REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 Vol. XV, nº 876, 15 de junio de 2010 [Serie documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana] |
TRAJETÓRIAS E DIRECIONAMENTOS DA POLÍTICA DE IRRIGAÇÃO NO BRASIL:
AS ESPECIFICIDADES
DA REGIÃO NORDESTE E DO VALE DO SÃO FRANCISCO
Agripino Souza Coelho Neto
Universidade do Estado da Bahia (UNEB-CAMPUS XI)
Doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
agscneto@uneb.br
Trajetórias e direcionamentos da política de irrigação no Brasil: as especificidades da região Nordeste e do Vale do São Francisco (Resumo)
O presente artigo se propõe a apresentar a trajetória e os direcionamentos da Política Nacional de Irrigação, destacando o modo como essa política de Estado assumiu contornos específicos na Região Nordeste do Brasil e no Vale do São Francisco, vinculados às aspirações do processo modernizante que permeou as ações do Estado brasileiro, desde a década de 1950. Apoiado em discussões sobre o caráter e o papel do Estado na produção do espaço, empreende-se a identificação dos processos, programas e ações da Política Nacional de Irrigação colocada em prática no território brasileiro, buscando desvendar sua lógica, diretrizes, estratégias, discursos e implicações espaciais e sócio-econômicas. O roteiro do texto segue um critério escalar que não é apenas geométrico, mas corresponde a interdependência dos processos e dos fatos que serão descritos, abordando a política de irrigação no Brasil e seus desdobramentos na Região Nordeste e no Vale do São Francisco.
Palavras-chave: Políticas de Irrigação, Produção do Espaço, Região Nordeste, Vale do São Francisco, Brasil
Trayectorias y direccionamientos de la política de regadío en Brasil: las especificidades de la región Nordeste e del Vale do São Francisco (Resumen)
El presente articulo se propone a presentar la trayectoria y los direccionamientos de la política de regadío, destacando el modo como esta política de Estado ha asumido contornos específicos en la región Nordeste de Brasil y en Vale do São Francisco, vinculado a las aspiraciones del proceso de modernización que ha enmarcado las acciones del Estado brasileño, desde la década del 1950. Apoyado en discusiones sobre el carácter y el papel del Estado en la producción del espacio, se emprende la identificación de los procesos, programas y acciones en el territorio brasileño, buscando desvendar su lógica, directrices, estrategias, discursos e implicaciones espaciales y socioeconómicas. El itinerario del texto sigue un criterio escalar que no es solamente geométrico pero corresponde a las interdependencias de los procesos y de los hechos que serán descriptos, abordando la política de regadío en Brasil y sus desdoblamientos en la región Nordeste y en el Vale do São Francisco.
Palabras Clave: Política de regadío, Producción de espacio, Región Nordeste, Vale do São Francisco, Brasil
Path and directions for the irrigation policy in Brazil: the specifics of Northeast region and the San Francisco Valley (Abstract)
This article aims to present the trajectory and the directions of the Irrigation National Policy, pointing out the way that this State policy assumed a specific outline in the Northeastern Brazil and the Sao Francisco Valley related to the aspiration of the modernizing process that took place in the actions of the Brazilian State since de 1950’s. Based on discussions about the nature and the State role in the space production, processes identification undertaken, programs and actions of the Irrigation National Policy put into practice in the national territory, trying to reveal the logic, the guideline, the strategic, the discusses and the space and socio-economics’ implications. The text line follows a criteria in scale not only geometrical, but corresponds the interdependence of the processesand the facts that will be described, approaching the Brazilian irrigation policy and the consequences in the Northwestern Brazil and the Sao Francisco Valley.
Key-Words: Irrigation Politics, Space Production, Northeast Region, San Francisco Valley, Brazil
A prática da agricultura representa interessante exemplo da íntima relação entre a sociedade e a natureza. Essa relação, historicamente articulada, mediada pelas técnicas, oferece grande contribuição para a compreensão da produção do espaço geográfico. A técnica é definida por Santos (1996) como meio instrumental e social para a realização da vida e para a produção do espaço. Para ele, as transformações impostas à natureza, como a domesticação das plantas e animais, são por si só, consideradas técnicas[1].
A irrigação é uma técnica praticada desde a antiguidade, cujo aperfeiçoamento acompanhou o desenvolvimento do progresso técnico-científico. Sua utilização na agricultura consiste numa forma particular de uso da técnica no processo produtivo viabilizando a própria reprodução da sobrevivência do homem. O esforço humano para o desenvolvimento da técnica e a sua efetiva utilização, realiza-se por meio do trabalho humano, componente essencial na mediação das relações da sociedade com a natureza.
Os projetos de irrigação constituem espaços construídos a partir das relações entre sociedade e natureza, cujo componente técnico se destaca e assume papel determinante. Através da técnica, o homem viabiliza o aproveitamento dos recursos de água e solo, permitindo, no dizer de Germani (1993: 501), “o domínio do homem sobre a natureza”. Entretanto, a autora destaca que a técnica não é neutra, uma vez que as decisões sobre seu uso estão permeadas de conotações políticas.
No espaço, entendido como produto e condição da reprodução da sociedade (Lefebvre, 1986; Santos, 1978), interagem diversos agentes que, através das mais variadas estratégias, são responsáveis pela sua produção. Estado, empresa, sociedade civil organizada, indivíduos e suas diversas relações, concorrem para a produção de um espaço que atendam a seus interesses, embora, cabe destacar que a correlação de forças seja bastante desigual. Neste estudo, destaca-se o papel do Estado enquanto agente central na organização e produção do espaço, materializado por meio de políticas públicas que se concretizam nos planos, estratégias e ações empreendidas no processo de produção dos espaços irrigados. Nesta trajetória, formas são construídas, conflitos são produzidos, conteúdos e significados são conferidos ao espaço. Considerando a centralidade da intervenção do Estado na produção dos espaços irrigados, cabe apreender as lógicas, os interesses e os contextos sócio-políticos em que foram engendradas.
Uma análise sobre a realidade nordestina remete aos conflitos de classes que se desenrolaram no interior da região, bem como os conflitos que se estabelecem com outras regiões e com o poder central[2]. Estes conflitos não ocorrem apenas num nível que envolve a luta entre classe dominante e subordinada, pois se concretizam também nas disputas intraclasses. Segundo Gonçalves Neto (1996), a origem dos conflitos encontra-se na diferença de interesses entre as classes e entre as diversas frações de classes. A realização do processo de acumulação burguesa explicita o conflito central entre capital e trabalho e requer a subordinação da classe trabalhadora. Este intento é alcançado pelo desenvolvimento de “mecanismos que garantam a estabilidade e a manutenção de uma ordem” que defenda os interesses da classe dominante. “Esses mecanismos comporão o Estado, o qual terá por função a guarda da ordem dominante, no caso burguesa” (Gonçalves Neto, 1996: 117).
Este princípio permeará a intervenção do Estado na região Nordeste através dos diversos mecanismos de políticas adotados sobre a égide do planejamento regional. Em concordância com esta idéia, Carvalho afirma que, “No caso dos países capitalistas, em termos mais genéricos, pode-se dizer que o Estado está organizado e voltado para a preservação e reprodução dos componentes essenciais daquelas sociedades, ou seja, para a promoção das condições necessárias à continuidade e à expansão do processo de acumulação [...]” (Carvalho, 1987: 37).
Esses pressupostos demonstram o grau de dirigismo exercido pelo Estado e indicam a representatividade de suas ações na conformação do espaço regional, e no alcance dos propósitos institucionais que se confundem com os interesses das frações de classes que detêm o poder político, pois, segundo Carvalho, [...] os investimentos e as ações do Estado abrangidos pelo planejamento regional terminaram orientando-se para viabilizar a expansão capitalista, a modernização e a interação monopolista da economia nordestina. Principalmente pela criação das condições de infra-estrutura necessárias, pelo levantamento dos recursos naturais existentes, pela reestruturação e modernização do aparato estatal na região e pelos subsídios mais diretos ao capital, que se tornaram especialmente mais importantes no pós-64 [...] (Carvalho, 1987: 81-82).
Os documentos produzidos pelo Estado, através de seus órgãos de planejamento e execução, apresentam, de forma clara, os objetivos perseguidos com os programas de irrigação no Brasil e, em particular, aqueles desenvolvidos para a região Nordeste, voltados para o aumento da produção e da produtividade, cujas orientações centrais buscam a modernização e inserção do capitalismo no campo. Os princípios e a lógica que orientam as políticas e ações objetivam em nível maior a inserção regional nos moldes de acumulação ampliada de capital, promovendo transformações espaciais e reproduzindo relações capitalistas de produção, conforme concebe Bursztyn:
[...] O Estado tem um papel decisivo na expansão capitalista, através da criação de enclaves no Nordeste. Nestes ‘lócus’ privilegiados pela ação planejada, novos grupos sociais aparecem, enquanto outros se reduzem. E essa mudança não se limita à esfera dos trabalhadores, onde os assalariados são cada vez mais importantes em relação aos parceiros, moradores e arrendatários. Também no topo da hierarquia social o Estado cria novos grupos: uma parcela dos velhos latifundiários tornam-se capitalistas modernos e uma ‘pequena burguesia’ rural outrora inexistente, começa a aparecer como produto direto dos programas de desenvolvimento regional. Tal é o caso tanto dos colonos dos ‘Perímetros Irrigados’ como dos ‘Pequenos Negócios’ das aglomerações humanas do interior, que são o alvo da ação do Estado em busca de satisfazer a necessidade do capital de contar, a nível local, com uma classe capaz de fazer a mediação entre o trabalho e o próprio capital (Burztyn, 1987: 165-166).
Nesse sentido, considera-se que o modelo de irrigação adotado no Vale do São Francisco reflete os pressupostos das políticas de Estado, portanto, reúnem elementos e critérios que buscam orientar e direcionar as ações e os resultados, visando a assegurar que os objetivos propostos nas políticas públicas sejam atingidos. Os objetivos, por sua vez, mesmo que considerados sobre uma política setorial como a política de irrigação, expressam os interesses gerais do Estado e das classes que o controlam.
As discussões empreendidas acima apontam alguns elementos referenciais para a apreensão da trajetória e dos direcionamentos da política de irrigação no Brasil, e de modo particular, na Região Nordeste e no Vale do São Francisco. O conteúdo do debate abre horizontes interpretativos para os processos que respondem pela produção de uma espacialidade específica no Nordeste brasileiro, que tem ganhado expressão nas últimas décadas, com a proliferação dos perímetros irrigados, constituindo-se em pontos que dispersam da regularidade regional, quando considerado o uso das técnicas e os níveis de produtividade agrícola. Desse modo, o texto se propõe apresentar as origens, a lógica, as estratégias, as ações e as implicações das políticas de irrigação no Território brasileiro. Para cumprir o percurso anunciado, o presente artigo encontra-se estruturado em quatro seções. Além desta introdução, cujo conteúdo já fora explicitado, as demais seguem um critério escalar que não é apenas geométrico, mas corresponde a interdependência dos processos e dos fatos que serão descritos. Na segunda seção empreende-se a identificação dos processos, diretrizes, programas, propósitos e ações da Política Nacional de Irrigação colocada em prática no território brasileiro, referencial necessário para compreensão em nível regional, tomando-se como elementos de análise os principais instrumentos ou medidas de políticas governamentais. A terceira parte destaca como a Região Nordeste experimentou um tratamento específico no âmbito da Política Nacional de Irrigação, sobretudo, pela necessidade de superação de suas condições sócio-econômicas e espaciais particulares, geralmente identificadas com a problemática da seca. No quarto tópico focaliza o Vale do São Francisco, que representa um recorte privilegiado da Região Nordeste no tocante às políticas de irrigação. Sua especificidade decorre da adoção de um modelo singularmente produzido para essa região-plano, devido ao reconhecimento das condições hidrográficas potenciais e pela materialização dos resultados alcançados. Na última seção - de caráter conclusivo, mas sem intenção de esgotar o debate - recupera-se o que há de central na lógica da produção dos espaços irrigados considerando os recortes estabelecidos para este trabalho.
Percursos e Diretrizes da Política Nacional de Irrigação no Brasil
A política de irrigação no Brasil adquire um caráter sistemático, envolvendo a elaboração de planos, projetos e ações, estruturadas institucionalmente, apenas a partir de 1960. As ações, até meados do século XX, estiveram voltadas para objetivos setoriais – como a produção de arroz no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina – e, espacialmente circunscritas a pequenas áreas das regiões Sul, Sudeste e do Semi-árido nordestino (Banco do Nordeste, 2001b). A irrigação foi tratada secundariamente pelos órgãos estatais, caracterizada pela inexistência de uma política bem definida, especificamente, voltada para a dotação da infra-estrutura necessária. As ações apresentaram-se desarticuladas interinstitucionalmente e centralizadas na esfera federal.
Os dados do Censo Agropecuário de 1970 demonstram que a irrigação estava concentrada no Sul e Sudeste do país, que possuíam 82,9 por ciento das terras irrigadas, enquanto que as regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, possuíam, respectivamente, apenas 14,6 por ciento, 1,8 por ciento e 0,7 por ciento[3]. Esses números são suficientemente representativos da ineficácia das políticas de irrigação no Nordeste e questionam o funcionamento dos órgãos que possuíam competência administrativa para viabilizar os diversos programas dirigidos para a região. A pequena expressão da agricultura irrigada nordestina em relação ao restante do país contradiz com o discurso adotado pelo Estado, que concebe esta modalidade agrícola (cuja especificidade se encontra amparada na técnica) como alternativa para romper com o atraso e promover o desenvolvimento regional, considerado, inclusive, como principal alternativa de combate ao fenômeno das secas, recorrentemente atribuído e identificado como Nordeste brasileiro.
No período sobre o domínio do governo militar, quando ocorre o chamado “milagre brasileiro”, o planejamento assume força no âmbito do Estado com a elaboração dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (I, II e III PNDs). A agricultura irrigada adquire impulso e maior efetividade com a criação do Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola (GEIDA) em 1968, cujos estudos permitiram uma atuação mais sistemática, a partir de 1971, com a divulgação do Programa Plurianual de Irrigação (PPI), documento que estabelece as diretrizes nacionais para a política de irrigação no país. Segundo Brito (1991), este programa representa um marco na mudança de orientação do Estado brasileiro em relação à agricultura irrigada, pois, estabelece metas a serem perseguidas pelo Estado e busca a ampliação do conhecimento sobre os recursos disponíveis, resultando na elaboração de diversos estudos de viabilidade técnica e econômica. O documento considerou a necessidade de investimentos estruturais, a organização do processo de comercialização e os aspectos políticos, institucionais e legais, estabelecendo também, parâmetros para gestão dos recursos humanos. O PPI define uma geografia para a política nacional de irrigação, circunscrevendo suas ações prioritariamente pela região Nordeste, envolvendo todas as bacias hidrográficas, e pelas regiões Sudeste e Sul, na bacia do rio Paraná. Vale salientar que o programa aponta uma abertura para a iniciativa privada, orientando a implantação do Programa Nacional para o Aproveitamento Racional das Várzeas Irrigáveis (PROVÁRZEAS) e o Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação, além do estabelecimento de diretrizes e metas comandadas pelo setor público, mas estimulando a iniciativa privada.
Embora a prática do planejamento dirigido para a irrigação já fosse adotada no país desde o final da década de 1960, e as experiências de implantação de projetos públicos de irrigação já se constituíssem em evidências durante a década de 1970, até o final desta década, não existia legislação específica que disciplinasse a participação dos diversos agentes envolvidos. O avanço da irrigação no país enfrentou enormes entraves, que podem ser constatados pelo tempo decorrido entre a elaboração do projeto de Lei em 1959, a edição do texto da Lei de irrigação (Lei nº 6.662) em 25 de junho de 1979, e sua regulamentação em 29 de março de 1984. Carvalho (1987) informa sobre as resistências que o então anteprojeto da Lei de Irrigação sofrera em reunião do Conselho Deliberativo do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO) e no próprio Congresso Nacional, cujos representantes das oligarquias agrárias do Nordeste consideravam-no uma ameaça à propriedade privada, à ordem constituída e à tranqüilidade social. Esta perspectiva pode ser constatada pela necessidade de alteração da estrutura agrária em face da adequação ao funcionamento da infra-estrutura técnica, pois a implantação dos perímetros públicos de irrigação, conforme texto da aludida legislação, pressupunha a desapropriação de terras por interesse social e seu parcelamento em unidades menores para assentamento de colonos (agricultores familiares). Ainda, segundo Carvalho (1987), a condução do processo de aprovação desta legislação, tal como fora efetivado, reflete a força do poder executivo, que fez prevalecer os interesses de grupos econômicos e políticos dominantes e ignoraram as aspirações da sociedade. Esta discussão recai sobre a viabilização do interesse social dos projetos públicos, informando sobre os interesses que envolvem a desapropriação das terras e a forma de parcelamento dos lotes, elementos polêmicos que podem contrariar os objetivos de afirmação do modo de produção capitalista.
A lei define a competência do poder público na elaboração dos programas nacionais de irrigação e de seus instrumentos operativos, estabelece e normatiza critérios para o planejamento, financiamento, execução, operação, fiscalização e avaliação dos projetos de irrigação. No âmbito da lei, são tratados os parâmetros centrais para a implantação dos projetos públicos, a exemplo da desapropriação das terras, dos investimentos em infra-estrutura, da forma de parcelamento das terras, amortização dos investimentos, deveres e direitos dos irrigantes. Além do Decreto 89.496, de 29.03.84, que regulamenta a Lei de Irrigação, outros decretos, sancionados durante as décadas de 1980 e 1990, promoveram mudanças nos parâmetros acima destacados, alterando os princípios políticos e sociais dessa política. Exemplos marcantes se refletem na abertura crescente a instalação de empresas em detrimento de famílias de colonos, modificando os princípios de parcelamento da terra e alterando os critérios de seleção de irrigantes, privilegiando agentes mais capitalizados e com maior capacidade gerencial com a adoção de licitação para venda dos lotes.
A partir de 1986, com o início do processo de redemocratização do país, o governo institui o Programa Nacional de Irrigação (PRONI) e o Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE), definindo atribuições e fixando metas desafiadoras para ampliar os espaços irrigados no território nacional. A dimensão deste desafio pode ser avaliada ao considerar que, naquele ano, a área irrigada do país estava em torno de 2,3 milhões hectares e a meta governamental era implantar 3 milhões de hectares até o ano de 1990, ou seja, duplicar a área irrigada em apenas quatro anos (Banco do Nordeste, 2001b). O pressuposto do programa prevê que a irrigação deve ser realizada, prioritariamente, pela iniciativa privada, cabendo ao Estado oferecer condições para viabilização deste pleito, com a construção de infra-estrutura – obras hidráulicas, elétricas, estradas, dentre outras – desenvolvimento de pesquisas e formação técnica.
O PRONI delimita suas prioridades de atuação, tendo em vista um arranjo espacial-setorial que compreende: (1) irrigação das regiões tradicionalmente vinculadas à produção de grãos; (2) irrigação das regiões produtoras de hortaliças nos cinturões verdes dos grandes centros consumidores; (3) irrigação das regiões pioneiras e de expansão agrícola, vinculadas à produção de grãos e voltadas aos corredores de exportação (Banco do Nordeste, 2001b). Em consonância com esta orientação, as prioridades se concentraram em determinadas áreas da região centro-sul do país, especificamente nos estados tradicionalmente fortes, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, e em estados que se encontram na fronteira de expansão da moderna agricultura capitalista (Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul).
Constata-se também a falta de articulação entre os instrumentos institucionais que poderiam alcançar melhores resultados atuando integradamente. Segundo Germani (1993), o Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) e o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) são contemporâneos e formulados pelo mesmo governo. No entanto, as áreas selecionadas para atuação destes programas são distintas, reduzindo as possibilidades de obterem maior eficácia tendo em vista a perspectiva de atuarem de forma complementar.
Na década de 1990, ocorreu um aprofundamento das políticas neoliberais no Brasil, cujos pilares estão pautados nos objetivos da acumulação capitalista, em conformidade com o processo de globalização. No âmbito das atividades econômicas, este movimento busca a padronização do processo produtivo e sua realização em bases capitalistas. Estes princípios, que vão orientar o Estado brasileiro, se refletem na condução das novas propostas políticas para a agricultura irrigada. A Política Nacional de Irrigação e Drenagem é submetida a um movimento de redirecionamento, a partir de 1999, com a elaboração do “Projeto Novo Modelo de Irrigação” que integra o Programa Avança Brasil, produzido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. A elaboração desse projeto, conduzido pelo Estado, reuniu diversos agentes, dentre os quais: (a) organismos estatais e intergovernamentais, nacionais e estrangeiros, (b) consultorias privadas contratadas, (c) empresários agrícolas e investidores da agricultura irrigada, e (d) consultores individuais de países com experiência em agricultura irrigada. As escolhas permitem fazer uma leitura dos interesses que foram privilegiados pela nova proposta política do Estado brasileiro.
O processo de discussão e elaboração do Projeto Novo Modelo de Irrigação ocorreu no período entre maio/1999 a abril/2000, publicando um conjunto de documentos pelo Banco do Nordeste em 2001, que definem as bases estruturais, conceptuais e regulatórias, operacionais e financeiras da nova da política nacional de irrigação (BANCO DO NORDESTE, 2001a). As novas diretrizes estabelecidas demonstram claramente a orientação da política de irrigação voltada para a viabilização do chamado “agronegócio” e sua inserção no contexto da globalização, cuja lógica de mercado deve reger os empreendimentos, estimulando o investimento privado e orientando a produção para as oportunidades oferecidas pelo mercado. A força e o imperativo deste movimento apresentam repercussões no nível legal, produzindo em março de 2000, uma minuta substitutiva para o Projeto de Lei nº 229/95, que objetiva construir novas bases legais para da agricultura irrigada.
Diversos instrumentos políticos de sistematização da política de irrigação foram formulados, integrados aos propósitos de modernização da agricultura e ao discurso da minimização das desigualdades regionais, contudo, no plano prático, a irrigação continuou concentrada nas regiões Sul e Sudeste do país, apesar dos diversos programas direcionados ao Nordeste e dos investimentos nas regiões de fronteira agrícola (tabela 1).
GRANDES REGIÕES |
ÁREA IRRIGADA (em 1.000 hectares) |
CRESCIMENTO 1970 -1996 |
|||||
1970 |
1975 |
1980 |
1985 |
1996 |
ha. |
% |
|
Norte |
5,4 |
5,1 |
10,2 |
16,3 |
83,4 |
78 |
1.444,44 |
Nordeste |
116,0 |
163,4 |
261,4 |
335,8 |
427,4 |
311,4 |
268,45 |
Centro-Oeste |
14,6 |
35,6 |
56,2 |
110,8 |
180,1 |
165,5 |
1.133,56 |
Sudeste |
185,2 |
347,7 |
428,8 |
557,8 |
821,5 |
636,3 |
343,57 |
Sul |
474,7 |
535,1 |
724,6 |
833,0 |
1.147,8 |
673,1 |
141,79 |
Brasil |
795,9 |
1.086,9 |
1.481,2 |
1.853,7 |
2.660,2 |
1.864,3 |
234,24 |
A ampliação do espaço irrigado, embora tenha ocorrido significativo aumento da participação estatal (tabela 2), deve-se principalmente à presença da iniciativa privada que participa com 71,99 por cento. Este quadro é resultado do direcionamento da política nacional de irrigação, especialmente, da política de créditos implantada pelo Programa Nacional para o Aproveitamento Racional das Várzeas Irrigáveis (PROVÁRZEAS), Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação (PROFIR) e pelo Programa de Irrigação do Nordeste (PRONI). A destinação dos créditos voltados para investimentos em irrigação, no período entre 1985 e 1988, demonstra claramente as priorizações da política estatal, em favor da grande produção, conforme dados apresentados na tabela 3. Os números apontam a concentração dos créditos aos médios e grandes produtores que, juntos, absorvem 69,31 por cento dos recursos investidos no Nordeste e 77,31 por cento da totalidade de recursos realizados no Brasil.
Tabela 2 - Evolução da participação da irrigação pública na Região Nordeste – 1970-1998
ANO |
ÁREA TOTAL IRIGADA (em 1 000 ha) |
CRESCIMENTO DA ÁREA IRRIGADA (%) |
ÁREA DE IRRIGAÇÃO PÚBLICA (em 1000 ha) |
PARTICIPAÇÃO DA IRRIGAÇÃO PÚBLICA (%) |
1970 |
116,0 |
- |
8,1 |
2,60 |
1975 |
163,4 |
40,86 |
12,1 |
7,40 |
1980 |
261,4 |
59,98 |
38,6 |
15,00 |
1985 |
335,8 |
28,46 |
71,7 |
19,50 |
1995 |
404,2 |
20,37 |
115,8 |
28,65 |
1996 |
427,4 |
5,74 |
123,4 |
28,86 |
1997 |
456,0 |
6,69 |
135,1 |
28,62 |
1998 |
495,4 |
8,64 |
139,2 |
28,01 |
UF |
PEQUENO PRODUTOR |
MÉDIO PRODUTOR |
GRANDE PRODUTOR |
TOTAL |
|||
NCz$ 1.000 |
% |
NCz$ 1.000 |
% |
NCz$ 1.000 |
% |
NCz$ 1.000 |
|
MA |
31,0 |
26,72 |
21,8 |
19,80 |
63,2 |
54,49 |
116,0 |
PI |
69,9 |
49,06 |
36,3 |
25,47 |
36,3 |
25,47 |
142,5 |
CE |
204,4 |
40,75 |
156,3 |
31,16 |
140,9 |
28,09 |
501,6 |
RN |
47,0 |
24,83 |
36,5 |
19,28 |
105,8 |
55,89 |
189,3 |
PB |
85,6 |
59,69 |
44,7 |
31,17 |
13,2 |
9,20 |
143,4 |
PE |
95,6 |
40,63 |
60,2 |
25,58 |
79,5 |
33,79 |
235,3 |
AL |
8,6 |
9,66 |
7,6 |
8,54 |
72,8 |
81,80 |
89,0 |
SE |
10,6 |
48,62 |
8,8 |
40,37 |
2,4 |
11,01 |
21,8 |
BA |
222,7 |
20,47 |
232,6 |
21,37 |
632,9 |
58,16 |
1.088,2 |
NE |
775,4 |
30,68 |
604,8 |
23,93 |
1.147,0 |
45,38 |
2.527,1 |
BR |
1.362,6 |
22,69 |
1.490,3 |
24,82 |
3.151,6 |
52,49 |
6.004,5 |
A análise do movimento das políticas de irrigação no Brasil aponta para o avanço do planejamento e institucionalização de normas e diretrizes, que buscam conduzir o processo e indicam uma maior intervenção do Estado. No entanto, a maior disciplinarização do Estado no tocante às ações voltadas para irrigação apontam para o privilégio à iniciativa privada, à modernização do campo e à vinculação da agricultura irrigada aos mecanismos de mercado e à lógica do capital. O quadro 1 busca traçar uma síntese deste movimento, identificando os instrumentos de políticas governamentais e as diretrizes gerais que estes expressam.
Quadro 1 - Evolução dos instrumentos e diretrizes da Política Nacional de Irrigação – 1877-2001
PERÍODO |
INSTRUMENTOS DE POLÍTICA |
DIRETRIZES |
Final do Império até meados da década de 1960 |
- Medidas de combate à seca. - Destinação de 1% da receita tributária para aproveitamento do Vale do S. Francisco (1946). - Criação do IOCS (1909), CVSF (1948) e SUDENE (1959). |
- A irrigação era tratada secundariamente nos órgãos estatais. - Inexistência de uma política bem definida, voltada para a dotação da infra-estrutura. - Ações desarticuladas interinstitucionalmente e centralizadas na esfera federal. |
Meados da década de 1960 até o final da ditadura militar (1984) |
- Criação do GEIDA (1968) e Elaboração do Programa Plurianual de Irrigação PPI (1971). - Aprovação da Lei nº 6662 de 25.06.79. - Aprovação dos decretos 89.496 de 29.03.84 e 90.309 de 16.10.84. |
- As ações do Estado voltadas para irrigação assumem caráter sistemático e são inseridas nos planos nacionais de desenvolvimento - Normatização das diretrizes, critérios e competências das ações do poder público e demais agentes. |
Período de redemocratização (1985) até o final da década de 1990 |
- Instituição do PRONI/PROINE (1986). - Aprovação da Lei nº 8.666 de 21.06.93. |
- Através do PRONI o governo fixa metas, define prioridades e delimita espaços de investimentos. - Ausência de articulação entre os diversos instrumentos de política governamental. - Fixação de metas de expansão da irrigação; maior direcionamento à iniciativa privada. |
A partir do final da década de 1990 |
- Decreto 2.178 de 17.03.97. - Elaboração do Projeto Novo Modelo de Irrigação em 1999. |
- Definição de novas bases estruturais, conceptuais e regulatórias, operacionais e financeiras. - Diretrizes voltadas para a viabilização do “agronegócio”, buscando estimular o investimento privado e orientar a produção para as oportunidades do mercado. |
O Nordeste no contexto da política de irrigação no Brasil
A região Nordeste do Brasil foi considerada como questão regional[4], como problema nacional, retrato maior das desigualdades regionais brasileiras, tamanha a visibilidade que assumiu no discurso da elite política regional[5], nos meios midiáticos, e mesmo nos grandes relatos de interpretação do Brasil. A técnica de irrigação assume expressividade crescente no Nordeste (pelo menos no plano discursivo), tendo em vista as possibilidades de desenvolvimento da agricultura numa região em que a ausência periódica de chuvas foi concebida como um problema crônico e um entrave ao desenvolvimento regional.
Os horizontes abertos pelo advento da agricultura irrigada permitem, inclusive, segundo Castro (2000), a reinvenção do histórico discurso da seca. Predominante na Primeira República, o discurso da seca, constituía-se, sinteticamente, na construção de uma imagem de atraso e pobreza sobre o Nordeste, para sustentar a reivindicação de recursos públicos federais que, em última instância, garantiam a continuidade do atraso e a manutenção da estrutura social.
Para Bursztyn (1987), a seca tornou-se um grande negócio para o poder local, uma vez que viabilizou a obtenção de benefícios através da realização de obras públicas, do recebimento de fundos públicos, permitindo o controle e a subordinação das massas rurais a este agente de intermediação, garantindo, em contrapartida, a legitimação do poder central no nível local.
Castro (2000) aponta para uma inversão do discurso que ocorre no âmbito do Estado e dos agentes interessados na expansão da agricultura, consolidada com base em tecnologia moderna e com grande inversão de capitais. O uso da irrigação no semi-árido nordestino permite um controle diferenciado sobre as condições naturais, promovendo um equilíbrio entre luminosidade, temperatura e oferta de água, ingredientes que viabilizam a produção durante todo o ano, garantindo várias colheitas. Neste sentido, a região Nordeste assume uma nova imagem, representando uma opção de investimentos para capitais, em face das novas vantagens comparativas que apresenta com as disponibilidades de recursos naturais, ou seja, a natureza outrora difundida como entrave ao desenvolvimento, agora é um ingrediente chave na superação do atraso. Esta perspectiva pode ser ilustrada pela citação retirada da publicação da Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco, intitulada: “Codevasf, um Vale de Realizações, um Vale de Esperança” (Codevasf, s/d, s/p):
O Brasil é o segundo produtor de frutas do mundo, e a tendência é que, muito em breve venha assumir a liderança. O maior colaborador na busca por este título é o Vale do São Francisco, onde a natureza não poupou esforços para oferecer um clima propício e terras com grande potencial para o desenvolvimento da agricultura irrigada, notadamente, para a fruticultura. Fatores como esses, somados à participação da Codevasf na implantação de infra-estrutura para irrigação e na viabilização de crédito para os pequenos produtores, vêm transformando o vale em um pomar multiplicador de negócios e oportunidades [grifo nosso].
Outra repercussão, observada por Castro (2000), informa sobre as possibilidades de transformação da estrutura social, política e econômica, tradicionalmente resistentes na região. Esta perspectiva é aberta tanto pela desconstrução da base do discurso da seca como pela ampliação dos espaços de organização e atuação dos sindicatos rurais, promovida pelas novas relações de trabalho capitalistas, calcadas no assalariamento. A organização da produção pautada nestas relações de trabalho romperia com as relações de compadrio, predominantes na organização social regional. A concretização deste movimento indicado pela autora enfrenta uma série de obstáculos, sobretudo pela ação dos agentes dominantes, tornando este processo lento, característico das transformações históricas que implicam mudanças estruturais decorrentes da luta de classes.
O estudo empreendido por Caldas (2001) no eixo Juazeiro/Petrolina – onde foram construídos os primeiros perímetros públicos de irrigação e apresenta a maior concentração destes projetos – informa sobre os avanços obtidos pela organização dos trabalhadores na agricultura irrigada. O autor destaca a importância da criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Juazeiro em 1977, informando sobre seu papel na mobilização dos trabalhadores rurais, incentivando a criação de sindicatos, associações de trabalhadores e fortalecimento dos partidos políticos de esquerda. Em decorrência dos movimentos de organização dos trabalhadores, coroados pela criação do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrícolas, Agropecuárias e Agro-industriais (SINTAGRO) em 1995, alguns resultados foram alcançados, a exemplo da assinatura de convenção coletiva entre empresários e sindicatos, buscando estabelecer piso salarial, jornada de trabalho de 44 horas, aumentos nos adicionais de hora-extra, adicional noturno, insalubridade, férias remuneradas, décimo terceiro salário, obrigatoriedade de seguro de acidente de trabalho, dentre outros benefícios.
A análise de Bloch (1996) explicita as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores para viabilizar uma organização combativa, bem como os obstáculos para superação dos problemas da exploração e das más condições de trabalho. Embora tenham ocorrido avanços nos processos de mobilização, organização, reivindicação e na conquista de benefícios, os problemas ainda não foram completamente equacionados, demandando uma ação persistente e vigilante das entidades em defesa dos direitos dos trabalhadores do campo.
A região Nordeste, historicamente objeto de discussões nacionais, haja vista a amplitude que ganhou a problemática das secas, esteve submetida a políticas especiais do Estado brasileiro desde os primórdios do período republicano. Em 1909, o Governo Federal cria a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) com a finalidade de estabelecer as bases técnico-científicas de estudos para a solução do problema. Em 1919, esse órgão assume a denominação de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), cuja ação avançou no sentido de estabelecer zonas prioritárias e a construção de pequenas obras, a exemplo de pequenos açudes. O órgão passa por uma reestruturação em 1945, passando a chamar-se Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
A ação do Estado, materializada no trabalho do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), cuja atuação foi dirigida prioritariamente para a construção de açudes, não buscou integrar essas obras com a viabilização da irrigação, deixando de ampliar e potencializar o uso da água armazenada. A construção de projetos de irrigação nas terras privilegiadas pelas obras hidráulicas, representava uma ameaça aos interesses e ao poder da oligarquia algodoeiro-pecuária, que exercia controle sócio-econômico e político no sertão nordestino. Neste sentido, Bursztyn (1987) considera o DNOCS como um instrumento de legitimação recíproca entre os poderes local e central, contribuindo para a manutenção da estrutura de poder na região, no âmbito do esquema coronelista-clientelista. Assim, os movimentos iniciais apresentaram-se dispersos, pontuais e pouco representativos em termos de expandir a irrigação, ou mesmo, para impor modificações estruturais à região.
Dentre as diversas medidas governamentais, a irrigação emerge como alternativa para o desenvolvimento regional, uma vez que, na concepção estatal, propicia o enfrentamento das adversidades físicas e dos desníveis sócio-econômicos que constituem fator de entrave ao desenvolvimento da região. Considerando esta perspectiva, a irrigação vai assumindo crescente importância nas políticas públicas adotadas para a região. Bursztyn (1987) considera o início da década de 1970, como marco na mudança de postura dos órgãos governamentais em relação ao tratamento da problemática das secas. A partir deste período, torna-se mais significativa a utilização de instrumentos de intervenção estatal na região por intermédio da elaboração dos planos e programas nacionais de desenvolvimento. Contudo, mesmo tendo adquirido força a concepção de que a irrigação poderia contribuir para a modernização e desenvolvimento do Nordeste, sua realização enfrentou forte reação das oligarquias dominantes no semi-árido.
As atividades de execução, operação e manutenção da infra-estrutura de irrigação pública na região Nordeste encontram-se sob jurisdição do DNOCS e da CODEVASF. O Programa Plurianual de Irrigação, em 1971, já contemplava, em consonância com o Decreto-lei 200, de 1967, a delimitação espacial de atuação destas agências federais. Naquele documento, ficou definido que o DNOCS responderia pela irrigação no Polígono das Secas (figura 1), exceto a parte que fica situada na bacia do Rio São Francisco, enquanto que a Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) – antecessora da CODEVASF – recobriria toda a bacia do Rio São Francisco. Esta divisão do espaço de atuação dos dois órgãos significa a delimitação de territórios onde cada instituição promoverá intervenções, segundo diretrizes específicas.
O funcionamento do DNOCS sofreu alterações com a Lei nº 10.204, de 22 de fevereiro de 2001, subordinando o órgão ao Ministério da Integração Nacional, passando a contribuir para a implementação dos objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos, conforme Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997. A área de atuação do DNOCS fora ampliada, conforme informa o Artigo 2º da referida lei: "A área de atuação do DNOCS corresponde à região abrangida pelos Estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, à zona do Estado de Minas Gerais situada no denominado "Polígono das Secas" e as áreas das bacias hidrográficas dos Rios Parnaíba e Jequitinhonha, nos Estados do Maranhão e de Minas Gerais, respectivamente".
O DNOCS, embora centenário, a atuação dirigida para irrigação só se efetiva no final da década de 1960, com a implantação dos primeiros perímetros irrigados. Considerando a totalidade dos perímetros irrigados implantados pelo órgão, constata-se que sua atuação priorizou o assentamento de colonos, que ocupam 63% das terras irrigadas. Contudo, a prioridade destinada ao pequeno agricultor prevalece até o início da década de 1980, quando ocorre uma modificação nessa diretriz em favor da implantação de empresas, situação recorrente nos perímetros recentemente implantados, que passam a destinar parcelas cada vez maiores para a iniciativa empresarial, demonstrando sinais de inversão da conjuntura em relação ao contexto analisado por Bursztyn, em 1984. Outra categoria de irrigantes que ganhou espaço na política de seleção de beneficiários, empreendida pelo DNOCS, são os profissionais da área agronômica – técnicos agrícolas ou engenheiros agrônomos – cuja participação já alcança 5 por cento do total das terras irrigadas. O DNOCS tem 38 projetos de irrigação sobre sua jurisdição, que equivale a uma área total irrigada de 62.723,41 ha, que representa apenas 15 por cento da área irrigada de toda Região Nordeste (Coelho Neto, 2004).
Para Bursztyn (1987), o período que se inaugura na década de 1970, com a retomada do planejamento – e se acentua com os programas das décadas seguintes – reflete a mudança na postura do Estado, que se caracterizava pelo paternalismo materializado na socialização dos custos das obras públicas em favor dos coronéis, passando a cumprir a função de patrocinador da modernização capitalista. As diretrizes que passaram a orientar a ação das duas agências executoras dos projetos de irrigação na região Nordeste expressam a mudança na ação do Estado, fomentando a produção para o mercado e buscando formar uma mentalidade empresarial entre os pequenos produtores.
A irrigação passa, então, a ser o eixo central de uma política que visa, por um lado, à criação de projetos de assentamento e produção agrícola em tamanho familiar (sob a responsabilidade do DNOCS) e, por outro, à exploração do Vale do São Francisco, onde ‘a tendência é a instalação de grandes empresas’ (cf. SUDENE, s/n, p.3), sob coordenação da CODEVASF. No primeiro caso, a função do Estado é a de transformar as unidades familiares camponesas em produtores capitalistas; no segundo, o papel do Estado é o de patrocinador (‘sponsor’) do grande capital. Este último caso não caracteriza uma modificação substancial no comportamento do Estado vis-à-vis do capital, ou seja, um papel paternalista em que aquele se apresenta, ao mesmo tempo, como o ‘capitalista coletivo’ e o ‘sócio filantropo’ (Bursztyn, 1987: 80-81).
A diferença na atuação entre as duas agências vai além dos seus espaços regionais de atuação, envolvendo seu direcionamento a distintos agentes. O DNOCS atua com produtores familiares e a CODEVASF vem privilegiando crescentemente a ação de empresas. O elemento que unifica a intervenção destes órgãos é o movimento de incentivo à lógica de acumulação capitalista. A atuação da CODEVASF, delimitada ao Vale do São Francisco será objeto da análise que se empreende a seguir.
As especificidades da irrigação pública no Vale do São Francisco
As iniciativas governamentais em relação ao levantamento de informações e às tentativas de aproveitamento das potencialidades do Vale do São Francisco podem ser identificadas desde a segunda metade do século XIX. Caldas (2001) informa que o governo imperial realizou levantamentos e elaborou projetos centrados nas possibilidades de navegabilidade do Rio São Francisco. Esta empreitada concretiza-se através da contratação de pesquisadores estrangeiros a partir de 1852. Essa perspectiva é reforçada por Andrade (1987), informando sobre as possibilidades de integração das regiões de antigo povoamento, ou seja, o Nordeste brasileiro e as Minas Gerais, oferecidas pela localização do Rio São Francisco, que alimentaram os planos do governo imperial, no sentido de viabilizar as comunicações, os transportes e o escoamento da produção. Importante destacar que o Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, no Estado de Minas Gerais e desemboca no Oceano Atlântico, perfazendo 2.700 km ao longo do território brasileiro.
A ação mais efetiva do Estado no Vale do São Francisco ocorre somente a partir de meados da década de 1940, conforme observa o texto constitucional de 1946, cujo Artigo 29, determina que o Governo Federal elabore e execute um plano de aproveitamento das potencialidades econômicas para o Rio São Francisco e seus afluentes, dentro do prazo de 20 anos, partindo da data de promulgação da Constituição e tendo como suporte financeiro 1 por cento da renda tributária da União. Desde então, o Vale do São Francisco tem merecido destaque especial nas políticas de Estado, tornando-se uma região de planejamento e intervenção governamental (figura 2). A atuação do governo se faz presente pela ação de um órgão criado especialmente para viabilizar o desenvolvimento da extensa área banhada pela bacia do Rio São Francisco. Segundo Germani (1993), as propostas de aproveitamento do Rio São Francisco priorizaram a navegação, a irrigação e a produção de energia elétrica, refletindo a concepção predominante da corrente política no controle do Estado, cujas pretensões seguiam orientações capitalistas, no sentido de buscar viabilizar os interesses econômicos das grandes empresas localizadas nos centros mais dinâmicos do país. Neste sentido, ocorreu a construção de hidroelétricas e o processo de eletrificação, obras voltadas centralmente para o abastecimento da demanda industrial.
Respondendo às determinações constitucionais, foi criada em 15 de dezembro de 1948, por força da Lei nº 541, a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), cujo modelo foi inspirado na experiência de desenvolvimento adotado pelo governo norte-americano no Tenessee Valley Authority (Germani, 1993). A atuação da CVSF esteve centrada em dois eixos: o primeiro voltado para a realização de estudos, visando à identificação das possibilidades concretas de uso do Rio São Francisco, destacando os planos diretores para irrigação das diversas subdivisões do Vale; o segundo eixo foi direcionado para a construção de obras que abarcavam os setores de energia elétrica, transportes, comunicações, urbanismo, abastecimento de água, assistência social, mecanização agrícola e agropecuária.
A irrigação ganha maior efetividade no Vale do São Francisco somente em meados da década de 1960, com a criação do extinto convênio entre a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) e o Bureau of Reclamation (BUREC)[6] para realização de estudos com vistas ao aproveitamento dos recursos hídricos na Bacia do Rio São Francisco, além de viabilizar a concepção e a implantação de diversos projetos (Codevasf, 1984).
A extinção da CVSF ocorre com o fim do prazo estabelecido pela Constituição de 1946, através do Decreto-Lei nº 292, de 28 de fevereiro de 1967, documento que cria a Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) enquanto agência autônoma vinculada ao Ministério do Interior. A atuação do órgão, neste novo período, não difere, em linhas gerais, dos eixos desenvolvidos pelo seu antecessor. Contudo, sob a jurisdição da SUVALE, dá-se início, com maior efetividade à implantação dos projetos públicos de irrigação, com experiências de parcelamento do espaço dos perímetros, entre lotes familiares e a introdução de empresas privadas, marcando decisivamente a mudança na orientação da política de ocupação dos projetos de irrigação no Vale do São Francisco, cujo marco é a instalação do Perímetro Bebedouro, em 1968. Germani (1993) afirma que este movimento corresponde à recomendação da Development & Resources Corporation, empresa dirigida pelo fundador do Tenessee Valley Authority (TVA), contratada para realizar estudos sobre o Vale do São Francisco.
Durante o governo militar, o órgão passa pela segunda mudança, objeto da Lei nº 6.088, de 16 de julho de 1974, que extingue a SUVALE e cria a Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF)[7] que passa a assumir um papel bastante diferenciado das antigas versões do órgão. Tomando como pressuposto a reconhecida potencialidade do Vale do São Francisco, favorável à agricultura irrigada, e admitindo-a, inclusive, como vocação natural desse recorte espacial, aliada à crença de ser uma alternativa para o desenvolvimento regional, a irrigação torna-se o principal mecanismo de ação da agência, voltando-se para a dotação de infra-estrutura em áreas selecionadas, de forma a torná-las aptas para o desenvolvimento de atividades produtivas assentadas na lógica de mercado.
Bloch (1996) analisa o percurso da CODEVASF, identificando suas prioridades ao longo das fases de sua história. A CVSF previa a difusão da irrigação entre os pequenos agricultores ribeirinhos. A SUVALE, por sua vez, privilegiava a colonização em perímetros públicos selecionados, enquanto que a CODEVASF orienta sua ação em favor da iniciativa privada. Assim, a cada mudança de denominação, o órgão assume novas diretrizes que, por sua vez, correspondem aos interesses e aos objetivos gerais do plano político do Estado e dos agentes que o detêm.
A abrangência da CODEVASF foi delimitada a principio com base na área que integra a bacia do Rio São Francisco, assumindo a condição de região-plano[8] de intervenção do Governo Federal (figura 2). O Vale do São Francisco engloba uma área de 639.219,4 km2, abarcando parcialmente os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e o Distrito Federal (Codevasf, 1999), como se verifica na tabela 4.
A representatividade atual da ação da CODEVASF pode ser constatada quando dimensionada sua área de atuação. As áreas das bacias do São Francisco e do Parnaíba juntas equivalem a 63,87 por cento de toda região Nordeste. Avaliando apenas o Vale do São Francisco, os números da Tabela 4 informam sua participação espacial em 38,69 por cento da área total dos estados que compõem a bacia do Rio São Francisco. Os dados da Tabela 5 reforçam o papel do órgão, uma vez que 53,79 por cento da região do Polígono das Secas e 50,20 por cento da região semi-árida encontram-se sob sua jurisdição. Considerando que tais regiões são reconhecidamente expressões da problemática das secas e apresentam graves indicadores sócio-econômicos, a CODEVASF assume um papel relevante no âmbito da política de desenvolvimento regional no país.
Tabela 4 - Participação territorial das unidades da federação no Vale do São Francisco
UNIDADE DA FEDERAÇÃO |
ÁREA TOTAL DA U. F. (km2) |
ÁREA E PARTICIPAÇÃO DAS U.F. NO VALE |
|
km2 |
% |
||
Bahia |
567.295,3 |
307.940,8 |
54,27 |
Minas Gerais |
588.383,6 |
325.471,3 |
40,02 |
Pernambuco |
98.937,8 |
69.518,4 |
70,27 |
Alagoas |
27.933,1 |
14.338,2 |
51,25 |
Sergipe |
22.050,3 |
7.473,3 |
30,09 |
Goiás |
341.289,5 |
3.144,8 |
0,91 |
Distrito Federal |
5.822,1 |
1.335,6 |
22,41 |
TOTAL |
1.651.711,7 |
639.219,4 |
38,69 |
Tabela 5 - Participação do Vale do São Francisco no polígono das secas e na região do semi-árida, segundo as unidades da federação
UNIDADE DA FEDERAÇÃO |
ÁREA DA U.F. NO VALE |
PARTICIPAÇÃO DO VALE NO POLÍGONO DAS SECAS |
PARTICIPAÇÃO DO VALE NO SEMI-ÁRIDO |
||
km2 |
km2 |
% |
km2 |
% |
|
Bahia |
307.940,8 |
186.015,3 |
60,41 |
210.888,8 |
68,50 |
Minas Gerais |
325.471,3 |
74.259,7 |
31,55 |
26.760,7 |
11,38 |
Pernambuco |
69.518,4 |
65.972,3 |
94,96 |
65.972,3 |
94,96 |
Alagoas |
14.338,2 |
12.037,2 |
83,92 |
11.359,1 |
79,02 |
Sergipe |
7.473,3 |
5.499,6 |
73,33 |
5.764,4 |
77,33 |
Goiás |
3.144,8 |
- |
- |
- |
- |
Distrito Federal |
1.335,6 |
- |
- |
- |
- |
TOTAL |
639.219,4 |
343.784,1 |
53,79 |
320.745,3 |
50,20 |
A CODEVASF considera a divisão espacial do Vale do São Francisco em 4 regiões fisiográficas: Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco. Esta clássica divisão, conforme assevera Valverde (1944), leva em consideração o curso do rio e sua expressão fisiográfica, cuja ênfase recai nos elementos da natureza.
A gestão adotada pela CODEVASF conforma uma específica organização espacial, delimitada em superintendências regionais, conforme figura 2. A empresa está sediada em Brasília (DF) e possui sete Superintendências Regionais sediadas por importantes cidades localizadas estrategicamente ao longo dos vales, sendo seis no Vale do São Francisco e uma no Vale do Parnaíba. Diante do enfoque deste trabalho, serão detalhadas apenas aquelas que pertencem ao Vale do São Francisco.
· A primeira Superintendência Regional está sediada em Montes Claros (MG), abrangendo uma área de 239.948,7 km2 nos estados de Minas Gerais, Goiás e no Distrito Federal, recobrindo o Alto e parte do Médio São Francisco.
· A segunda Superintendência Regional, cuja sede fica na cidade de Bom Jesus da Lapa (BA), engloba uma área de 222.930,4 km2, completamente localizada em território baiano, na região fisiográfica do Médio São Francisco.
· A terceira Superintendência Regional tem sua sede na cidade de Petrolina (PE), ficando os 69.518,4 km2 situados no Estado de Pernambuco, no Submédio São Francisco.
· A área da quarta Superintendência Regional é de 7.473,3 km2 no Baixo Médio São Francisco, no estado de Sergipe. Trata-se da única sede de superintendência situada fora dos limites da bacia do São Francisco, ficando na capital do estado, Aracaju.
· A quinta Superintendência Regional envolve a área da bacia no Baixo São Francisco que cobre o Estado de Alagoas numa dimensão territorial de 14.338,2 km2, tendo como sede a cidade de Penedo (AL).
· A sexta Superintendência Regional, sediada em Juazeiro (BA) localiza-se no Submédio São Francisco, no território baiano, abarcando uma área de 85.010,4 km2.
A análise da figura 2 permite identificar a distribuição espacial e a representatividade alcançada pelos projetos públicos de irrigação ao longo do Vale do São Francisco. A ação do Estado e a efetivação da Política Nacional de Irrigação e Drenagem no recorte espacial objeto desse trabalho, executada pela CODEVASF, têm contribuído para a proliferação dos espaços irrigados e promovido transformações na configuração do espaço regional. Castro (2000: 45) destaca a importância deste fenômeno, citando Bacelar: " [...] há três décadas, tem surgido na região ‘diversos subespaços dotados de infra-estruturas econômicas modernas e ativas, focos de dinamismo, em grande parte responsáveis pelo desempenho positivo apresentado pelas [suas] atividades econômicas’"
A emergência desses novos espaços de produção responde aos imperativos da modernização exigida pela acumulação capitalista, promovendo uma complexidade no processo produtivo em face das necessidades de inversão de capitais, uso de tecnologia avançada viabilizada pela pesquisa científica, instalação de infra-estruturas no território para favorecer os fluxos, mão-de-obra barata e inserção ao mercado. Este movimento confere particularidade aos novos espaços irrigados, distanciando-os da realidade regional.
As informações contidas na figura 2 e da tabela 6 demonstram a representatividade e o avanço dos espaços irrigados no Vale do São Francisco. A CODEVASF possuía sob sua jurisdição, em 1999, 39 projetos de irrigação, dentre os quais, 25 já se encontravam em fase de operação, e outros 14 estavam nas diferentes fases de planejamento. Em termos de área, possuía 122 mil hectares em operação e 496 mil hectares em planejamento. Considerando que a área irrigada do Nordeste, em 1996, era de 427 mil hectares, os projetos públicos em operação no Vale do São Francisco representavam 29 por cento do espaço irrigado de toda a região, e com a previsão de implantar uma área equivalente ao que já possuía em toda região Nordeste. Contudo, cabe destacar que a análise do histórico de implantação dos projetos informa que as áreas delimitadas para a fase de estudo são bastante superiores ao que efetivamente foi colocado em operação.
SRs |
PROJETOS EM FASE DE OPERAÇÃO |
PROJETOS EM FASE DE PLANEJAMENTO (1) |
TOTALIDADE DE PROJETOS |
|||||||
Nº |
ÁREA |
Nº |
ÁREA |
Nº |
ÁREA (ha.) |
|||||
ha. |
% |
ha. |
% |
|||||||
1ª |
4 |
32.283 |
27 |
2 |
43.593 |
9 |
6 |
75.876 |
||
2ª |
10 |
34.139 |
28 |
4 |
311.936 |
63 |
14 |
346.075 |
||
3ª |
2 |
24.479 |
20 |
3 |
47.170 |
9 |
5 |
71.649 |
||
4ª |
3 |
6.279 |
5 |
1 |
3.668 |
1 |
4 |
9.947 |
||
5ª |
2 |
4.278 |
3 |
1 |
3.136 |
1 |
3 |
7.364 |
||
6ª |
4 |
19.772 |
16 |
3 |
87.940 |
18 |
7 |
107.712 |
||
Total |
25 |
121.983 |
100 |
14 |
496.640 |
100 |
39 |
618.623 |
||
A atuação da CODEVASF elege espaços prioritários da bacia do São Francisco para implantação de projetos de irrigação. A infra-estrutura de irrigação vai além das obras específicas de engenharia dentro do perímetro irrigado, envolvendo a construção de um aparato técnico para viabilizar os fluxos de mercadorias, especialmente num modelo produtivo voltado para exportação, promovendo uma concentração espacial das técnicas, da produção e dos serviços no entorno destas áreas selecionadas. Becker e Egler (1998) inserem a atuação da CODEVASF e do DNOCS no âmbito das políticas estatais que foram orientadas pela teoria perrouxiana dos Pólos de Crescimento.
A partir da crise de 1973, a estratégia governamental se tornou mais seletiva, atuando não mais numa escala macroregional e sim sub-regional, através da implantação de pólos de crescimento. Poucos são os paises no mundo que levaram tão longe as idéias de Perroux como o Brasil. Sob a perspectiva da acumulação capitalista, a ideologia dos pólos de desenvolvimento mostrou-se o modelo mais adequado para a organização do território proposta pelo Estado autoritário, uma vez que envolvia a criação de locais privilegiados, capazes de interligar os circuitos nacionais e internacionais de fluxos financeiros e de mercadorias (Becker e Egler, 1998: 146-149).
Em conformidade com essa perspectiva, a CODEVASF identifica a conformação de nove pólos de desenvolvimento no Vale do São Francisco, conforme demonstra a figura 2. No entanto, admite que os pólos Brasília e Belo Horizonte não são resultados de sua atuação. Em linhas gerais, estes espaços polarizados apresentam as seguintes características:
1. Pólo Juazeiro/Petrolina – apresenta a maior concentração de projetos de irrigação do Vale do São Francisco, polarizado pelas cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), localizado no Submédio São Francisco. Reúne 6 projetos em operação, atingindo 36,38 por cento da área irrigada de todo o Vale (44.378 ha) e mais 7 em estudos e implantação. Apresenta uma estrutura produtiva que envolve agroindústrias, instituição de pesquisa e uma grande concentração populacional.
2. Pólo Norte de Minas – Localizado no Alto São Francisco, representa a segunda maior concentração espacial. Engloba 4 projetos em operação, numa área de 32.283 ha, equivalendo a 26,47% da área irrigada do Vale e 2 projetos em fases de planejamento.
3. Pólo Formoso/Correntina – Localizado na Região Fisiográfica do Médio São Francisco. Embora reúna apenas 3 projetos em operação, que representam 10,79 por cento da área irrigada do Vale (13.164 ha), sua importância fica demonstrada em face dos 252.306 ha que constam na proposta de planejamento (51% da área total do Vale, que se encontra nas diversas fases de planejamento), ou seja, trata-se do pólo que recebe atualmente a maior intenção das infra-estruturas de irrigação.
4. Pólo Baixo São Francisco – Situado na jurisdição da 4ª e 5ª superintendências regionais, nos estados de Sergipe e Alagoas. Engloba 5 projetos instalados numa área de 10.557 ha (8,65% da área total irrigada) e 1 projeto em fase de construção da infra-estrutura.
5. Pólo Barreiras – Situado no Médio São Francisco, na bacia do Rio Grande, possui 8,56 por cento da área irrigada do Vale (10.436 ha), polarizado pela cidade de Barreiras (BA). Não apresenta planejamento para implantação de novos projetos públicos, o que pode ser explicado pelo predomínio da moderna agricultura de grãos cuja base produtiva está estruturada em grandes propriedades privadas.
6. Pólo Guanambi – Polarizado pela cidade de Guanambi (BA), no Médio São Francisco, possui 8.373 ha em operação nos projetos Ceraíma e Estreito (6,86% da área irrigada do Vale).
7. Pólo Irecê – Localizado no Médio São Francisco, possui apenas 2.166 ha em operação (1,78% da área do Vale) e uma proposta para implantação de mais 59.630 ha com o Projeto Baixio de Irecê.
Importante destacar que os chamados pólos de desenvolvimento apresentam características de atraso, a exemplo da precariedade das infra-estruturas sociais, de produção e de circulação, das más condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais e moradores das cidades, do acesso restrito e seletivo à terra, além de diversos impactos ambientais provocados, conforme demonstram os estudos de Bloch (1996), Souza (2001), Coelho Neto (2004). Mesmo os indicadores econômicos de produtividade e geração de renda, em grande parte dos pólos, são pouco expressivos (Coelho Neto, 2006). O dinamismo experimentado pelos pólos de Barreiras e Guanambi não pode ser atribuído diretamente à irrigação pública, mas aos efeitos da produção de soja e algodão, respectivamente, que não são cultivados nos perímetros públicos situados nesses pólos.
A crítica elaborada por Santos (2003) sobre a Teoria dos Pólos de Crescimento, pode contribuir para explicar os resultados e problemas que envolveram a maciça aplicação destas formulações no Brasil. Neste particular, o autor alerta sobre o uso indiscriminado de concepções elaboradas para os países desenvolvidos ocidentais nos países subdesenvolvidos, desconsiderando as diferenças estruturais destas duas realidades. Para Santos (2003), as formulações privilegiam o espaço das empresas, preocupando-se com o espaço de poucos e não com o espaço de todos. Os resultados obtidos em alguns lugares que foram objeto de aplicação destes princípios e que experimentam crescimento dos indicadores econômicos, não têm apresentado manifestações de distribuição social com a ampliação dos benefícios para a totalidade da população. A idéia da difusão espacial do crescimento defendido com a teoria dos pólos de crescimento é negada, uma vez que a aplicação da concepção de pólos de crescimento promove a concentração espacial do aparato produtivo e social dos benefícios.
Considerações Finais
A trajetória espaço-tempo percorrida nesse texto permitiu apreender o movimento da política de irrigação no Brasil, identificando suas direções e prioridades, rastreando seus conteúdos e sua lógica e, acompanhando seus desdobramentos mais gerais. Os dados arrolados e as discussões suscitadas oferecem a possibilidade de reafirmação dos pressupostos apresentados na introdução, acerca do processo de produção dos espaços irrigados na região Nordeste do Brasil, e em particular no Vale do São Francisco.
A concepção de que o espaço é produto e condição da reprodução da sociedade se manifesta nos projetos de irrigação através da escolha das áreas que reúnem condições específicas para viabilizar o uso da técnica sobre a natureza, como é o caso dos vales férteis da bacia do Rio São Francisco. A intervenção da sociedade sobre a natureza, através da técnica de irrigação, produziu espaços particulares para realização da produção, presididos por um conjunto de diretrizes que indicam as escolhas políticas do Estado brasileiro. Nesse sentido, os espaços irrigados são resultantes de um conjunto de normas que reúnem objetivos específicos e respondem por uma espacialidade.
A intervenção estatal pode ser verificada através da multiplicidade de planos, programas e projetos elaborados para a região Nordeste e para o Vale do São Francisco, cuja análise informou a lógica que conduz os instrumentos e medidas políticas responsáveis pela produção do espaço. Nesses termos, a evolução dos elementos estruturantes do modelo de irrigação legitimadas nos dispositivos legais, demonstram o movimento empreendido pelas diretrizes políticas nacionais e aquelas adotadas para o Nordeste brasileiro e Vale do São Francisco: (a) processo de desapropriação das terras desarticulado com os critérios de seleção dos beneficiários dos lotes irrigados, (b) parcelamento do perímetro que aponta a redução da área destinada a colonos (pequenos irrigantes familiares) e amplia a participação do capital, (c) critérios de seleção que estabelece o perfil do irrigante, ignorando a realidade rural das regiões onde se localizam os projetos.
Os resultados da adoção destes parâmetros apontam para o esvaziamento dos fundamentos do interesse social dos perímetros públicos de irrigação, manifestos no não aproveitamento das populações desalojadas, no favorecimento de agentes urbanos ao invés das populações rurais agrícolas, no privilegiamento da iniciativa empresarial e no estabelecimento de mecanismos de mercado para o funcionamento dos perímetros irrigados. Essas diretrizes são expressões das escolhas políticas do Estado e ratificam as concepções defendidas por Bursztyn (1987), Inaiá de Carvalho (1987) e Gonçalves Neto (1996), sobre o papel do Estado como agente de promoção e legitimação da ordem capitalista, buscando criar condições técnicas, sociais, econômicas e ideológicas que viabilizem o processo de acumulação do capital.
Os pressupostos que justificaram a política nacional de irrigação em seus primórdios - preeminência da função social e utilidade pública do uso da água e solos irrigáveis - são negados, veementemente, a partir do movimento desencadeado no final da década de 1990 com a elaboração do Novo Modelo de Irrigação estabelecido no bojo do Programa Avança Brasil do Governo Federal, que propõe tratar a agricultura irrigada como um “agronegócio”. Esta proposta acompanha o movimento de modernização da agricultura brasileira, representando o processo de avanço do capitalismo no campo, e a ampliação das fronteiras da agricultura nordestina e, em especial sanfranciscana, inserindo-a no contexto mais amplo da economia mundial a partir do aprofundamento das relações locais/regionais com as escalas nacional e internacional.
A lógica que orienta o Novo Modelo de Irrigação é a da racionalidade econômica do mercado, pautada em parâmetros de produtividade, competitividade e lucratividade. O funcionamento da “moderna” agricultura irrigada, estabelecida nestes moldes exige uma contínua intensificação do uso de capitais, tecnologia e informação, desenvolvimento de pesquisas, construção de infra-estruturas para viabilização dos fluxos e o estreitamento de relações com o mercado financeiro, de insumos e de produtos.
Nessa direção, é importante salientar inversão do discurso da seca, como aponta Castro (2000), pois, os elementos do discurso atual apontam para a criação de condições naturais e técnicas que viabilizam a agricultura irrigada em bases mais competitivas. Trata-se de enfatizar a gestação de uma nova espacialidade, que agora reúne condições singulares para a produção agrícola. O Vale do São Francisco torna-se uma opção para investimentos e negócios lucrativos, tendo sua imagem vinculada à noção de modernidade e prosperidade, mascarando as contradições sociais que continuam a ser produzidas e agravadas.
As questões levantadas nesse estudo são indicativas da necessidade de análise e discussão das diretrizes que norteiam as políticas de irrigação no Vale do São Francisco. Repensar o atual modelo de irrigação, colocado em prática pelo Estado, é ponto imperioso para o redirecionamento dos resultados experimentados no Vale do São Francisco.
Notas
[1] Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
[2] Os trabalhos de OLIVEIRA, F. Elegia para uma re(li)gião. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 e BURZTYN, Marcel. O Poder dos donos. Petrópolis: Vozes, 1987, tratam a questão de forma esclarecedora.
[3] Dados obtidos em: CARVALHO, J. Otamar. A Economia Política o Nordeste. Secas, Irrigação e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 340.
[4] Sobre o assunto vide discussão em ANDRADE, M. C. de. O Nordeste e a questão regional. São Paulo: Ática, 1988.
[5] Essa discussão é bem retratada na obra de CASTRO, Iná Elias de. O Mito da Necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
[6] No referido período era um órgão pertencente ao Departamento do Interior dos Estados Unidos da América.
[7] Em 6 de janeiro de 2000, através da Lei nº 9.954, foi ampliado o raio de ação da agência, incorporando 318.000 km2 do Vale do Rio Parnaíba, localizado nos estados do Piauí e Maranhão, passando a ser denominada de Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba.
[8] Sobre o assunto consultar: CORRÊA, R. L. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1986.
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[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]
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Ficha bibliográfica:
COELHO NETO, Agripino Souza. Trajetórias e direcionamentos da política de irrigação no Brasil: as especificidades da região Nordeste e do Vale do São Francisco. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 876, 15 de junio de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-876.htm>. [ISSN 1138-9796].