, “As terras da Câmara e sua ocupação”; Cap. 7, “O crescente patrimônio territorial das religiões”). Um capítulo intitulado “Os conflitos de apropriação territorial” (Cap. 8) oferece uma panorâmica sobre as disputas pela propriedade das terras da Guanabara geradas pela imprecisão das doações e pela ausência quase generalizada de demarcações judiciais. É dado destaque ao litígio territorial que se prolongou por mais de dois séculos envolvendo a Companhia de Jesus e a Câmara, os beneficiários de duas das maiores sesmarias concedidas nas proximidades da cidade pelo seu fundador, Estácio de Sá, em 1565. Na ausência de dados precisos sobre o crescimento demográfico da cidade e capitania do Rio de Janeiro, Abreu busca também reconstituir os ritmos de adensamento populacional verificados nas diversas partes do termo da cidade através de testemunhos como a difusão de capelas e a criação de paróquias e de circunscrições militares no território da capitania durante o século XVII. Dados complementares sobre o progresso dos mecanismos de controlo do território e das populações são recuperados a partir da análise dos escassos testemunhos seiscentistas que reportam a actuação dos juízes da vintena, capitães de estradas e assaltos (“capitães do mato”) e quadrilheiros urbanos, tal como com base nas informações sobre os novos corpos militares constituídos no final do século XVII, no contexto da descoberta do ouro de Minas Gerais (Cap. 9, “As malhas do controle territorial”). O último capítulo desta série retoma as estimativas sobre o crescimento da população da capitania ao longo dos séculos XVI e XVII, ao mesmo tempo que nos concede uma aproximação ao heterogéneo corpo social que a compunha: dos degredados e homiziados que as fontes destacam para os primórdios da colonização do território à “nobreza da terra”, dos oficiais mecânicos aos senhores de engenho e mercadores, passando pelos cristãos-novos, categoria transversal à generalidade das anteriores (Cap. 10, “A formação da sociedade colonial fluminense”).
Para a Parte III do seu trabalho, Mauricio Abreu propõem-se articular o Rio de Janeiro com o “sistema atlântico”, oferecendo uma ampla perspectiva sobre as relações estabelecidas entre a cidade e a capitania do Rio, Buenos Aires, África e o restante império marítimo português. Análise focada na economia do açúcar e nas sucessivas conjunturas económicas fluminenses, toma como ponto de partida o processo de progressiva incorporação do Rio na rede mercantil já constituída nas capitanias mais antigas, junto com o impulso conseguido pelo estabelecimento de relações comerciais com a cidade platina que decorre da instituição da União Ibérica, em 1580. Uma vez caracterizada a falência do sistema de comércio triangular que unia Angola, as capitanias brasileiras e o Prata, a qual ditou o fim da prosperidade que o Rio conseguira para si nas quatro primeiras décadas do século XVII, analisam-se as consequências da reconquista de Angola (1648) e da fundação da Colónia do Sacramento (1679) no tráfego africano e no contrabando com o Prata. A partir da minuciosa análise de fontes primárias que atrás se sumariou, Abreu prossegue com uma cuidada análise do mundo do açúcar fluminense do século XVII, cujo objectivo final consiste na reconstituição da geografia e da tipologia dos engenhos da capitania, assim como do conjunto da paisagem rural organizada em torno dos complexos agro-industriais açucareiros (Cap. 11, “A inserção do Rio de Janeiro na economia-mundo”; Cap. 12, “O antigo mundo fluminense dos engenhos”). Encerra esta Parte um capítulo que passa em revista os principais conflitos sobrevindos no Rio de Janeiro a partir da terceira década do século XVII e que, ainda e sempre associados à utilização da força de trabalho indígena pelos interesses coloniais e às vicissitudes da legislação indigenista, não deixaram de reflectir quer a parcial ocupação holandesa do Nordeste brasileiro (1630-1654), quer as turbulências do trato africano ditadas pela ocupação de Luanda pelos holandeses, em 1641, quer ainda a entrada das Antilhas no mercado açucareiro, a partir da década de 1650 (Cap. 13, “Turbulências seiscentistas”).
Morfologias pretéritas
Um dos principais resultados que Mauricio de Almeida Abreu nos oferece em Geografia Histórica do Rio de Janeiro corresponde à referida radiografia da economia do açúcar no Rio que preenche boa parte do capítulo 12, a qual inclui a identificação de 162 engenhos que aí funcionaram entre 1571 e 1700, junto com a respectiva localização e a análise da evolução das suas dimensões – um impressionante conjunto de dados que, entre o mais, obriga a uma reavaliação dos impactos da crise europeia do século XVII na economia regional fluminense[21]. Outro tanto pode ser dito sobre a generalidade das questões associadas ao exercício de reconstituição da morfologia urbana, tema de eleição da Geografia Histórica que Abreu, como vimos, insiste em tratar de forma articulada com o conjunto mais vasto de processos e normas sociais que induzem e conferem sentido à estrutura física da cidade e à respectiva dinâmica ao longo do período considerado. Estas questões vêm agrupadas nos cinco capítulos que integram a quarta e última Parte deste livro, dada sob o título “A cidade de São Sebastião”.
Desde a década de 1960, um conjunto de estudos de referência permitem realizar uma ideia razoavelmente clara sobre a evolução da forma urbana do Rio de Janeiro entre o momento em que o núcleo original do povoamento se transferiu do sopé dos morros Cara de Cão e Pão de Açúcar para o morro de São Januário/Castelo e a altura em que se iniciou a urbanização da várzea. É o caso dos trabalhos de Eduardo Canabrava Barreiros (1965), Paulo Santos (1968) e Giovanna Rosso Del Brenna (1990, 2001) ou, ainda, do “Curso sobre a fundação da cidade do Rio de Janeiro” publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1967)[22]. A compreensão deste processo entronca na discussão mais geral sobre os modelos das cidades coloniais brasileiras e os padrões que o urbanismo português assumiu no território americano, definidos entre a perfeita irregularidade e a perfeita regularidade[23]. Tal análise começou por explorar uma leitura demasiado simplista – e entretanto superada – que forçava a antinomia entre o urbanismo português e o urbanismo castelhano na América. Hoje, a mesma análise tanto tende a sublinhar as preocupações precoces com a ordenação ou a regularização dos espaços urbanos que se detectam no Brasil, como a aplicação – igualmente precoce – de planos ortogonais ou quase-ortogonais, por vezes lidos como reflexo do trabalho executado pelos engenheiros militares durante a dinastia filipina (1580-1640)[24]. Ora, a cidade real do Rio de Janeiro é um dos exemplos emblemáticos de construção urbana que dá a ver um claro traçado regular a partir do momento em que a urbe inicia a ocupação do território situado entre o perímetro amuralhado original, de feição medieval, e a orla da baía de Guanabara[25].
À semelhança do que ocorre nos restantes capítulos deste livro, Mauricio Abreu não só domina e discute a bibliografia fundamental sobre estas matérias, como retoma algumas das sínteses que o próprio apresentara em anos recentes[26], ampliando o nosso conhecimento sobre a morfologia original do Rio de Janeiro. Com base num notável investimento em investigação histórica, logo o primeiro dos capítulos desta Parte (Cap. 14, “Reencontrando a antiga cidade de São Sebastião”) recolhe os escassos indícios disponíveis relativos ao processo de materialização inicial da cidade a partir de alguns fragmentos de livros de registos de cartas de sesmarias, de cartas de chãos transcritas nos livros de tombo das ordens religiosas e de outra documentação esparsa – nenhuma da qual cartográfica, dado não ter sobrevivido qualquer material deste tipo contemporâneo dos primeiros tempos da cidade. Como adverte, daqui resulta, uma vez mais, um mapeamento acima de tudo conjectural do espaço que se tenta apreender.
Metodicamente, Abreu indaga as características do sítio alcandorado que acolheu o primeiro assentamento da cidade, a geografia dos caminhos que estruturaram a progressiva ocupação da zona baixa, a localização da sesmaria jesuítica – a primeira sesmaria da cidade –, o significado do arcaísmo “trasto” associado ao sistema defensivo, a localização dos baluartes, muros e portas da cidade, assim como a morfologia da “cidade alta”; ao recuperar o processo de distribuição de terrenos e parcelamentos pela área alodial da cidade, percebe que a rápida apropriação da “cidade baixa” foi quase concomitante à ocupação do núcleo situado no alto da colina; anota a origem e a evolução da toponímia e da malha da “cidade baixa” e discute os escassos elementos que permitem elucidar sobre a fisionomia das moradias; destaca o conjunto de disposições legais que condicionaram, desde o início, a hierarquia e o traçado dos arruamentos e das construções; enfim, tomando de empréstimo de Walter Rossa a expressão “urbanismo regulado português” (vol. 2, p. 250), vê nestas últimas disposições um conjunto de normas urbanísticas modernas e razoavelmente rígidas, firmadas no começo da história do Rio de Janeiro pelos governadores e, a partir do século XVII, pela municipalidade.
As principais conclusões desta série de inquéritos aparecem expostas nos três mapas que oferecem outras tantas hipóteses de representação gráfica para a localização do muro e das portas da cidade quinhentista (vol. 2, p. 235, Mapas 17-19), no mapa que procura fixar a mancha urbana no final do século XVI (vol. 2, p. 241, Mapa 20) e naquele que reconstrói o plano urbano do Rio por volta de 1680 (vol. 2, p. 261, Mapa 21). À parte isto, Abreu destrinça das múltiplas referências topográficas e toponímicas dispersas pela documentação consultada os elementos que permitem associar o penoso processo de drenagem da várzea alagadiça e pantanosa, que decorreu durante os séculos XVI e XVII, à construção da forma urbana carioca. O progressivo despovoamento da “cidade alta”, que aconteceu em paralelo à expansão para a proximidade da baía, é descrito no último ponto deste capítulo, com indicação dos sucessivos equipamentos urbanos transferidos do berço original para a cidade nova, com destaque para a casa da Câmara, a Cadeia e a Sé.
Como para o estudo do processo de crescimento e estruturação da generalidade das cidades, também o cabal entendimento da identidade morfológica do Rio de Janeiro e das primeiras fases do seu urbanismo requer a reconstituição dos espaços livres públicos e o modo como estes se articularam com as edificações envolventes. De entre a grande família de espaços urbanos que integra praças, largos, terreiros e adros, os rossios – também designados como campos ou pastos – definem um lugar específico na transição entre a cidade e o espaço rural[27]. Mauricio de Almeida Abreu procede à leitura do modo como decorreu a instituição de rossios no Rio de Janeiro, como foram integrados na vida urbana e como interferiram no processo de produção do espaço carioca. A síntese de tudo isso resulta na elaboração de um novo mapa conjectural, o qual agrupa os rossios dos séculos XVI e XVII (vol. 2, p. 300, Mapa 22) (Cap. 15, “Os rossios da cidade”).
Segue-se a discussão das transformações operadas na fisionomia da cidade no decorrer do século XVII, a qual, para lá da acção directa ou indirecta da Coroa, destaca o papel determinante que a iniciativa particular reservou para si em todo este processo: a marca impressa pelas ordens religiosas, com a construção de mosteiros e conventos; as igrejas, capelas e ermidas impulsionadas pela devoção popular; as disposições camarárias que condicionaram o alinhamento e normalizaram a largura dos logradouros públicos; a invenção da toponímia urbana, suas lógicas e sortes diferenciadas; as características internas das edificações e os materiais de construção empregues; o aparecimento das primeiras provas de verticalização urbana e a difusão das construções em altura pelos distintos sectores da cidade, tema rematado com a identificação dos poucos casos de residências nobres de que há notícia (Cap. 16, “A construção do espaço urbano no século XVII”).
A estrutura urbana do Rio e o papel preponderante que os mercadores exerceram na cidade durante o século XVII são tratados no penúltimo capítulo deste livro (Cap. 17, “O Rio de Janeiro do século XVII: economia urbana e organização interna”). Nestas páginas, Mauricio Abreu recria o funcionamento das relações campo-cidade, assinalando os interesses envolvidos e os conflitos que geraram, ao mesmo tempo que tenta reencontrar a sua expressão espacial. A análise parte do inventário dos monopólios comerciais sucessivamente estabelecidos e das tensões que estes suscitaram: o monopólio do sal, o contrato para a actividade baleeira, a pesagem do açúcar, o comércio de carnes, para além da especulação praticada com diversas outras mercadorias, como o peixe, o vinho e os escravos africanos. A partir daí, analisa-se a distribuição das funções urbanas no interior do Rio seiscentista, tentando verificar-se a existência, ou não, de um padrão espacial para a presença dos ofícios mecânicos no espaço urbano. As conclusões retiradas a propósito são confrontadas com aquelas que se observam para as residências urbanas dos senhores do engenho e, finalmente, para as residências dos marranos, sempre em busca de ver confirmado se os cristãos-novos reproduziam na cidade a tendência à formação de unidades de vizinhança que apresentavam no campo.
No último capítulo de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Abreu retoma o estudo dos espaços livres públicos onde se realizavam as actividades quotidianas e rituais, tal como a circulação em geral: as ruas, mercados, praças e praias da cidade, os controlos impostos às várias actividades comerciais realizadas nas ruas, a vigilância exercida sobre certos hábitos e comportamentos verificados no espaço colectivo, o lugar do pelourinho e da forca na paisagem urbana, terminando com a exame dos lugares de realização de actividades de carácter mais excepcional, como as festas e as procissões (Cap. 18, “A vida urbana nos espaços coletivos: comércio, controle e festa”). A imagem da “cidade de São Sebastião” que daqui resulta concorda com a impressão geral que o livro veio construindo de uma cidade ainda secundária no contexto colonial, apenas animada nas curtas semanas que mediavam entre a chegada e a partida das frotas do açúcar.
Não faltará acrescentar que estamos diante de uma obra de fôlego, leitura obrigatória para a compreensão da génese e da forma da que veio a ser a segunda capital do Brasil e, pouco mais de um século depois de fechada a cronologia estudada por Mauricio Abreu, capital efémera do próprio império português (1808-1821). Acresce o bom gosto gráfico dos dois volumes, a qualidade das figuras e o cuidado posto na reprodução dos numerosos documentos escritos, cartográficos e iconográficos que a enriquecem. Diante disto, são mínimos os reparos que anotamos, os quais, pelo menos num caso, traduzem meros lapsos de ordem tipográfica.
Assim, sugerimos que uma próxima edição possa incluir a cartografia das distintas etapas de conquista territorial descritas nos capítulos 3 e 4, desde logo útil para quem se aproxima da história do Rio de Janeiro e do Brasil coloniais sem dispor da capacidade de visualizar de forma automática os cenários em causa. Notamos a necessidade de rever a ortografia moderna na palavra “concelho” no início dos capítulos 5 e 15. Sugerimos também uma maior precisão conceptual a propósito do emprego quase sinónimo dos conceitos de “território” e “lugar” que ocorre no ponto da Introdução onde se definem os objectos espacial e temporal visados pelo trabalho. No mesmo sentido, será útil pontualizar o emprego da expressão “investigação geo-histórica”, que ocorre no ponto da mesma Introdução onde se expõem as opções metodológicas seguidas. Ainda que se depreenda que esta última ocorrência decorra da discussão sobre os termos de referência da Geografia Histórica que procede dos parágrafos anteriores, não só não há como evitar associá-la ao neologismo equivalente adoptado por Fernand Braudel, como é possível ser-se tentado a ler aí um reflexo das propostas de historicização das categorias geográficas apresentadas pela Geohistória contemporânea, tal como estas vêm sendo sistematizadas por autores como Alan Reynaud, Géraldine Djament, Christian Grataloup ou Martine Droulers, por exemplo[28].
O excelente livro que Mauricio de Almeida Abreu nos oferece não esgota nem podia esgotar um tema virtualmente inesgotável. Com o rigor que o caracteriza, o autor assume à partida a fragilidade de todas aquelas reconstituições que têm a apoiá-las um escasso conjunto de provas documentais, boa parte das quais resgatada com o maior dos méritos de arquivos repartidos pelos dois lados do Atlântico, com catalogação deficiente, colecções truncadas e até condições de acesso que testam a resistência do mais empenhado dos investigadores. Mas, por cima de qualquer uma destas contingências, Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700) tanto constrói o mais completo retrato disponível sobre a formação territorial da cidade e do seu hinterland durante o período considerado, como abre novas oportunidades de pesquisa comparada sobre as práticas urbanas adoptadas num conjunto de cidades costeiras do império português cuja génese e evolução tantos aspectos apresentam em comum com as aparentes especificidades do Rio – para além de Lisboa e Porto, desde logo as cidades da Horta, Angra, Funchal e Luanda.
Notas
[1] Abreu, 1998, p. 88.
[2] Rua & Abreu, 2004, p. 196; Scheibe et al., 2006, p. 198-199.
[3] Abreu, 1970a.
[4] Abreu, 2006a, p. 149-51; Scheibe et al., 2006, p. 198-199.
[5] Bailly, 1998, p. 78-79; Rua & Abreu, 2004, p. 197-200; Scheibe et al., 2006, p. 199-202.
[6] Abreu, 1970b.
[7] Abreu, 1971.
[8] Scheibe et al., 2006, p. 203.
[9] Rua & Abreu, 2004, p. 201-203; Scheibe et al., 2006, p. 202-213.
[10] Abreu, 1987.
[11] Ver, inter alia, Bailly, 1998, p.132-137; Pumain, Paquot & Kleinschmager, 2006, p. 254-256.
[12] Ver, inter alia, Butlin, 1993, p. 222-223.
[13] Rua & Abreu, 2004, p. 208-210; Scheibe et al., 2006, p. 214-223.
[14] Abreu, 1998, p. 92-94.
[15] Ver, inter alia, Brockey, 2008, p. 1-14.
[16] Ver também Conde & Abreu, 2011.
[17] Ver também Rua & Abreu, 2004, p. 210.
[18] Ver Lestringant, 1981, p. 205-256; Martins, 1997, p. 141-155; Martins, 2001.
[19] Lestringant, 1981, p. 237, 243-247. A propósito deste mapa, ver também Mollat du Jourdin & La Roncière, 1984, pl. 61, p. 240-241.
[20] Abreu, 1997.
[21] Sínteses preliminares sobre o mesmo assunto em: Abreu 2006b; Abreu, 2010.
[22] Ver Rossa, 1998, p. 531.
[23] Santos, 1968, p. 50; Pessôa, 2000, p. 74.
[24] Rossa, 1995, p. 286; Teixeira & Valla, 1999, p. 224-316.
[25] Azevedo, 1998, p. 58-59.
[26] Abreu, 2005; Abreu, 2008.
[27] Ver Teixeira, 2001, p. 9; Vaz, 2001, p. 139-141.
[28] Ver, inter alia, Ciattoni, Beucher & Reghezza, 2005, p. 73-75.
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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]
Ficha bibliográfica:
OLIVEIRA, Francisco Roque de. Abreu, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XVI, nº 924, 25 de mayo de 2011. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-924.htm>. [ISSN 1138-9796].