IX Coloquio Internacional de Geocrítica LOS PROBLEMAS
DEL MUNDO ACTUAL. Porto Alegre, 28
de mayo - 1 de junio de 2007. |
MULTICULTURALIADE E GÊNERO: UM ESTUDO SOBRE A CULTURA POPULAR NA BAIXADA CUIABANA[1]
Sônia Regina
Romancini
Departamento de
Geografia
Universidade Federal
de Mato Grosso
romanci@terra.com.br
Multiculturalidade e gênero: um estudo sobre a cultura popular na Baixada Cuiabana (Resumo)
A presente comunicação tem como objetivo discutir o papel das mulheres nas relações entre espaço e cultura através de sua participação na produção da cerâmica artesanal, na dança do siriri e na produção de redes artesanais na região denominada “Baixada Cuiabana”, com influência luso-indígena que caracteriza o período da mineração em Mato Grosso e da influência paraguaia e boliviana nesta região. Entre os procedimentos adotados destaca-se o levantamento bibliográfico, a realização de entrevistas às artesãs e dançarinas de siriri e o registro fotográfico. Verificou-se que a cerâmica artesanal, a confecção das redes cuiabanas e a dança do siriri evidenciam a importância do papel desempenhado pelas mulheres que contribuem para a construção da identidade da Baixada Cuiabana. Entre os principais problemas constatados destaca-se a falta de uma cooperativa de trabalho para agregar as mulheres de Limpo Grande para a produção das redes artesanais, com reflexos diretos para a qualidade de vida dessas artesãs.
Palavras-chave: Baixada Cuiabana; multiculturalidade; gênero; identidade.
Multicultural and genre: a study over the popular culture of Baixada Cuiabana (Abstract)
This paper focus on the posing of the role of
women in relations between space and culture through their participation in
artesian clay pottery, siriri dance and artesian production of the fishing nets
in the region known as Baixada Cuiabana, with the
influence of portuguese-indigenous which characterises the mining period in Mato Grosso and the paraguayan and
bolivian influence in this region. Among the procedures adopted, the
geographic-bibliographic are to
be observed, the interviewing of siriri dancers and clay pottery artesians and
the photographic registers. We found that the artesian clay pottery work, the
artesian fishing nets making and the siriri dance depict the importance of the
role of women who helped build the Baixada Cuiabana identidy. Among the main issues we found the lack of a
cooperative working union, which to reach the Limpo Grande women to fishing nets artesian production,
with direct effects upon the quality of life of theses artesians.
Key words: Baixada Cuiabana, multicultural, genre, identidy.
O presente estudo discute o papel das mulheres nas relações entre espaço e cultura através de sua participação na produção da cerâmica artesanal e na dança do siriri na comunidade de São Gonçalo Beira Rio, fundada no século XVIII, às margens do rio Cuiabá, na cidade homônima, e também na produção de redes artesanais em Limpo Grande, comunidade tradicional pertencente a Várzea Grande.
As cidades de Cuiabá e Várzea Grande constituem o Aglomerado Urbano Cuiabá – Várzea Grande, com uma população estimada em 800 mil habitantes (IBGE, 2007) e está localizada no Grande Domínio do Cerrado, cuja fauna e flora inspira o imaginário popular com suas canções, fornece materiais para a confecção de instrumentos musicais, está presente nas telas e pinturas de peças artesanais, nos desenhos das redes, entre outros.
Cuiabá teve sua origem pela mineração, em 1719. No dia primeiro de janeiro de 1727 foi elevada à categoria de vila, passando a denominar-se Villa Real do Senhor Bom Jesus do Cuyabá. Em 17 de setembro de 1818 foi elevada à categoria de cidade. Em meados do século XX, a cidade contava com cerca de 50 mil habitantes.
A fundação de Várzea Grande está ligada às ações empreendidas pelo governo provincial em função da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Em 1867, em plena guerra, o presidente da província de Mato Grosso, Couto de Magalhães, ordenou a prisão de todos os paraguaios encontrados em Cuiabá e cercanias e criou o acampamento militar na outra margem do rio, para onde os enviou, área até então ocupada pelos índios Guanás e alguns lavradores. Várzea Grande foi criada como 3.º distrito de Cuiabá e foi transformada em município em 1948.
Na década de 1970, os processos desencadeados pelo Governo Federal, no sentido de promover a “integração da Amazônia”, elegem Mato Grosso como fronteira do capital e Cuiabá, como ponto estratégico e centro de decisões nesse contexto. O intenso fluxo migratório dirigido a Cuiabá, acarretou um aceleramento no crescimento demográfico. A população urbana que era de 88.254 habitantes em 1970, atingiu 198.086 em 1980, 395.662 em 1991 e 542.861 nos dias atuais. As conseqüências desse processo também são verificadas em Várzea Grande que, em 1970 detinha uma população de18.305 habitantes e hoje apresenta 254.736 habitantes (IBGE, 2007).
Embora se observa que a cidade de Cuiabá tenha passado por grandes transformações, com o aumento populacional e a expansão da malha urbana, verifica-se que a partir da década de 1990 acontece uma retomada da valorização da cultura regional.
Em pesquisa realizada por Romancini (2005b), constata-se que as pessoas são unânimes em considerar que Cuiabá encontra-se mais bonita e agradável, principalmente, quando se toma como referência o final da década de 1980 e o início da década de 1990. A cidade, no final dos anos 1990, passa por uma fase de valorização das suas riquezas, da sua cultura, da paisagem urbana e dos seus lugares de memória.
Na década de 1990, através das intervenções do poder público, algumas delas em parceria com a iniciativa privada, a cidade foi, gradativamente, voltando para a valorização dos seus símbolos, da sua cultura e memória, numa tentativa de recuperar o sentido da rua, dos espaços públicos, criando novas áreas de convivência, imprimindo uma nova dinâmica na sua vida cotidiana.
A presente pesquisa foi desenvolvida com uma abordagem qualitativa por acreditar que as ciências humanas possuem sua própria especificidade, estudo do comportamento humano e social, e por isso são ciências específicas, com metodologias próprias. Segundo Chizzotti (2000), a adoção de modelos estritamente experimental, conduz a generalizações errôneas em ciências humanas.
Segundo Richardson (1999), a abordagem qualitativa é caracterizada por uma compreensão detalhada e profunda dos significados e características apresentadas pelos entrevistados. Sendo assim, ocorre uma valorização da maneira como cada indivíduo observa um determinado fato. Esta relação entre o indivíduo e o fato não deve ser apenas mensurada, mas também interpretada.
Entre os procedimentos adotados destaca-se o levantamento bibliográfico, a realização de entrevistas às artesãs e dançarinas de siriri e o registro fotográfico. A pesquisa bibliográfica, segundo Gil (1996), constitui no levantamento de bibliografia relacionada ao tema abordado e orientou na obtenção e análise de dados, incluindo livros, revistas, dissertações, periódicos, dentre outros.
O presente estudo foi pautado no conceito geográfico de cultura apresentado por Claval (1999, p. 63), segundo o qual:
A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é uma herança transmitida de uma geração a outra. [...] Não é, portanto, um conjunto fechado e imutável de técnicas e de comportamentos. Os contatos entre povos de diferentes culturas são algumas vezes conflitantes, mas constituem uma fonte de enriquecimento mútuo.
Segundo Barbosa (2007), a preocupação com o pluralismo cultural, a multiculturalidade, o interculturalismo nos leva necessariamente a considerar e respeitar as diferenças, evitando uma pasteurização homogeneizante. Assim, ter um posicionamento multiculturalista é ser capaz de questionar os valores e os preconceitos.
A autora destaca que os grupos culturais que se imbricam podem ser identificados pela raça, gênero, orientação sexual, idade, locação geográfica, renda, idade, classe social, ocupação , educação, religião. Sob esse prisma, afirma que a arte pode conferir identidade às pessoas através de símbolos.
Conforme Castells (2002), entende-se por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significados. Segundo o autor (CASTELLS, op. cit., p. 23):
A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço.
O trabalho foi pautado nas reflexões sobre culturas populares apresentadas por Cuche (2002), segundo o qual as culturas populares revelam-se nem inteiramente dependentes, nem inteiramente autônomas em relação à cultura das elites, nem pura imitação, nem pura criação. Assim, elas confirmam que toda cultura particular é uma reunião de elementos originais e de elementos importados, de invenções próprias e de empréstimos. Como qualquer cultura elas não são homogêneas sem ser, por esta razão, incoerentes.
Nesse sentido, Cuche (op. cit., p. 149) define as culturas populares como “culturas de grupos sociais subalternos”, bem como destaca que “elas são construídas então em uma situação de dominação”. O autor destaca que as culturas populares revelam o esforço de resistência das classes populares à dominação cultural.
No contexto da cultura popular, no Aglomerado Urbano Cuiabá-Várzea Grande, destaca-se a participação da mulher que é ceramista, que é artesã das redes cuiabanas, que dança e organiza as festas da comunidade, contribuindo para a perpetuação das manifestações culturais como a dança do siriri.
Essa abordagem, que coloca a mulher como sujeito social e os temas relacionados ao gênero como objeto de estudo da Geografia, fundamenta-se nas reflexões de McDowell, citada por Silva (2005), que destaca que o estudo da mulher foi uma decisão política e uma estratégia de tornar seu trabalho visível na pesquisa geográfica.
Tem São Gonçalo, cururu e siriri
O siriri é uma dança de pares cuja origem é atribuída às danças indígenas. O ritmo alegre e movimentado é obtido através de uma ou mais violas de cocho, do ganzá e do mocho. As duas coreografias básicas do siriri são a roda e a fileira. Os pares dançam batendo palmas e cantando. Ao ritmo forte e rápido da música, os dançarinos parecem não se cansar, dançando por toda a noite.
Segundo Baptistella (1997), o nome siriri é atribuído a uma formiga voadora. Provavelmente, devido ao ritmo e aos movimentos rápidos, ágeis e leves desta dança atribuíram-lhe este nome. As letras da dança do siriri são alegres e expressam a vida cotidiana, os amores, a natureza e a devoção aos santos, entre outros temas.
O cururu é uma dança dos homens que, em roda, numa sala ou ar livre, cantam ao som de violas de cocho e ganzás, versos em homenagem ao(à) santo(a) festejado(a). Consiste em, no mínimo, dois cantadores, um tocando a viola de cocho e o outro o ganzá ou os dois tocando viola. Mesmo quando o grupo de cururueiros é grande, cantam sempre em duplas. O cururu é um folguedo popular, dos mais antigos de Cuiabá, podendo se apresentar como roda de cantoria e dança e é realizado tanto em festas religiosas como profanas.
Como a viola de cocho representa um patrimônio cultural para os habitantes do Pantanal Mato-grossense e das cidades do seu entorno, em decisão proferida na 45ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada em 1º de dezembro de 2004, o Modo de Fazer Viola-de-Cocho foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes, com a devida menção ao complexo musical, coreográfico e poético do siriri e do cururu, em 10 de dezembro de 2004 (IPHAN, 2005).
Viver com arte às margens do rio Cuiabá
Entre os arraiais pioneiros de Cuiabá destaca-se a comunidade São Gonçalo Beira Rio, no século XVIII, localizada à margem esquerda do rio Cuiabá, a 11 quilômetros do centro principal da cidade, próxima à barra do rio Coxipó, no Distrito do Coxipó da Ponte. Sua população é de aproximadamente 300 moradores, distribuídos em 70 famílias, que têm entre si algum grau de parentesco.
A história urbana de Mato Grosso tem seu início em 1719, com a bandeira de Pascoal Moreira Cabral que, à procura de índios destinados ao cativeiro, acabou encontrando ouro no rio Coxipó, onde fundou o Arraial da Forquilha, no atual distrito do Coxipó do Ouro. Para assegurar o direito de posse da área, foi lavrada uma ata de fundação, no dia 8 de abril do mesmo ano, na localidade denominada São Gonçalo Velho, atualmente São Gonçalo Beira Rio. Nesse período, São Gonçalo detinha o porto que permitia a comunicação entre as minas e a Capitania. Nessa comunidade, próximo à barra do rio Coxipó, foi erigida uma capela dedicada a São Gonçalo.
A presença dos índios Coxiponé ficou refletida nos traços dos moradores de São Gonçalo, nas rimas e músicas, na cerâmica, na pesca, no uso de plantas medicinais, na canoa feita de um tronco de árvore, na benzedeira, nas danças, dentre outras práticas culturais que evidenciam a importância do papel desempenhado pelas mulheres.
Em 1914, era montada nas proximidades do povoado, na margem direita do rio Cuiabá, a Usina de São Gonçalo, com produção de açúcar e álcool. Foi ela a responsável pelo crescimento do pequeno núcleo onde os lavradores plantavam canaviais, cujo produto vendiam aos usineiros para o consumo dos engenhos.
A decadência da produção açucareira de Mato Grosso na década de 1930, aliada à argila abundante acumulada nas margens do rio Cuiabá e nas várzeas, propiciou que o artesanato de cerâmica se tornasse o meio de vida de grande parte da comunidade. A cerâmica é feita principalmente pelas mulheres. Em algumas casas, os homens preparam o barro, ajudam a dar o acabamento, enfornam e queimam as peças. As crianças fazem peças pequenas, que aprendem no convívio familiar.
As principais peças produzidas eram as moringas, potes, talhas, vasos e panelas. A partir da década de 1960, além da cerâmica utilitária, os artesãos passam a produzir peças ornamentais como figuras de aves e animais, damas, santos, presépios, banda de músicos, moringas-bonecas, talhas e vasos ornamentados. Segundo a historiadora Therezinha Arruda, que realizou estudos na comunidade na década de 1970, “se as formas se modificam ou se surgem outras em função de novos hábitos do consumidor, a tradição artesanal permanece intacta” (Arruda, apud Romancini, 1994, p. 30).
Essas mudanças ocorreram face ao avanço da sociedade de consumo que influenciou os hábitos da população cuiabana. No final da década de 1960 a comunidade foi incorporada à área urbana de Cuiabá, quando os técnicos da prefeitura promoveram a alteração de sua denominação de São Gonçalo Velho para bairro São Gonçalo Beira Rio. Neste período, diversas chácaras no entorno de São Gonçalo foram loteadas dando origem a novos bairros.
Ao final da década de 1990, verifica-se uma preocupação, por parte do poder público e da sociedade civil, de revalorizar o patrimônio cultural construído em tempos passados, conforme análise realizada por Abreu (1998, p. 7), “o passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade. Materializado na paisagem, preservado em ‘instituições de memória’, ou ainda vivo na cultura e no cotidiano dos lugares...”
Abreu (op. cit.) ressalta que, na busca da “memória urbana” no Brasil, o passado está sendo revalorizado. Como exemplo dessa preocupação, pode-se citar o tombamento municipal, em dezembro de 1992, que declarou o bairro de São Gonçalo como área prioritária para o estímulo à produção e à comercialização da cerâmica artesanal, como uma das mais antigas e tradicionais manifestações culturais do município de Cuiabá, e a festa de São Gonçalo como manifestação popular de interesse para o patrimônio cultural do município de Cuiabá.
Como parte das comemorações da festa de São Gonçalo em janeiro de 2004 foi inaugurado, pelo governo do Estado, o Centro Sócio-Cultural Antonio Lopes, que constitui um espaço adequado para a produção, exposição e comercialização do artesanato produzido pela comunidade, contendo ainda um restaurante regional turístico, que tem por objetivo a inclusão social ao promover a geração de emprego e renda para pessoas da comunidade, notadamente para as mulheres.
Nesse contexto, destacam-se como elementos predominantes na paisagem de São Gonçalo os aparatos necessários à produção de cerâmica e da viola de cocho e os grupos organizados que estabelecem as diversas relações na comunidade. Ou seja, em São Gonçalo a ceramista é casada com o pescador, que por sua vez é o artesão e/ou tocador de viola de cocho ou tirador, isto é, pessoa que toca e canta as músicas para a realização das danças de siriri, cururu e São Gonçalo. Os(as) filhos(as) e netos(as) integram os grupos de jovens responsáveis pela perpetuação das danças na comunidade.
Esse sentimento de pertencimento constitui a essência da comunidade e, no Aglomerado Urbano Cuiabá – Várzea Grande, representa o grupo mais significativo em termos de preservação das tradições mato-grossenses. Entre as inúmeras pessoas envolvidas nesse trabalho, destaca-se Domingas Leonor, fundadora do grupo folclórico Flor Ribeirinha, conforme depoimento em entrevista realizada em 2004:
Só o Flor Ribeirinha tem dez anos de fundação, o Nova Esperança foi eu que fundei, que viveu dezesseis anos, um dos primeiro grupo de Cuiabá foi o Nova Esperança, só que foi acabano devido que foi morrendo as pessoas que era muita pessoa de idade né e aí foi isso, faleceram e aí foi acabando tocador, daí que a gente deu essa retomada de novo pra montar o Flor Ribeirinha. Foram os filhos netos de pessoas que faleceram, porque São Gonçalo é uma família né, então a gente tomô essa iniciativa, eles pediram pra mim, por isso que sou feliz e hoje me sinto uma pessoa, a mulher Domingas realizada, na área da cultura eu tenho trinta e oito anos de cultura do Estado, trabalhando e brigando prá chorá, sorri, tudo pra defendê a cultura, porque eu vivo ela. [...] O grupo Flor Ribeirinha coordena e comanda a comunidade São Gonçalo Beira Rio, num é o presidente de bairro não. Aqui é o grupo Flor Ribeirinha que comanda, eles são a força dessa comunidade eles são o poder da comunidade.
Apesar de considerar que há pouco apoio do poder público para o fortalecimento das atividades da comunidade, Domingas reconhece que a cultura propicia a união da comunidade:
[...] Nós tem raízes pra oferecê, nós temos bagage pra mostrar [...] Aqui que começô Cuiabá, então a pessoa tem que respeitá é raízes ribeirinha [...] porque ela é um fruto desta terra, ela é o fruto da cultura que brotô uma nova flor, um botão e saiu esta flor que é o Flor Ribeirinha, então por isso que é os grupos outros que tem que respeitá nós, porque nós temos ceramista, pescador, nós temos o índio, nós tem tudo aqui dentro porque aqui que começô Cuiabá, aqui é o alicerce, quer queira quer num queira nós tem tudo de cultura bonito para oferecer pro povo, turista, temos sangue aqui dos mais pequinininho, aqui tem o Ítalo que tem sete anos, até na viola de cocho o guri sabe batê cururu, siriri, rasqueado, a dança de São Gonçalo. Joga o tambori na mão dele, o guri sabe tocá, então tá no sangue. É por isso que eu gostaria de frisá, tem que respeitá o Flor Ribeirinha, nós não somos melhores não, é porque nós trabalhamos, trabalhamos com amor, com vida, eu dô minha vida por meu grupo, porque eu trabalho só, num tenho ajuda de ninguém, nem patrocínio de ninguém, falam: - a Domingas recebeu patrocínio [...] Patrocínio sim de Deus, lá de cima e senhor São Gonçalo que dá essa força pra gente.
Domingas ressalta que a população de Cuiabá valoriza as manifestações culturais da comunidade e que “o povo que vem de fora fica encantado e falam pra gente que a nossa cultura é muita rica e eu tenho certeza que é muito rica mesmo. Os turista valoriza muito.”
Segundo os depoimentos das ceramistas e da agente cultural, verifica-se que a cerâmica artesanal e a organização das danças, como o siriri, constituem os traços principais da identidade da comunidade, um patrimônio que revela sua história, sua cultura e memória. Esses aspectos correspondem à afirmativa de Bossé (2004, p. 161) de que a identificação com o lugar se traduz “tanto para o indivíduo como para o grupo, por um sentimento de pertencimento comum, de partilha e de coesão sociais”.
As redes fascinam pelo colorido, formas, flora e fauna mato-grossenses
Limpo Grande é um povoado que possui cerca de 100 famílias e pertence ao distrito de Capão Grande, município de Várzea Grande-MT. Atualmente, concentra o maior número de tecelãs “redeiras”, do Estado de Mato Grosso. Em seus grandes teares verticais elas produzem as redes lavradas, bordadas, também conhecidas como “redes cuiabanas” (CAMPO, 2006).
Esta atividade é importante para a identidade cultural do município de Várzea Grande e do Estado de Mato Grosso, pois trata-se de um dos ícones da cultura local, sendo também uma importante atividade econômica para as pessoas que residem no povoado. O universo da pesquisa realizada por Campo (op. cit.) envolveu 16 mulheres com idades entre 18 e 60 anos. As pessoas que ali residem, quase todas nasceram na própria comunidade e, em sua maioria, possuem laços de consangüinidade, o que é tido pelos moradores como um ponto favorável.
Segundo Lima (apud CAMPO, op. cit.), o artesanato no Estado de Mato Grosso é resultado da união de várias culturas ameríndias e européias, com destaque para a ibérica. Grande parte desse artesanato é formada pelos instrumentos de trabalho das populações rurais, como pelos utensílios domésticos de uso diário e pelos instrumentos musicais. Porém, das manifestações artesanais, a que se tornou mais representativa tanto pela tradição como pela beleza, é a tecelagem – que tem sua maior expressão nas “redes cuiabanas”. A autora afirma que a origem dessa arte é um elemento da cultura material de várias tribos da América do Sul.
De acordo com Lima (apud CAMPO, op. cit), os teares verticais e a tecedura de baixo para cima, característica dos índios brasileiros, é encontrada também entre os índios do Chaco e da Bolívia. A origem do bordado, lavrado, nas redes tecidas em Várzea Grande, que identifica as “redes cuiabanas”, não está determinada. Uma das hipóteses é a de que teria ocorrido uma troca de informações ou experiências entre índias e portuguesas, ainda no século XVII. Como Mato Grosso recebeu muitas informações culturais dos bandeirantes, essa técnica poderia ter vindo através deles.
Sobre a produção artesanal de redes, Botelho (2003) afirma que são diversas fases para executar o trabalho e que o processo tem termos específicos como: bastidor, varanda, batedeira, liço, entre outros. A habilidade com que as rendeiras, no princípio, fiavam e atingiam o próprio fio do qual teciam as redes lavradas (bordadas) é a mesma das que realizam o ofício hoje. Esta técnica segundo alguns historiadores locais foi repassada através das mulheres indígenas. As guanás eram hábeis no manuseio do tear e, além de fiar e tingir o fio, também plantavam o algodão.
De acordo com Botelho (op. cit.) as artesãs aprendem as técnicos e os segredos do ofício ainda meninas, e ao longo do tempo vão repassando seus conhecimentos às novas gerações:
Elas estão ligadas há séculos através de imensos fios de linha, das lembranças das tataravós aos dias de hoje. E, apesar da tecnologia, da indústria que coloca no mercado redes a preços convidativos, muito pouco se mudou na arte de tear. O ritual que acompanha as mulheres redeiras de Limpo Grande [...] continua o mesmo, acordar cedo, e sem demora iniciar o serviço. A linha é o alimento em casa, é a roupa nova, é o sonho de ver o filho estudar.
Campo (2006) afirma que quando se está em Limpo Grande, o colorido das redes fascina e escolher uma rede é uma tarefa difícil, porque todas são muito bonitas e feitas pelas habilidosas mãos das famosas artesãs do local. Estas artesãs passam, todos os dias, horas e horas sentadas no chão forrado por cobertor ou lençol, em frente a grandes teares. O trabalho de tecer uma rede é demorado, podendo durar 30 dias ou até mais.
Quando o visitante se aproxima de uma casa, descobre que há alguém tecendo, pelo ouvir de um som característico: o da batedeira – peça de madeira que lembra uma régua de mais ou menos dez centímetros de largura. É usada pelas tecelãs para a confecção das peças.
Em Limpo Grande, a arte de tecer redes é aprendida pela convivência com as tecelãs, conforme se constata no depoimento de Dona Evanildes Maria Pereira, 57 anos, que tece, no tear, com sua filha Enedina, enquanto sua outra filha, Maria Antônia, amarra e lavra a varanda (guarnição lateral da rede). Em depoimento a Maria Lúcia Coradini da Campo, em 2005, a artesã conta que aprendeu a tecer por observar outras pessoas. Apesar da idade já avançada, diariamente, ainda, com a batedeira em punho, passa muitas horas frente ao grande tear. Os detalhes do processo que a levou a se tornar uma tecelã são relatados por Campo (2006, p. 151-2):
Eu ia po colégio, né? Papai era pobre, né? [...] Ele vivia assim de roça... então, eu chegava do colégio, eu e meu irmão, eu sô mais velha, né? e o meu irmão é mais criança que eu. Ai, né? chegava do colégio, cabava de almoçá e acompanhava papai pa roça, né? Ia ajudá ele plantá. [...] Morava aqui no Limpo Grande. Aí não tinha como interessá, né?. Ajuda mãe. Eu chegava do colégio, cabava de almoçá. Eu sendo a mais velha tinha que i, o guri também. E a mamãe ficava em casa, cuidando as criança e, nas hora vaga, ela tecia. Mas eu nunca cheguei de pegá na batedera e sentá pra mim aprende fazê rede, não. Aí, sempre criançada ia na casa do vizinho, né? hora vaga, ficava espiando outro trabalha, né? e a minha mãe urdia rede, precisava do buriti, da abridera e mais das taquarinha. Aí a mamãe nem pegava no novelo como nós urdi. O novelo ficava assim, numa vasia. Ela só pegava a linha, né? e trancava no buriti, na abridera e nas taquarinha. Ai, eu falei, mas esse negócio é bem difícil, né? Eu não entrava assim na minha cabeça, né? tanto negócio que a minha mãe usava pra urdi, né? [...] Tinha doze ano, saí da escola. Saí do colégio pra mim trabalhá, pra tê roupa pra mim, porque não tinha mais pra i pro colégio, né? Aí larguei da escola e fui urdi rede com outra, uma vizinha. Aí, depois, larguei de acompanhá papai. Eu saí da escola tinha doze pra treze ano. Aí perguntemo pra uma dona. Nós num tinha o corte, né? Perguntemo pra uma tia da... até agora ela é minha comadre. Bamo perguntá pra Nelina se ela confia de dá um corte de fio pra nós, né? Aí nós fomo e perguntemo pra ela, era tia da outra: e a senhora confia de dá a linha pra nós experimenta de tecê? Nunca tinha urdido, nunca tinha tecido! Mamãe fazia, mas eu to falando que não pegava nele. Já queria já ganha, né? Aí, né? ela falô, ah! eu dô. E ela deu o corte do negócio pra nóis, e nós peguemo e urdimo. Urdi do outro tipo que nem a mamãe não urdia desse. O da mamãe eu achei difícil, né? Ai, de vê o outro, urdi. Peguemo, urdimo a rede, tecemo a rede, gostaro da rede, aí já foi só metendo pau na rede, larguei da roça, eu sozinha! Daí que eu falo: nós, ninguém precisa de ensiná, só de vê, esse daí, desde os doze ano ele faz rede grande. Essa aqui ela mexe só co varanda, ela amarra e lavra, nunca se interessô de tecê.
De acordo com a pesquisa realizada por Campo (2006), fica evidenciada a preocupação com a venda das redes, em geral, pois as redeiras são pessoas de pequeno poder aquisitivo. Quando compram o corte de fio, gastam o dinheiro, e, se depois de pronta, não conseguem vender com rapidez, o dinheiro empregado na compra da linha faz falta no orçamento doméstico.
Em contrapartida, quem tem maior poder aquisitivo compra a linha e contrata redeiras. Essas pessoas, denominadas de contratantes, ficam cada vez mais conhecidas como redeiras ou fornecedoras de redes. O problema fica para as contratadas, que vendem a mão-de-obra e ficam no anonimato, anonimato tal que se vai sedimentando, sem perspectivas de mudanças (CAMPO, op. cit.).
Essa prática de tecer para outras redeiras, que já é comum na comunidade, é ilustrada através do depoimento de Jurcileide Clemente da Silva a Maria Lúcia Coradini da Campo em 2005:
Eu trabalho de ganho. Eu tinha linha. Depois pra construí essas duas peça... cabô, né? construção de casa... meu esposo não ganha muito, aí cabô. Faço só o pano por 260 real. A varanda e o punho é a dona que faz. Aqui quase todo mundo faz, né? Outro dia fiz uma verde de ararão, é mais difícil de fazê... sozinha, demora um mês e meio. Porque essa aqui, dia vinte e nove agora, vai faze um mês. Semana que vem vô aprontá. Só que vem a mãe, vai ajudá eu. Semana que vem, porque eu ajudo ela, ela me ajuda, né? Vem pra cá porque tá sozinha também. (CAMPO, 2006, p. 167)
A expressão “trabalho de ganho” significa que ela tece, não com linha própria, mas emprega sua mão de obra para outras redeiras, que são as “donas” do produto. Ela também faz peças menores para vender – como a varanda, que é vendida, inclusive, como acessório de moda.
Entre as opções para a comercialização das redes estão os centros culturais que trabalham com o sistema de consignação, cobrando, em média, 30 por cento do valor do produto, a exemplo do Sesc Casa do Artesão, Sesc Arsenal, entre outros.
Segundo Campo (2006), muitas redeiras têm dificuldades em vender o produto de seu trabalho, pois não têm relações com pessoas de fora da comunidade, que possam facilitar-lhes contatos com possíveis compradores. Essas mulheres desmotivadas com a atividade da tecelagem estão buscando no emprego assalariado uma saída, dessa forma, o número de tecelãs tem diminuído. A autora conclui que, se não houver algum tipo de intervenção ou auxílio, a tendência é a redução dessa atividade importante para a identidade cultural do município de Várzea Grande e também do Estado de Mato Grosso.
Considerações finais
A comunidade São Gonçalo Beira Rio representa um grupo participativo, coeso nas lutas por seus direitos e que mantém a sua identidade cultural, revelando seu fortalecimento e orgulho pela riqueza da produção material e simbólica que soube preservar.
Embora outros bairros da cidade atraiam a mão-de-obra dos jovens de São Gonçalo, muitos permanecem na comunidade dedicando-se ao artesanato da cerâmica e da viola de cocho, integrando os grupos de cururu e siriri e as rodas de São Gonçalo. Nesse contexto, ganha importância o papel feminino que se expressa nas dezenas de ceramistas e na força da agente cultural Domingas Leonor, que é responsável pela criação, orientação e destaque do grupo de danças Flor Ribeirinha.
O povoado de Limpo Grande destaca-se pela produção de redes artesanais, entretanto entre os principais problemas constatados destaca-se a falta de uma associação ou cooperativa de trabalho para agregar as mulheres da comunidade para a produção das redes artesanais, com reflexos diretos para a qualidade de vida dessas artesãs.
O alto custo da produção artesanal dos produtos, a falta de organização das tecelãs, e a busca de segurança no trabalho assalariado, são as principais ameaças à atividade da tecelagem. Sendo assim, é importante a união de esforços para que essa importante atividade econômica e cultural não desapareça.
Assim, concorda-se com as recomendações de Maria Lúcia Coradini da Campo de que é preciso usar de estratégias que levem em conta as especificidades históricas e culturais do local, intervenções estas que levem em conta os mecanismos internos da comunidade e o papel desempenhado pela mulher na produção das redes cuiabanas.
Bibliografia
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Notas:
[1] Esse texto foi elaborado a partir dos resultados do projeto de pesquisa “Espaço e manifestações culturais na região de Cuiabá” (ROMANCINI, 2005 a), desenvolvido com o apoio da UFMT/CNPq, no período de julho de 2003 a julho de 2005. As discussões sobre Limpo Grande foram realizadas com base na dissertação de mestrado “A paisagem simbólica de Bom Sucesso e Limpo Grande, em Várzea Grande-MT” de autoria de Maria Lúcia Coradini da Campo (CAMPO, 2006).