IX Coloquio Internacional de Geocrítica LOS PROBLEMAS
DEL MUNDO ACTUAL. Porto Alegre, 28
de mayo - 1 de junio de 2007. |
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO:
ENTRE DOMINAÇÃO E APROPRIAÇÃO.
UM OLHAR SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS
Alvaro Ferreira
Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
alvaro.ferreira@thema.trix.net
A produção do espaço: entre dominação e apropriação. Um olhar sobre os movimentos sociais (Resumo):
Partimos do pressuposto de que o capitalismo tem escapado de suas crises de sobreacumulação através da produção do espaço. Para tanto, percebemos a utilização de uma série de estratégias que se realizam no âmbito do lugar, contudo, na maioria das vezes, são gestadas em cidades bem distantes – mais especificamente nos escritórios das grandes empresas. Se a produção do espaço se realiza através da tensão entre os diferentes agentes sociais, faz-se necessário que os movimentos sociais tornem-se instrumentos de transformação. É nesse sentido que caminha nosso trabalho; acreditamos que as mudanças na apropriação do espaço dar-se-ão através da transformação dos ativismos em movimentos sociais de caráter mais amplo, que agrupem lutas mais específicas – das ditas minorias – associando-as a uma luta de âmbito global.
Palavras-chave: produção do espaço; espaço social; ativismos; movimentos sociais; utopia
The production of the space: between domination and appropriation. An overview about the social movements (Abstract):
We argue that capitalism has escaped its overaccumulation crisis via the creation of space. We perceive the use of a series of strategies that come about in a particular place but are created most of the times in very distant locations – more specifically in the offices of large corporations. If the production of space takes place through the tension between the different social agents, social movements should become means of transformation. This is the direction we take in our work. We believe that the changes in the appropriation of space will materialize through the transformation of collective action into social movements with broader scope that bring together more specific and independent fights - of the so called minorities - into a broader and global struggle .
Key-words: production of space; social space; collective action; social movement; utopia.
Inicialmente é preciso esclarecer que estaremos trabalhando, no que concerne ao método, a partir daquilo que denominamos materialismo histórico geográfico. Procuramos deixar isso bem claro, pois grande parte dos artigos científicos produzidos sobre as cidades e o urbano (como realidades socioespaciais), influenciados pelo denominado discurso pós-moderno, tem fugido do, dito ultrapassado, debate marxista e de sua associação com o reconhecimento dos interesses de classe. Se o resultado disso foram trabalhos focados apenas no favorecimento do objeto local – sem qualquer preocupação com a totalidade – e no abandono das metanarrativas, por outro lado, a anterior perspectiva da economia política da urbanização havia tornado a análise demasiadamente simples ao basear-se, apenas, no ambiente construído em vez de ocupar-se do espaço social.
Acreditamos que relações sociais são sempre espaciais e existem a partir da construção de certas espacialidades. Aqui, trataremos de considerar, para este trabalho, a espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada; ao mesmo tempo concreta e abstrata, sendo, inclusive, o rebatimento das práticas sociais. Assim, a espacialidade dá conta do espaço socialmente construído. Nesse contexto, ao debruçar-nos sobre as diferentes frações do espaço urbano, estamos observando um espaço social associado a uma prática espacial que se expressa através de sua forma de uso. Contudo, não nos podemos equivocar acreditando que as formas espaciais expressam apenas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais, temos de ter em conta que uma forma espacial contribui, também, para a redefinição dos processos sociais, políticos e culturais. É na espacialidade que o percebido, o concebido e o vivido se reencontram e deixam transparecer sua total imbricação. Dessa maneira, corroboramos com LEFEBVRE (1994) quando de sua afirmação quanto a (re)produção do espaço, pois os fenômenos socioespaciais são simultaneamente produtos e produtores.
Entre a ocultação e a revelação a partir do espaço
Convém afirmarmos que o espaço como constructo social, ou seja, socialmente produzido, refere-se à estrutura, que define as determinações do modo de produção, mas refere-se também, simultaneamente, à ação dos agentes locais em associação com grupos de ação, muitas vezes de âmbito global. Nesse sentido, o espaço produzido pode contribuir mais para ocultar do que revelar. Isso porque, em geral, não desvela imediatamente o processo de sua produção (tal qual a mercadoria). É necessário que investiguemos as inúmeras codificações sobre as quais se assenta o espaço produzido e como os agentes produtores colaboram, simultaneamente, para ocultar sua decodificação. A afirmação de que o espaço é socialmente construído não significa a negação de que ele esteja centrado na materialidade do mundo, ou seja, isto afasta-nos da dicotomia objetividade-subjetividade. Importa perceber que o pensamento dialético enfatiza a compreensão dos processos e das relações, para a partir de então entender os elementos, a estrutura e os sistemas organizados. Por isso, argumenta HARVEY (1996, p.50), a dialética nos força sempre a questionar – seja em relação a uma coisa ou a um evento – qual processo constitui o objeto a analisar e como ele é sustentado. Apenas através da compreensão dos processos e relações que o objeto internaliza é possível entender os seus atributos qualitativos e quantitativos.
A constatação de que toda realidade se reveste de forma e conteúdo leva Lefebvre a acreditar que o espaço social apresenta, também, metodologicamente e teoricamente, as três categorias gerais: forma, função e estrutura. Ademais, a articulação metodológica das três noções permite desvelar um conteúdo socioespacial que se encontra oculto, posto que dissimulado nas formas, funções e estruturas analisadas.
Argumenta LEFEBVRE (1994, p. 32) que com o capitalismo, a relação entre a reprodução das relações sociais de produção – aquelas constitutivas do capitalismo – e a própria reprodução da família se complexificam. Assim, introduz um terceiro termo aos dois anteriores – a reprodução da força de trabalho – e passa a pensá-los como inter-relacionados. Acreditam LIMONAD e LIMA (2003, p. 17) que
para Lefebvre, é justamente a partir do reconhecimento de que o espaço social contém uma multitude de representações específicas desta tripla interação das relações sociais de reprodução social que emerge a tríade conceitual das práticas espaciais, das representações do espaço e dos espaços de representação.
A cidade deveria ser percebida como uma relação superadora dessa tríade à qual se referiu LEFEBVRE (1994, p. 42-45) ao refletir sobre a noção de espaço e, ao longo da exposição, introduz ainda os termos percebido, concebido e vivido. Adverte-nos LEFEBVRE (1994, p. 32) que ao mesmo tempo em que o espaço carrega consigo simbolismos explícitos ou clandestinos – representações das relações de produção – próprios do cotidiano, do particular, do vivido, transmite, também, as mensagens hegemônicas do poder e da dominação – representações das relações sociais de produção –, expressões do geral, do concebido.
Alguns autores têm procurado trabalhar com a tríade espacial de Lefebvre através de uma transposição direta, o que tem trazido alguns problemas já que aquele autor, habituado à utilização do método dialético, separava os três termos apenas no momento da análise. Práticas espaciais, representações do espaço e espaço de representações (acompanhados dos termos referentes: percebido, concebido e vivido) realizam-se simultaneamente, confundindo-se, sobrepondo-se. Limonad e Lima (2003, p. 19), acreditando que estavam unindo os três termos, afirmam que
o lugar se configura como a expressão mais nítida de uma ordem local, encarada como aquela que se define sobretudo pelas relações de proximidade, pela co-presença, por um cotidiano compartilhado, enfim, por um feixe de relações que se organiza no espaço vivido (...) e corresponderia à escala da habitação, do abrigo, do lar. Já a reprodução da força de trabalho e dos meios de produção seriam mediados pelo espaço percebido das práticas espaciais e regidas pelo espaço concebido das representações do espaço, que corresponderiam, por sua vez, respectivamente à escala do lugar, do território e do global. Entrelaçam-se, assim, em sua abordagem [de Lefebvre] os três momentos da reprodução social, muitas vezes abordados de modo fragmentado por outros autores – permitindo que a ordem próxima e a ordem distante emerjam simultaneamente.
Acreditamos que não seja possível definir os tais três momentos, pois de fato ocorrem simultaneamente. Naquilo que LIMONAD e LIMA (2003) identificam como lugar, por exemplo, encontramos diversas territorialidades, configurando-se em um jogo de forças em que é possível identificar o percebido, o concebido e o vivido. No intuito de esclarecer um pouco mais nossa argumentação, procuramos caminhar em direção da noção de espaço social.
Seria seguro afirmar que o espaço contém as relações sociais, mas, além disso, segundo LEFEBVRE (1994, p. 41), contém também certas representações dessas relações sociais de (re)produção. Estaria o autor enaltecendo o fato de tais relações poderem ser públicas, ou seja, declaradas ou, por outro lado, ocultas, clandestinas, reprimidas e, por isso, capazes de conduzir a transgressões. Posto dessa forma, é possível compreender o motivo pelo qual LEFEBVRE (1994) afirma que as representações do espaço têm considerável peso e influência na produção do espaço, principalmente levando em conta corresponderem a um sistema de signos, símbolos e códigos de representação dominantes em uma sociedade e que estão relacionados ao exercício do poder e à conformação do espaço abstrato.
Trataremos, agora, de enunciar nosso objeto: as possibilidades de mudanças na apropriação do espaço através da transformação dos ativismos em movimentos sociais de caráter mais amplo. Ao pensarmos nosso objeto, dirigimo-nos para a relação entre espaço abstrato e espaço social como forma de elucidação das transformações da metrópole carioca. Estamos entendendo espaço abstrato, como a exteriorização de práticas econômicas e políticas que se originam com a classe capitalista e com o Estado. É fragmentado, homogêneo e hierárquico. No que concerne ao espaço social[1], trata-se do espaço dos valores-de-uso produzidos pela complexa interação de todas as classes no cotidiano. Nesse sentido, podemos afirmar que é a tensão entre valor-de-uso e valor-de-troca que produz o espaço social de usos, produzindo também, simultaneamente, um espaço abstrato de expropriação. Ou seja, “o espaço social incorpora as ações sociais, as ações dos sujeitos tanto individuais como coletivos...” (LEFEBVRE, 1994, p. 33). Objetivamos enfocar apenas ligeiramente como os agentes[2] que produzem o espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro o fazem a partir de deslocações, desativações e redistribuições de firmas e residências no interior da cidade, quase sempre desconsiderando os anseios dos cidadãos envolvidos. Contudo, tais processos encontram-se ligados à atuação dos agentes a partir de relações construídas em escalas local-local e local-global[3].
O que estamos tentando deixar claro é que vivenciamos um conflito entre interesses engendrados em torno do espaço social – local dos valores sociais de uso e do desdobramento de relações sociais no espaço – e em torno do espaço abstrato – enquanto espaço de desenvolvimento imobiliário e administração governamental, por exemplo. A tensão entre espaço abstrato e espaço social tem produzido efeitos de fragmentação, criando guetos hierarquizados representando com sua espacialidade a hierarquia econômica e social, setores dominantes e subordinados. Nesse sentido, concordando com GOTTDIENER (1997, p. 131), a hegemonia da classe capitalista é renovada através da segregação espacial e através dos efeitos da força normatizadora da intervenção estatal no espaço.
O espaço além de ser um produto social, e como tal, criado para ser usado, para ser consumido, é também um meio de produção; e como meio de produção não pode ser separado das forças produtivas ou da divisão social do trabalho que lhe dá forma, ou do Estado e das superestruturas da sociedade. Contudo, LEFEBVRE (1979, p. 52) avança ao afirmar que mais que isso, o espaço deve ser considerado como uma das forças produtivas. O domínio do espaço confere uma posição na estrutura econômica, por isso afirma que
mesmo quando uma parte do espaço não tem conteúdo, seu controle pode gerar poder econômico, porque pode ser preenchido com algo produtivo, ou porque pode precisar ser atravessado por produtores.
Assim, afirmar que o espaço é uma força produtiva implica dizer que é parte essencial do processo.
O capitalismo, como modo de produção, sobreviveu pela utilização do espaço como reforçador das relações sociais necessárias a essa sobrevivência. HARVEY (2003; 2002; 2000; 1981), influenciado por LEFEBVRE (1994), afirma que o capitalismo conseguiu escapar das crises de sobreacumulação através da produção do espaço. Obviamente não se referia apenas a “novos espaços”, já que a refuncionalização também tem que ser considerada. E a produção do espaço se realiza também nessa relação dialética entre valor-de-uso e valor-de-troca. Ou seja, caminhamos para além da percepção de, apenas, espaço de consumo para a de consumo do espaço (CARLOS, 2005; 2001; 1999; 1994); dito de outra maneira, além de considerarmos apenas o espaço de consumo, devemos considerar também o próprio espaço como objeto de consumo.
Entre a apropriação e a dominação do espaço.
Ao analisar o espaço urbano devemos considerá-lo como produto, condição e meio do processo de reprodução das relações sociais. Portanto, conforme CARLOS (1994, p. 24),
se de um lado o espaço é condição tanto da reprodução do capital quanto da vida humana, de outro ele é produto e nesse sentido trabalho materializado. Ao produzir suas condições de vida, a partir das relações capital-trabalho, a sociedade como um todo, produz o espaço e com ele um modo de vida, de pensar, de sentir.
Sendo assim, a produção espacial mostra-se desigual, posto que o espaço urbano encontra-se associado à produção social capitalista que se (re)produz desigualmente. O Rio de Janeiro é um exemplo claro dessa reprodução desigual, pois temos condomínios de luxo em contraposição às favelas e às periferias, que contam com infra-estrutura urbana bastante inferior em relação aos bairros nobres da cidade.
É levando esse debate em conta que perceberemos o espaço, também, como a história de como os homens, ao produzirem sua existência, o fazem como espaço da produção, da circulação, da troca, do consumo, da vida (CARLOS, 1999, p. 64, 1994, p. 36). Logo, convém-nos admitir que cada vez mais o espaço urbano, a partir da subordinação acelerada da apropriação e das maneiras de uso ao mercado, é destinado à troca. Percebemos, então, o predomínio do valor de troca sobre o valor de uso, contudo, não podemos deixar de afirmar que valor de uso e valor de troca ganham significado através da relação entre si. LEFEBVRE (1983) enfatiza tal afirmação ao indicar que um só e mesmo objeto apresenta dois aspectos, onde um exclui o outro e, não obstante, um implica o outro. Na qualidade de valor de uso, deseja-se, prefere-se, utiliza-se e consome-se o objeto. Na qualidade de valor de troca, o artigo é desejado apenas pelo dinheiro nele virtualmente contido. Essa certeza leva CARLOS (2001, p. 38) a afirmar que o comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comprando um valor de uso; apesar de a casa ser mercantilizada, o valor de uso e o valor de troca se encontram em uma relação dialética em que nenhum dos pólos desaparece.
Pormenorizando, MARX (1996, p. 44) enaltece o fato de que cada mercadoria tem duplo aspecto de expressão na sociedade capitalista, ou seja, valor de uso e valor de troca. Assim sendo, um valor de uso tem valor somente em uso, realizando-se no processo de consumo e serve diretamente como meio de existência. Quando Marx volta-se para o valor de troca, afirma que, inicialmente, aparece como a proporção pela qual valores de uso são trocados por outros. Contudo, acredita que a criação de valor de troca encontra-se no próprio processo social de aplicação de trabalho socialmente necessário para gerar mercadorias utilizadas pelo ser humano. Enaltece, então, que a mercadoria é um valor de uso, mas como mercadoria, ela em si simultaneamente não é valor de uso; ou seja, não seria mercadoria se fosse valor de uso para aquele que a possuísse. Isto é, para quem a possui é “não valor de uso”, porém a mercadoria tem que se tornar valor de uso para os outros. Posto isso, é possível concluir com MARX (1996, p. 48) que
para tornarem-se mercadorias com valores de uso elas devem ser inteiramente alienadas; devem entrar no processo de troca; a troca, contudo, é relacionada meramente com seu aspecto, como valores de troca. Daqui que, somente se realizando como valores de troca podem elas realizar-se como valores de uso.
Dessa forma, segundo HARVEY (1980, p. 133), Marx coloca “o valor de uso e o valor de troca em relação dialética entre si através da forma que eles assumem na mercadoria”. Nesse sentido, percebemos simultaneamente aproximação e afastamento, já que em qualquer sociedade fundada na troca, o produtor encontra-se isolado e, no entanto, ligado aos outros por intermédio do mercado(LEFEBVRE, 1983).
É justamente a sobredeterminação do valor de uso em relação ao valor de troca, no que concerne à cidade (vista cada vez mais claramente como mercadoria), que torna ainda mais evidente este momento em que o capitalismo tem sobrevivido a suas crises de sobreacumulação através da produção do espaço. Por isso, uma série de transformações são impostas à cidade, submetendo-a a uma funcionalização que sirva à reprodução do capital. Nesse sentido, o citadino encontra-se cada vez mais vivenciando um espaço de dominação. Dominação que, em geral, acaba não sendo percebida enquanto tal, passando a ser vista como algo natural. Esse obscurecimento é que dá sustentação ao não questionamento da propriedade privada; aliás a produção capitalista não pode permitir a destruição da instituição da propriedade privada, pois sua própria existência está fundamentada na propriedade privada dos meios de produção.
A apropriação da cidade pelo cidadão está ligada ao valor de uso e àquilo que LEFEBVRE (1991) denominou “ordem próxima”; a dominação encontra-se ligada ao valor de troca e, também, à “ordem distante”. É na ordem próxima – e através dela – que a ordem distante persuade e completa seu poder coator. Nesse sentido, argumenta LEFEBVRE (1991, p. 46) que
a cidade é uma mediação entre as mediações. Contendo a ordem próxima, ela a mantém; sustenta relações de produção e de propriedade; é o local de sua reprodução. Contida na ordem distante, ela se sustenta; encarna-a; projeta-a sobre um terreno (o lugar)[4] e sobre um plano, o plano da vida imediata”.
É exatamente a partir dessa tensão entre ordem próxima e ordem distante que ganham importância os movimentos sociais.
Entre ativismos e movimentos sociais: ações para transformação do espaço?
O Congresso Nacional, após muitas negociações e adiamentos, aprovou o Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo de política urbana (em seus míseros dois capítulos) da Constituição Federal de 1988. Consta nas diretrizes do Estatuto que os planos diretores devem contar com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos.
Em um momento em que boa parte dos pesquisadores (principalmente os ligados às ciências sociais) aplaude a aprovação do Estatuto da Cidade no Brasil, importa fazermos algumas observações. Raquel Rolnik, ao pronunciar-se sobre a importância do Estatuto, afirmou que boa parte dos instrumentos – sobretudo os urbanísticos – depende dos Planos Diretores e outros de legislação municipal específica que aplique o dispositivo na cidade; afirmou ainda que os cidadãos têm o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir concretamente sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas. A esperança de transformação, para Rolnik, estava baseada na implementação do Estatuto da Cidade que, por sua vez, baseia-se no preceito da garantia da função social da propriedade.
Importa refletirmos até que ponto o “direito e o dever” do cidadão não estaria correndo o risco de ser, utilizando a expressão cunhada por SOUZA (2006, p. 282), “domesticado”; ou seja, até que ponto o discurso em defesa dos orçamentos participativos, a participação no âmbito de institucionalidades como conselhos gestores não acabaria por “desarmar” os ativismos? Anteriormente, SOUZA (2005, p. 288) já se mostrava preocupado com o descolamento dos objetivos originais que o dito planejamento alternativo poderia causar às mobilizações. Contudo, muito antes da aprovação do Estatuto da Cidade, RIBEIRO (1990, p. 14) levantava a importância de percebermos a reforma urbana para muito além dos planos diretores; visão premonitora, já que presenciamos uma homogeneização dos planos diretores, indicando a sua própria mercadificação. Afirma SOUZA (2005), ainda, que algumas lideranças de movimentos populares em crise estavam
querendo compensar a desmobilização da base social com avanços no plano técnico e político-burocrático: qualificação de lideranças associativas para discutir políticas públicas, crença nos poderes redentores de um plano diretor progressista.
Em tempos de ativismos isolados[5], que procuram reinvindicar questões extremamente particulares sem nenhum outro desdobramento, temos por exemplo o sindicalismo de resultados e as associações de moradores extremamente paroquiais e, muitas vezes, refens do clientelismo. Ao analisarmos a atuação dos agentes que (re)produzem o espaço urbano do Rio de Janeiro, é possível perceber que os usuários proprietários de moradia estão relacionados com os valores de uso da casa, mas não devemos esquecer que o valor de troca está colocado quando nela realizamos modificações com a intenção de valorizá-la ou, ainda, quando ocorrem manifestações dos moradores contra o tombamento de imóveis em bairros nobres da cidade (Leblon, Ipanema, Jardim Botânico, por exemplo), que acabam por desvalorizar o patrimônio daqueles que tiveram seus imóveis tombados; ao mesmo tempo, os proprietários vizinhos tiveram seus imóveis valorizados. Mais uma vez temos aqui um exemplo de ativismo ligado a um particularismo.Estamos falando da incapacidade de passar da luta de bairro para a luta a partir do bairro; ou, por exemplo, de uma luta de um sindicato que não tem como referência uma crítica social mais ampla. Aliás, ainda hoje há aqueles que acreditam que a “revolução” se fará através do proletariado; ora a classe trabalhadora não luta porque existe, ao contrário, ela existe porque luta e, nesse sentido luta justamente para negar-se enquanto classe explorada. Importa pensar em novas formas de associação entre os vários ativismos na busca de uma transformação mais abrangente. Nesse sentido estamos nos remetendo àquilo que HARVEY (1996; 2000) apresentou como o “embate” entre particularismos militantes e lutas de ambição global.
Portanto, é preciso escapar das armadilhas que propostas, inicialmente vistas como grande avanço, podem representar. A associação capital-Estado usa o espaço de forma a assegurar o controle dos lugares através da homogeneização do todo e a segregação das partes. Assim, a “organização espacial” representa a hierarquia do poder. Acreditamos, iluminados por Lefebvre (1955, 1976, 1979, 1981, 1991, 1994, 1999), que o conceito de espaço social sintetizaria o natural, ou seja, o quadro físico, mas também o mental (as representações do espaço e os espaços de representação) e o social com sua prática espacial. Seria correto afirmar que as representações do espaço tratar-se-iam de abstrações, mas, simultaneamente, tomam parte nas práticas sociais ao estabelecer relações entre formas e pessoas através da lógica capitalista de produção do espaço. Aqui, a incorporação dessa lógica, pelas práticas espaciais, ao cotidiano, à realidade urbana, dentro do espaço percebido, faz com que vivenciemos um espaço de sobredeterminação do valor de troca em relação a valor de uso. Por isso, é possível compreendermos porque Seabra (1995) acredita que
compreender a problemática do espaço implica compreendê-lo criticamente. Isto implica em relacionar o vivido, o percebido e o concebido. Uma crítica do espaço deveria modificar muito o espaço de representação dos habitantes, poderia fazer parte integrante da prática social. Mas como não existe tal crítica, o usador do espaço, o habitante ou morador tende a fazer abstração de sua própria prática com e no espaço. Vive e convive com a fetichização do espaço.
Contudo há de ficar claro que o espaço é a forma socialmente construída; no vivido, extremamente ligado às funções e estruturas, estão as formas[6]. Assim, se as práticas espaciais forem concebidas pelos moradores do lugar, são postos abaixo os fetiches, pois o espaço carrega em si a dominação por meio das formas. Isto exige que a luta tome outra dimensão, porque o ato de habitar não se restrige ao espaço privado; envolve, como argumenta CARLOS (2005), uma relação com os espaços públicos, como lugares do encontro, reunião, reivindicação e sociabilidade. Estamos fazendo menção, exatamente, à tensão entre apropriação e dominação, pois a propriedade privada é fundante da segregação ao determinar as possibilidades de uso dos lugares da cidade. Assim, corroboramos com CARLOS (2005) ao afirmarmos que a cidade revela os conflitos da produção do espaço.
Retomando o debate acerca do Estatuto da Cidade, convém afirmar que mesmo tendo na proposta (e na aposta) da participação popular sua força, mantém-se preso às racionalidades técnicas e às associações entre o Estado e os proprietários e investidores, já que o “direito à cidade” aparece – como bem argumenta CARLOS (2005) – através da realização da função social da propriedade e não na sua negação como fundamento da segregação na cidade.
Além disso, até mesmo um exemplo enaltecido por todos como o orçamento participativo (em Porto Alegre), que tem dinamizado a sociedade civil, de alguma forma contribui simultaneamente para a manter presa a uma agenda que é determinada pelo Estado; e isso é grave, pois faz a sociedade acreditar que as determinações tem partido dela, quando de fato não tem.
Talvez o mais importante caminho – para buscar a transformação, o verdadeiro direito à cidade e a justiça social – tenha de ser percorrido guardando múltiplas escalas espaciais e temporais de ação. No que tange às escalas espaciais, é preciso “costurar” os particularismos militantes, ativismos sem pretenções mais amplas (mas de grande importância para aqueles que àquilo reivindicam) com ações de âmbito global; ou seja, que levem em conta não apenas os problemas conjunturais, mas também os problemas ligados à estrutura. Embora os movimentos sociais tenham seu nascedouro a partir de problemas que acontecem no lugar, é necessário buscar as conexões com escalas espaciais mais amplas, em um movimento do lugar ao mundial e de volta ao lugar. Esse movimento obriga-nos a, também, pensarmos em escalas temporais de ação diferenciadas; ou seja, estaremos trabalhando com ações de curto e longo prazo. Souza (2005, p. 330), remetendo-se a Certeau, fala-nos em utilização de táticas e estatégias, em que as táticas estariam ligadas ao curto prazo, ao cotidiano e aos oprimidos, ao passo que as estratégias estariam ligadas ao longo prazo, ao âmbito global e àqueles que exercem o controle e a dominação.
Acreditamos que táticas e estratégias devem ser usadas simultaneamente por aqueles que buscam a “verdadeira revolução”, a justiça social. É necessário que passemos a pensar simultaneamente, e de forma interligada, em ações de curto prazo (táticas) e de longo prazo (estratégias).
Temos, desde há muito – lá se vão dez anos – falado da importância de resgatar a utopia. O que importa na utopia é justamente o que não é utópico, é o processo de sua busca. Esta mesma certeza levou SOUZA (2005, p. 331) a resgatá-la, afirmando ser a utopia “aquilo que ainda não existe em lugar algum, mas que pode vir a existir. (...) Sem um horizonte radical-utópico, sem fantasia emancipatória, as melhorias possíveis ‘aqui e agora’ não passam de uma reprodução do presente, em vez de serem uma ajuda para construção do novo”.
É verdade que, muitas vezes, por mais que nos empenhemos nunca teremos absoluta certeza a que resultado chegaremos, e isso acaba sendo um enorme fator de imobilização. Resgatando HARVEY (2000, p. 254), a fuga da incerteza acaba fazendo com freqüência que demos preferência aos males conhecidos em vez de buscarmos refúgio noutros males ignorados. Ora, é preciso resgatar o pensamento utópico para transformar, afinal, aquilo a que Marx deu o nome de ‘o movimento real’ que vai abolir ‘o estado de coisas atual’ está sempre por ser feito e por ser apropriado.
A solução não está no curto prazo – e nele é mesmo inalcançável – mas começa nele. É preciso compreender que nós não veremos a “revolução”, mas que isso não é motivo para não iniciá-la. Além do mais, parafraseando Marx, afirmou LEFEBVRE (1991, p. 145) que
a humanidade só levanta problemas que ela mesma pode resolver, escreveu Marx. Atualmente, alguns acreditam que os homens só levantam problemas insolúveis. Esses desmentem a razão. Todavia, talvez existam problemas fáceis de serem resolvidos, cuja solução está aí bem perto, e as pessoas não levantam.
Nossa concordância não poderia ser maior.
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Endereços eletrônicos
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[1] Estamos trabalhando, atualmente, em um artigo que procura desenvolver com mais profundidade a noção de espaço social a partir da tríade espacial de Henri Lefebvre – práticas espaciais, representações espaciais e espaços de representação (com as relações entre percebido, concebido e vivido) – associada às noções de espaço abstrato e espaço relacional, em que, de certa forma, procuramos desmistificar o tal erro de interpretação que alguns pesquisadores inferem a HARVEY (1994, 1987) quando de sua leitura da obra de LEFEBVRE (1994).
[2] Ampla discussão acerca dos agentes que produzem o espaço foi travada na Geografia e nas Ciências sociais de forma geral, dando origem a um grande número de publicações; dentre elas importa mencionar CAPEL (1974), HARVEY (1980; 1982) e CORRÊA (1995).
[3] Em SANTOS (1996) é possível apreciar importante debate acerca dessa relação a partir daquele que esse autor denominou “A força do lugar”.
[4] Grifo nosso.
[5] No que tange ao debate acerca dos ativismos, SOUZA (2006) proporciona-nos aprofundamento importante da temática. Apresenta uma “tipificação” entre ativismos (em sentido fraco e em sentido forte) e movimentos sociais (em sentido fraco e em sentido forte).
[6] Em uma proposta como essa – de um artigo curto – não aprofundamos a discussão acerca das categorias forma, função e estrutura, contudo vale indicar a leitura de LEFEBVRE (1971), SANTOS (1985) e FERREIRA (2003).
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