IX Coloquio
Internacional de Geocrítica
LOS PROBLEMAS
DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y
LAS CIENCIAS SOCIALES
Porto Alegre, 28
de mayo - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul |
MEGA-EVENTOS ESPORTIVOS, DESENVOLVIMENTO URBANO E CIDADANIA:
UMA ANÁLISE DA GESTÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
POR
OCASIÃO DOS JOGOS PAN-AMERICANOS-2007
Gilmar Mascarenhas
Departamento de Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
gilmasc@uerj.br
Mega-eventos esportivos, desenvolvimento
urbano e cidadania: uma análise da gestão da cidade do Rio de Janeiro por
ocasião dos Jogos Pan-americanos-2007 (Resumo):
A
cidade do Rio de Janeiro vem se preparando para realizar o maior evento
esportivo de sua história. Na condição de Grande Projeto de Desenvolvimento
Urbano, o Pan-2007 envolve uma ampla coalizão de interesses: as três esferas do
poder público (federal, estadual e municipal), o Comitê Olímpico Brasileiro
(COB) e diversas empresas privadas. A questão fundamental de nossa investigação
é a verificação da confluência entre dois campos emergentes no cenário
neoliberal contemporâneo: a nova economia do esporte e o novo paradigma de
planejamento e gestão das cidades, bem como analisar as tensões e o papel dos
movimentos sociais neste amplo re-arranjo que se opera na geografia da cidade.
Palavras-chave: mega-eventos esportivos – Jogos Pan-americanos – gestão
urbana – Rio de Janeiro – cidadania.
Sport megaevents, urban development and ctizenship: an
analysis of Rio de
Janeiro urban management in Panamerican Games 2007 (Abstract):
The Rio de Janeiro city is organizing its
biggest sport event ever: the Panamerican Games 2007. As a Great Project of
Urban Development, the pan-2007 covers a broad coalition of interests: the tree
spheres of Brazilian public power (federation, states and local governments),
the Brazilian Olympic Committee (COB) and several private enterprises. The main
point in our research is to verify the confluence between two emergent fields
in the contemporary neoliberal scenery: the new sport economy and the new
paragon of urban planning and management. We also want to examine the tensions
and the role of social movements in this huge transformating that is occurring
in the geography of Rio de Janeiro.
Key-words: sport
megaevents – Panamerican Games 2007 – Rio de Janeiro city – urban
management – citizenship.
Megaeventos deportivos, desarrollo urbano y
ciudadania: una análisis de la gestión urbana en los Juegos Pan-americanos de
2007 (Resúmen):
La ciudad de Rio de Janeiro está organizando el más grande
evento deportivo de su historia: los Juegos Pan-americanos de 2007. En la
condición de Grande Proyecto de Desarrollo Urbano, el Pan-2007 involucra una
larga coalición de interéses: las três instancias del poder publico (federal,
provincial y local), el Comite Olímpico Brasileño y diversas empresas
privadas. El punto principal de nuestra investigación es verificar la
confluencia entre dos campos emergentes en el escenario neoliberal
contemporáneo: la nueva economía de los deportes y el nuevo paradigma de
gestión y planeamiento urbano. Nosotros también deseamos examinar las tensiones
e el rol de los movimientos sociales en el largo cambio que sucede en la
geografía de la ciudad de Rio de Janeiro.
Palabras-clave: mega eventos deportivos – Juegos Panamericanos 2007 – gestión urbana - Rio de Janeiro – ciudadania.
A
cidade do Rio de Janeiro vem se preparando para realizar o maior evento
esportivo de sua história. Na condição de Grande Projeto de Desenvolvimento
Urbano, o Pan-2007 envolve uma ampla coalizão de interesses: as três esferas do
poder público (federal, estadual e municipal), o Comitê Olímpico Brasileiro
(COB) e diversas empresas privadas. O volume total de investimentos
públicos, oficialmente não divulgado, gira em torno de três bilhões de reais.
No atual contexto de escassez de recursos públicos para as políticas locais de
desenvolvimento urbano, trata-se de uma rara oportunidade de investimento na
infra-estrutura da cidade.
Para quem se propõe a analisar
este processo em sua amplitude, o primeiro questionamento suscitado se
direciona ao retorno social dos investimentos públicos. Questionamento
particularmente importante numa cidade cuja estruturação interna é
historicamente marcada pela exclusão sócio-espacial, e que ainda em nossos dias
apresenta uma gama lamentável de problemas crônicos de habitação, saneamento,
transportes, infra-estrutura médico-hospitalar, dentre outros.Um segundo questionamento
situa-se no âmbito da cidadania, particularmente dos canais de participação da
sociedade civil na gestão da cidade. Desde a candidatura para realização dos
jogos, passando pela formação do CO-Rio (comitê gestor do evento) e pela
administração dos recursos e implementação das operações, o executivo municipal
mantêm alijados de todo o processo decisório amplos segmentos da sociedade
carioca, a despeito de suas reivindicações constantes de participação. Ao que parece, estamos diante de
um processo que se insere no emergente modelo neoliberal de gestão empresarial
da cidade, através da conhecida estratégia de formação de “instâncias
decisórias fugazes e excepcionais”.
Instancias que não consideram as diretrizes
gerais do Plano Diretor, que superam entraves legais através de concessões do
legislativo municipal, que enfim atuam com ampla liberdade, pairando acima dos
condicionamentos habituais do aparato burocrático-institucional e dos marcos
jurídicos que regulam a gestão da cidade.A
questão fundamental de nossa investigação é a verificação da confluência entre
dois campos emergentes no cenário neoliberal contemporâneo: a nova economia do
esporte e o novo paradigma de planejamento e gestão das cidades, bem como
analisar as tensões e o papel dos movimentos sociais neste amplo re-arranjo que
se opera na geografia da cidade.
O texto
se divide em quatro segmentos. No primeiro, contextualizamos toda a nossa
discussão, apresentando os elementos fundamentais da gestão das cidades nos
marcos do neoliberalismo; no segundo segmento, tratamos dos mega-eventos
esportivos e seu poder de intervenção urbanística, enfatizando suas
transformações recentes, no sentido da crescente articulação com a dinâmica de
acumulação capitalista; a seguir, apresentamos a forma de gestão urbana que vem
sendo utilizada no processo de organização do Pan-2007, salientando seu caráter
autoritário e elitista, e a nova geografia da cidade que vai sendo tecida; por
fim, analisamos a reação da sociedade civil organizada que, em busca do exercício
da cidadania, reivindica o legado social do Pan, o respeito ao meio ambiente e
aos princípios democráticos de gestão da cidade.
1 -
A gestão urbana nos marcos neoliberais
Vivemos uma época na qual os capitais
adquiriram capacidade inédita de fluir velozmente pelo território. Por um lado,
os contínuos avanços do meio técnico-científico-informacional lhes possibilitam
tal fluidez. Por outro, o enfraquecimento dos estados nacionais se reflete em
maior porosidade de suas fronteiras, particularmente favorecendo a maior
circulação de interesses e agentes hegemônicos (Santos, 1996). O contexto mais
geral destas mudanças técnicas e políticas é o advento do novo regime de
“acumulação flexível”, pautado na nova dinâmica organizacional do processo
produtivo, sujeito a inovações constantes e rápidas re-orientações, o que
implica o redesenho do mercado de trabalho (precarização e flexibilidade dos
contratos) e na instabilidade dos territórios, em função do comportamento fugaz
do capital (Harvey, 1992).
Em escala mundial, podemos afirmar que
nas últimas três décadas, as transformações gerais do capitalismo repercutiram
sobremaneira na produção e gestão das cidades. Em nossos dias, produtividade e
competitividade delineiam os principais parâmetros orientadores da questão
urbana, não mais concebida e enquanto desafio histórico ao enfrentamento da
injustiça social. O atual contexto de crise fiscal resulta
tanto da recessão quanto de um sistemático processo de destruição das bases
financeiras do que teria sido o welfare state, que reconhecemos como um
período de redistribuição de renda e maciço investimento em políticas sociais. Neste ambiente de escassez de poder e
recursos governamentais, e instabilidade geral dos territórios, os lugares
passam a competir entre si pela atração de investimentos privados. Uma dinâmica
que muitos autores denominam “guerra dos lugares”. Certamente trata-se de uma
metáfora, pois não são os lugares, mas suas classes dirigentes que, em favor de
seus interesses privados, competem acirradamente, fazendo uso de recursos
públicos. O fato é que, face o enfraquecimento dos estados nacionais, as
cidades reconquistaram autonomia e importância (Maricato, 2000).
Este conjunto de transformações afetou
profundamente a forma de conceber e realizar o planejamento urbano. A matriz
modernista-funcionalista dominante até a década de 1970, vem sendo desmontada
pela ideologia neoliberal que acompanha a reestruturação produtiva das últimas
três décadas. A matriz em pauta se fundamentava na centralidade do aparelho
estatal e em padrões holísticos de uso e ocupação do solo urbano. O Estado
centralista e interventor, era tomado como detentor da racionalidade, regulando
a economia e atenuando as disfunções e variações do mercado, nos marcos do que
se convencionou designar como regime de acumulação e modo de regulação fordista
(Lipietz, 1988).
Através da clássica metodologia do
zoneamento, a cidade era pensada como um todo, como um conjunto indissociável
de componentes que formam sua estrutura interna. Ao tomar a cidade em seu
conjunto, o planejamento urbano de matriz modernista (sistêmico-funcional) não
restringia suas reflexões e intervenções a um determinado segmento do espaço
urbano. Podemos certamente criticar as modalidades de intervenção urbanística
realizadas nas periferias, destinadas aos pobres e aos “usos sujos”
(indústrias, por exemplo). Todavia, em seu enfoque holístico, ao menos o Estado
reconhecia como de sua responsabilidade intervir sobre o espaço dos excluídos,
enfrentar seus problemas. Em conjunturas democráticas, tal
concepção de planejamento favorecia a atuação dos movimentos sociais. Nas
palavras de David Harvey (1992), o grande capital convivia com o “grande
governo” e com o “grande trabalho”, expresso nas grandes corporações sindicais.
Com o advento do neoliberalismo como paradigma dominante, expressão ideológica
do modo de acumulação flexível, vivemos uma era de desmonte do Estado
assistencial, o fim do pleno emprego, a quebra da organização sindical e de um
modo geral uma crise nos movimentos sociais urbanos.Neste contexto, emerge o planejamento
estratégico (não holístico, realizado por projetos pontuais no tempo e no
espaço). A lógica do mercado, alimentada pelas agências multilaterais e
pelos consultores internacionais, passa a dominar o debate, o discurso e
a prática das administrações urbanas mundo afora, unificando, num inusitado e
curioso consenso, partidos e lideranças cuja tradição sugeriria antes a
divergência que a convergência (Bienenstein, 2001).
Na contramão do tradicional planejamento
físico-territorial, de caráter holístico, o novo modelo de planejamento passa a
enfatizar a implementação dos chamados Grandes
Projetos de Desenvolvimento Urbano - GPDU(s) - como vetores privilegiados e “estruturantes” do
desenvolvimento. Operações emblemáticas, voltadas para a monumentalidade
espetacular e projeção da imagem urbana, tais iniciativas vêm, quase sempre,
acompanhadas das parcerias público-privadas, da desregulamentação edílica, da
concessão de vantagens fiscais e da privatização dos espaços urbanos. Os
grandes projetos de desenvolvimento urbano, a seu modo, sintetizam as novas
formas de fazer e refazer as cidades do capitalismo contemporâneo.
Os GPDU(s) são reconhecidos como modelos
que devem ser seguidos, tendo em vista o que se avalia como “sucesso” quando de
sua aplicação em algumas experiências paradigmáticas da Europa e dos Estados
Unidos,
em clara
oposição ao modo de intervenção que se atualizava essencialmente através do
planejamento urbano integrado e, sobretudo, dos Planos Diretores Urbanos –
master plans – que caracterizaram o período de hegemonia do urbanismo
modernista. Desse modo, os GPDU(s) constituem
hoje uma das expressões mais visíveis e difundidas de “estratégias urbanas de
revitalização perseguidas por cidades à busca de crescimento econômico e
competitividade” (Swyngedouw et alii, 2001, p. 2).
Otília Arantes (2000) chama a atenção
para a dimensão cultural de todo este processo de reformulação do planejamento
urbano: o “negócio das imagens como nova fronteira de acumulação e dinheiro”,
um verdadeiro “culturalismo de mercado”. E Frederic Jameson (2000) salienta
esta integração crescente entre a estética e a produção de mercadorias, dentre
elas, a própria cidade. O primado da estetização configura-se vazio de significado
em termos dos vínculos histórico-sociais com a localidade que irá abrigar a
intervenção, remetendo à discussão das prioridades e abrangência dos recursos
investidos pelas administrações municipais que optaram por essa linha de
planejamento – os GPDUs. Neste sentido, muitas vezes forja-se uma “tradição”,
uma identidade local, que justifique o gasto público, e a intervenção
urbanística. No caso do Pan-2007, se busca esta tradição no âmbito do esporte,
alimentando o discurso do Rio de Janeiro como uma “cidade esportiva”. Antes, porém de adentrar por este evento
olímpico, cumpre estabelecer alguns balizamentos de nossa abordagem sobre os
mega-eventos esportivos.
2
Os mega-eventos esportivos e seu recente ingresso no circuito da acumulação de
capital
Em pouco mais de um século, o
olimpismo da era moderna surgiu e evoluiu de maneira colossal. Do idealismo de
uns poucos abnegados, tornou-se progressivamente um vigoroso movimento; no
contexto de afirmação dos estados nacionais adquiriu simbolismo para, mais
tarde, se inserir nas malhas da globalização e canalizar poderosos fluxos
financeiros. Queremos chamar atenção ao poder
do olimpismo na reestruturação urbana. Um poder crescente que leva cidades de
todo o planeta a lutarem pela obtenção do direito de sediar as olimpíadas,
tomadas como incontestável alavanca para a dinamização da economia local e
sobretudo para redefinir a imagem da cidade no competitivo cenário mundial
[1].
Desfrutando de bilhões de
espectadores, tais cidades se transformam, momentaneamente, no admirado centro
das atenções em escala planetária. Em certo sentido, os J.O. correspondem na
atualidade ao papel similar cumprido por algumas das grandes exposições
universais da segunda metade do século XIX ao início do século seguinte, ao por
em relevo as utopias do progresso sem fronteiras e da solidariedade e harmonia
entre os povos. Em síntese, este esboço de estudo dos J.O. como poderoso agente
de planejamento e mudanças no espaço urbano se insere num projeto mais amplo, o
de avaliar o papel dos grandes eventos internacionais na reestruturação das
cidades.Neste sentido, podemos
estabelecer que as competições olímpicas são mega-eventos e, como tal, têm
inquestionável poder de transformação sobre os espaços onde são realizadas.
Resultam em clara oportunidade para o novo modelo de planejamento e gestão das
cidades, calcado na lógica do mercado.
Todavia, também representam uma
oportunidade de pensar e enfrentar crônicos problemas urbanos.
O certo é que
quando tratamos de eventos olímpicos, sob o ângulo do urbanismo, do
planejamento e da gestão das cidades, estamos abordando algo que vai para muito
além do esporte.Entendemos por urbanismo olímpico
o conjunto de pressupostos e intervenções sobre as cidades que acolhem os
grandes eventos olímpicos. Trata-se, pela natureza intrínseca do fato
esportivo, de dotar as cidades de instalações específicas, que atendam às
distintas modalidades, dentro de padrões normativos internacionais. Mas
trata-se também de criar condições de alojamento para os milhares de atletas,
pessoal de apoio e membros dos comitês olímpicos, bem como para a imprensa.
Além disso, quase sempre a cidade-sede requer expansão ou melhorias em sua
infra-estrutura geral (transportes, telecomunicações, malha viária etc.).
Trata-se, enfim, de um amplo conjunto de intervenções urbanísticas; um
momento-chave na evolução e no planejamento das cidades.Certamente, os Jogos
Pan-americanos não mobilizam as atenções (e os recursos) nesta mesma escala
[2].
Todavia, considerando as condições sócio-econômicas das cidades-sede, a maioria
pertencente a países periféricos, o impacto de cada evento adquire
relativamente maior envergadura. Num cenário urbano de escassez de
infra-estrutura básica, um evento desta dimensão pode contribuir para sanar
determinados problemas. Mas pode também comprometer as igualmente escassas
finanças públicas, e inclusive acirrar o nível de desigualdade social, conforme
a distribuição espacial dos investimentos realizados. No caso da última edição dos
jogos, em Santo Domingo (2003), foram gastos 240 milhões de dólares, oito vezes
mais do que o inicialmente previsto, gerando alto endividamento junto ao FMI. A
vila olímpica, seguindo à risca o modelo em vigor nos últimos vinte anos, é
composta de pequenos edifícios, amplos apartamentos, completa infra-estrutura,
voltados para a classe média e alta local. Para melhorar a imagem do entorno,
no miserável bairro de Las Flores, a poucos metros da vila, barracos de zinco
foram substituídos por outros de madeira, mantendo problemas básicos como a
falta de abastecimento de água (Alcântara et al, 2003).
Em
suma, a história dos jogos olímpicos da era moderna abriga certamente um
capítulo especial da história mais geral do planejamento e das políticas
urbanas no século XX.
Muitas lições podemos colher desta larga experiência
internacional. Sobretudo quando estamos diante da realização de um evento desta
mesma natureza em nossa cidade.
3 -
O Pan-2007 no Rio de Janeiro: uma geografia para poucos
O Pan-2007 parece corresponder ao
novo paradigma de planejamento urbano, por envolver gastos públicos nos
interesses empresariais e por eleger a intervenção em zonas restritas da
cidade, beneficiando sobretudo áreas nobres (no caso, a Barra da Tijuca).
Recusa-se uma abordagem integradora, que busque enfrentar a problemática geral
da cidade e que vislumbre a possibilidade do desenvolvimento sócio-espacial,
como por exemplo ocorreu nos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992). Neste sentido, também
consideramos que o Pan-2007 não visa o desenvolvimento do esporte na cidade, no
seu sentido comunitário, sócio-educativo, de formação do cidadão, mas
basicamente o utiliza como poderoso discurso a justificar as lucrativas
operações urbanístico-empresariais. Neste sentido, a construção da Vila
Pan-americana, na Barra da Tijuca, pela empresa Agenco, financiada com recursos
públicos (do Fundo de Amparo ao Trabalhador) ilustra a natureza neoliberal do
projeto: pelo critério mercadológico de escolha da localidade, pelo
empreendimento privado, pelo uso de recurso público, pela tipologia
arquitetônica destinada às classes média e média-alta (apartamentos de 1 a 4
quartos, com suíte, garagem etc.)
[3].
Podemos citar diversas outras
operações, desde a remoção de comunidades de baixa renda em “áreas de risco”
(“áreas de rico”, dizem os pobres moradores removidos) à onerosa e questionável
construção de um novo estádio na cidade. São operações destinadas a favorecer a
especulação imobiliária, beneficiar empreiteiras, promover a valorização
fundiária, implantar moderna infra-estrutura (telecomunicações) em áreas
nobres, aquecer o setor hoteleiro, bem como assegurar a permanência de grupos
políticos no executivo local, além de fomentar o ufanismo urbano, “a cidade
como pátria”(Vainer, 2000).Cumpre registrar que o orçamento
original do Pan-2007 girava em torno de 260 milhões de dólares. Esta cifra foi
subindo progressivamente, não obstante a constante revisão dos planos,
reduzindo drasticamente as pretensões iniciais
[4].
Em março de
2007, estima-se um gasto oito vezes maior que o inicialmente previsto
[5].
E muito pouco se investe no esporte em si (apenas 7% do gasto municipal para o
evento), na formação de talentos, de forma que os atletas reivindicam mais
atenção e investimento
[6]. O poder público vem comprometendo
o investimento em áreas de interesse social para custear o Pan, bem como
vendendo propriedades municipais (incluindo terrenos ocupados por cemitérios)
[7],
e ainda assim afirma o prefeito que o evento corre o risco de não se realizar,
por falta de verbas
[8].Para além da falta de
transparência, o autoritarismo é uma constante no planejamento deste evento.
Moradores do entorno do estádio olímpico, no Engenho de Dentro, foram
desapropriados sem nem mesmo ter ciência de que o processo de desapropriação de
seus imóveis havia sido publicado em Diário Oficial. Moradores da Vila
Autódromo, mesmo com título de posse concedido pelo governo estadual, sofrem
ameaça de expulsão. O próprio autódromo da cidade iria sofrer uma reforma que o
condenaria como inapto para competições internacionais, não fosse a reação da
associação de pilotos e usuários da pista
[9].
Por fim, o
Estádio de Remo da Lagoa, bem tombado como patrimônio arquitetônico modernista,
vem sendo totalmente desfigurado para atender a interesses privados, de
instalação de
shopping center e outras finalidades alheias à prática
deste esporte que é um dos mais antigos e emblemáticos da cidade (Mascarenhas,
1999).Podemos afirmar que o esporte é
muito mais utilizado no Pan-2007 como competente estratégia de
city marketing do que propriamente fomentado no cotidiano. Afinal, a esmagadora maioria da
população carioca e fluminense “participa” do evento como telespectadores e
como financiadores indiretos, através de nossa imensa carga de impostos. O
esporte amador permanece abandonado, conforme relata diariamente a grande
imprensa. O projeto Pan-2007 não prevê explicita e detalhadamente o uso
comunitário das diversas instalações esportivas após os jogos
[10].
As autoridades são reticentes e imprecisas quando consultadas acerca do efetivo
legado esportivo do Pan. A preocupação central, aliás típica do planejamento
estratégico, é com as vantagens econômicas e políticas da ampla coalizão e com
a retórica de projeção mundial da imagem urbana.
Há,
contudo, vozes dissonantes, e delas trataremos no próximo segmento.
4 -
Os movimentos sociais e as tensões na gestão urbana
Vimos
até aqui o imenso poder político e econômico adquirido pelo olimpismo, capaz de
mobilizar vastos recursos e promover episodicamente grandes intervenções nas cidades.
Questionando a associação do esporte a poderosos interesses empresariais e
nacionalistas em escala planetária, existe o movimento anti-olímpico, cujos
princípios estão sintetizados no trabalho de Brian Martin (1996), professor da
Univ. de Wollongong, Austrália, apontando elementos como racismo, nacionalismo,
machismo, mercantilismo, individualismo e ausência de espírito solidário.Nem
sempre movidos por estes ideais, mas preocupados com questões locais de
sobrevivência material, podemos citar a luta popular por ocasião do Pan de
Santo Domingo, em 2003. Num quadro de injustiça social, uma liderança
nacional, o padre salesiano Rogelio Cruz, da teologia popular, mobilizou a
sociedade contra os desperdícios e acintes dos jogos na República Dominicana. O
pároco denunciou os elevados custos do evento, num país repleto de graves
problemas materiais; o luxo das instalações e da vila olímpica, num país que
jamais investira no esporte (seus atletas treinam de pés descalços)
[11].
Neste sentido, no dia da abertura
dos jogos, Rogelio Cruz liderou a partir de Cristo Rey, bairro pobre da
capital, uma passeata de 500 manifestantes, portando uma
tocha da fome (como
paródia à tocha olímpica). O protesto, que se propunha a denunciar a situação
nacional (e não impedir ou boicotar o evento) foi violentamente reprimido pela
força policial militar, a tiros de escopeta e gás lacrimogêneo
[12].
O bairro manteve-se militarmente ocupado durante todo o evento
[13].
Outras manifestações ocorreram, em todo o país, mas apenas na capital houve
repressão, para manter a imagem “positiva” dos jogos.No Rio de Janeiro, diante do
conjunto de intervenções urbanísticas, a sociedade civil organizada vem
apresentando sua resposta. Em abril de 2005 foi criado o Comitê Social do Pan,
reunindo entidades diversas, movimentos sociais e setores acadêmicos.
Basicamente, participaram da criação do Comitê o Fórum do Plano Diretor, o
Fórum do Orçamento Participativo, a FAM-Rio (Federação das Associações de
Moradores da Cidade do Rio de Janeiro), institutos de pesquisa como o
IPPUR/UFRJ, e departamentos universitários como Geografia/UERJ, através do
autor deste artigo
[14].
Dentre as polêmicas intevenções urbanísticas voltadas para a preparação
da cidade do Rio de Jeneiro para sediar os Jogos Pan-americanos de 2007, se
insere o projeto de “modernização” da Marina da Glória, no Parque do Flamengo.
Trata-se de um espaço de lazer originalmente concebido para uso público, que já
sofreu nos anos 70 ilegal apropriação privada e que hoje é alvo de nova
investida empreendedorista, que pretende alijar de vez o acesso público e
democrático, convertendo-o em espaço de consumo mercantilizado destinado
sobretudo às elites e ao turismo internacional. Tal intervenção repecutiu
amplamente na mídia, em função da vigorosa reação da sociedade civil, através
dos movimentos sociais (tais como o S.O.S Parque do Flamengo) articulados pelo
Comitê Social do Pan.
Trata-se de um
mega-empreendimento que foge completamente aos objetivos de uma Marina , cujas
obras avançam sob a justificava de urgência por conta da proximidade dos Jogos
Pan-Americanos. As intervenções estão divididas em dois grupos. O primeiro para
sediar as competições náuticas do Pan, inclui área de deck, píeres, garagem
náutica que compreende uma placa (15.800 m²) sobre o espelho d’água da enseada
da Glória, criando uma plataforma onde serão implantadas as construções,
galpões, administração, vestiário, lojas de conveniência e estacionamento para
cem veículos. A garagem ficará com a altura variando entre 11 a 19 metros acima do nível do mar. O segundo é relativo ao complexo turístico. Além do Terminal
Turístico, o projeto prevê um Centro de Convenções, Centro de Exposições,
Shopping Center, Salão de Eventos, três novos restaurantes e um estacionamento
para 2000 veículos. O novo edifício, com a altura de 17 metros, seria mais um
obstáculo à contemplação do mar.Como resultado das mobilizações
tivemos algumas conquistas, dentre elas ressalta-se a suspensão, em setembro de
2006, das reformas na Marina por determinação judicial. E em 29 de janeiro de
2007, o Comitê Organizador dos Jogos Pan-Americanos, informou ao Ministério
Público Federal que desistiu de realizar obras de expansão na Marina da Glória.
Os organizadores dos jogos admitiram que a ampliação da Marina, com a construção
de uma garagem para barcos, não é essencial para disputa dos jogos, pois as
instalações que ali existem são aceitáveis para a realização dos mesmos.
O
Ministério Público vai prosseguir com as investigações e os responsáveis pelas
construções indevidas terão que responder civil e criminalmente. É interessante perceber que no
caso da Marina da Glória, devido as mobilizações que se deram através de atos
públicos, moções de repúdio, denúncias constantes nos meios de comunicação e a
postura firme do Conselho Consultivo do IPHAN, não cedendo as pressões
externas, e a seriedade na avaliação da situação por conta dos procuradores do
Ministério público, tivemos como resultado a confirmação do que já era
previsto: os jogos estão sendo utilizados como pretextos para a entrega
indevida dos bens públicos para a iniciativa privada com a aprovação e empenho
da atual gestão municipal.
Lamentavelmente,
o caso supracitado consiste numa pequena ilha de conquistas sociais no contexto
de violentas intervenções urbanísticas que tem sido a gestão da cidade para a
realização do Pan-2007. Várias outras lutas foram ou vêm sendo empreendidas,
sem o mesmo sucesso. Vale citar o caso do Estádio de Remo da Lagoa, inaugurado em 1954, cem anos após a criação da primeira agremiação de regatas na cidade.
Sua importância ultrapassa a condição de único equipamento desta natureza em
todo o Brasil. Trata-se de uma obra de arquitetura moderna. E o modernismo,
todos sabemos, expressa um momento particularmente grandioso na vida nacional,
momento de utopias desenvolvimentistas, de intensos debates em torno da
nacionalidade, de grandes realizações. A arquitetura moderna brasileira é
mundialmente reconhecida e premiada.
Para além de sua beleza
arquitetônica e de seu incontestável significado patrimonial, o estádio de remo
cumpriu relevante papel na prática esportiva carioca com inclusão social.
Através do Programa de Iniciação Esportiva, do governo estadual, 2.500 crianças
ali praticavam o remo e outras modalidades, nas décadas de 1970 e 1980, não por
acaso um período áureo na performance de remadores brasileiros em competições
internacionais. Crianças de comunidades como Pavão, Pavãozinho, Vidigal,
Rocinha e Cruzada são Sebastião. Todavia, desde 1994, com a concessão de uso
para uma empresa privada, a Glen, todo esse uso público, social, comunitário,
foi extinto. O atual projeto da Glen é,
aproveitando a conjuntura do Pan, derrubar as arquibancadas do estádio,
edificando ali um complexo de lojas e salas de cinema. Embora seja um bem
tombado, não obstante as ações do IPHAN e do Ministério Público Estadual e toda
a mobilização popular, as implosões se iniciaram em janeiro de 2007. Considerando
o notório refluxo dos movimentos sociais urbanos, a partir de meados da década
de 90, parece digno de registro as inúmeras iniciativas da sociedade civil no
sentido de discutir criticamente as ações relacionadas à implementação do
Pan-2007.
O confronto de idéias e de projeto de cidade se manifestou
sistematicamente nos últimos dois anos, denunciando o autoritarismo e os
impactos socioambientais negativos das intervenções urbanísticas em pauta.
Foram bem poucas e parciais as vitórias do movimento social organizado até o
presente momento. Mas prevalece o sentido da luta pela afirmação da cidadania,
por uma gestão urbana mais democrática.
Para
concluir: em defesa da cidade e do cidadão
Qual
será efetivamente o legado do Pan-2007 para a cidade que o organiza? Muitas
promessas foram divulgadas, muito poucas foram cumpridas. Em entrevista
recente, o secretário estadual de Habitação, Noel de Carvalho afirmou que
apesar de os Jogos Pan-Americanos não terem promovido "mudanças
espetaculares", o evento esportivo foi capaz de chamar a atenção quanto às
“necessidades” da cidade, o que nos parece um retorno ínfimo para tamanho
investimento. Constata ainda o secretário, numa avaliação bem mais honesta que
aquelas enunciadas efusivamente por seus pares, que houve “poucas mudanças
estruturais necessárias para o desenvolvimento” mas, “de qualquer forma, o
evento favoreceu o setor imobiliário"[15].
Por
setor imobiliário, sabemos, trata-se do capital imobiliário, de seus interesses
lucrativos sobre a cidade, amplamente beneficiado, direta (vide recursos
públicos na construção da Vila Pan-americana) ou indiretamente, pela valorização
dos terrenos em torno do futuro estádio olímpico, (onde se intensifica um
processo descaracterizador de verticalização) ou entorno de áreas onde foram
removidas populações carentes. Em síntese, a cidade é tratada como negócio, e
não como espaço coletivo destinado ao bem-estar de seus habitantes. Em suma, a cidade que emergirá
deste evento tende a consolidar um modelo excludente e segregador.
Do ponto de
vista urbanístico, o principal aspecto desta política urbana é a concentração
espacial dos investimentos em áreas socialmente privilegiadas. A Barra da
Tijuca efetivamente se beneficia com a realização deste evento que muito onera
o poder público. Do ponto de vista da cidadania, vemos o acirramento de um
modelo de gestão da coisa pública que não considera os interesses sociais e
coletivos.
Um governo urbano explicitamente articulado aos interesses
empresarias, revestidos de uma bem concatenada estratégia discursiva na qual o
interesse do capital se confunde com o interesse de toda a cidade. Aos que não
compartilham desta ideologia, resta seguir denunciando e propondo alternativas
à destruição do patrimônio histórico-paisagístico-ambiental (vide Estádio de
remo e Marina da Glória) e à remoção de populações em favor dos grandes
interesses imobiliários.
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