X Coloquio Internacional de Geocrítica DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008 Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008 |
Renato Pequeno[*]
Universidade Federal do Ceará
Políticas habitacionais, favelização e desigualdades sócio-espaciais nas cidades brasileiras: transformações e tendências (Resumo)
No Brasil, verificam-se alterações nos rumos das políticas públicas habitacionais, em especial associadas ao processo de favelização, disseminando-se de modo residual e acelerado, envolvendo conjuntos habitacionais, suprimindo espaços livres, comprometendo ambientes frágeis e homogeneizando a paisagem periférica. Tais políticas contribuíram para a exacerbação das condições de desigualdade sócio-espacial no espaço intra-urbano de metrópoles, cidades médias e pequenas. A partir da década de 1990, se incentiva a municipalização das políticas habitacionais, porém, devido a diversidade inerente às favelas, assim como a sua fragmentação no intra-urbano, estas políticas adotam ações multi-orientadas atreladas à localização, à vulnerabilidade sócio-ambiental, dentre outros. Dentro de um quadro pouco promissor, algumas tendências são apontadas, tais como: predomínio das comunidades de áreas de risco como alvo maior das ações; a utilização de instrumentos urbanísticos de regularização fundiária; a expansão da cidade espontânea auto-construída; a ampliação do mercado imobiliário formal na produção habitacional.
Palavras chave: favela, urbanização, habitação, planejamento, políticas públicas
Housing policies, squatting process and social inequalities in the Brazilian cities: transformations and tendencies (Abstract)
In
Key-words: squatter settlements, urbanization, housing, planning, public policies
Este artigo busca discutir as transformações presentes nas cidades brasileiras associadas à questão da moradia, em especial à favelização, tendo em vista a forma e a intensidade como a mesma se dissemina pelo território, independente do porte da cidade, da sua localização, partindo inclusive para romper as fronteiras dos espaços de transição urbano-rural, chegando ao campo.
Favela é aqui entendida como assentamento precário, composto por famílias de baixa renda, marcado pela ocupação ilegal do solo, pelo adensamento e intensidade na ocupação do solo, pela carência de infra-estrutura, pela dificuldade no acesso aos serviços e equipamentos sociais ofertados pela cidade e pela insalubridade da moradia, dadas suas dimensões e seu desconforto ambiental.
Numa primeira parte busca-se discutir o processo de urbanização vigente, associado às mudanças nas políticas habitacionais, as quais culminam com a inserção da urbanização de favelas como principal objeto de intervenção.
Em seguida, faz-se uso de bases de dados que buscam quantificar alguns aspectos do problema da moradia, seja pelo déficit habitacional, seja pela inadequação da moradia, como por sua precariedade, buscando-se atrelá-los ao processo de crescimento das áreas de favela.
Com o objetivo de ilustrar os pontos trazidos ao debate, apontam-se aqui de forma sintética algumas situações de realidades urbanas estudadas, em especial a cidade de Fortaleza e sua região metropolitana. Discute-se segundo o problema das áreas de favelas o quadro de respostas formuladas pelos diferentes órgãos responsáveis, buscando compreender as mudanças nas formas de atendimento às demandas, reconhecendo a importância dos processos de planejamento para que as políticas publicas possam vir a lograr êxito.
Realidades do Brasil Urbano: políticas habitacionais descontínuas e favelização
Ao longo do século XX o Brasil vivencia um processo de urbanização dos mais intensos, havendo grandes mudanças na distribuição demográfica em seu território. Dispersa e heterogeneamente distribuída pelo espaço rural, sua população passa a confluir para as cidades, sendo esta movimentação diretamente associada às transformações na estrutura produtiva, à concentração de oportunidades de trabalho e serviços nas cidades, aos investimentos predominantemente urbanos, às inovações tecnológicas, entre outros.
Resulta deste processo, um intenso crescimento da população urbana, em especial nos espaços metropolitanos no centro sul, havendo fluxos migratórios de regiões menos desenvolvidas para outras, tendo a industrialização papel fundamental enquanto atividade motriz. Tentativas em reverter este quadro foram realizadas, favorecendo a industrialização de outros espaços metropolitanos de regiões menos favorecidas e de espaços não metropolitanos, organizados a partir de cidades de porte médio na década de 1970.
Só no terceiro quartel do século XX, quando a maioria da população brasileira passa a viver nas cidades, a necessidade de instrumentos de planejamento e gestão do território se faz presente, de modo a articular o crescimento urbano à provisão de infra-estruturas, à estruturação o sistema viário, ao direcionamento da expansão da cidade e em especial ao controle do uso do solo e da ocupação do território.
Todavia, este verdadeiro surto de urbanização ocorre dentro de um cenário em que os processos de planejamento urbano e regional, em suas diferentes escalas, permaneciam estanques à nova realidade. Pautados na tecnocracia, os instrumentos de planejamento gerados neste período, não privilegiaram o combate às desigualdades, muito menos as questões mais prementes, centrando-se isto sim, em questões estruturais associadas a horizontes distantes que inviabilizaram sua implementação. (Villaça, 1998)
Na ausência de uma política urbana que estabelecesse os procedimentos a serem seguidos na elaboração de processos de planejamento, bem como que regulasse a aplicação dos instrumentos de gestão do solo urbano, resulta de forma generalizada, um processo de urbanização recente marcado pela desordem, pela disparidade sócio-espacial, ficando as cidades, salvo algumas exceções, à mercê das ações de especuladores imobiliários, os quais muitas vezes atrelados ao Estado, otimizaram retornos de investimentos, promovendo a deterioração do ambiente urbano.
Com isso, ampliam-se as desigualdades sócio-espaciais nas cidades, independente do porte que as mesmas possuam. Os problemas urbanos atrelados ao quadro de desenvolvimento desigual, ainda que surjam primeiramente nas metrópoles, passam a se difundir rapidamente nas cidades que organizam os espaços não metropolitanos, generalizando-os, trazendo à tona o paradoxo da urbanização sem cidade e dos fragmentos de cidade sem urbanização.
Dentre as questões que se apresentam associadas ao caótico processo de urbanização brasileira, o problema habitacional se destaca não apenas pelas especificidades de suas formas e alternativas regionais, como também pelas similaridades das ações dos agentes produtores do espaço urbano ao longo do tempo.
Diversos estudos tratam da problemática habitacional brasileira associada às transformações ocorridas na virada do século XIX e no inicio do XX[1]. O crescimento da urbanização nesta fase, quando o Estado ainda não se manifestava na provisão habitacional, acaba tendo a demanda social atendida por caminhos diversos: desde a produção de unidades residenciais em série para locação, à construção de cortiços nas áreas centrais, aos primeiros núcleos de ocupação irregular nas franjas periféricas. As ações governamentais, mostravam-se focalizadas na intervenção em áreas centrais, com caráter sanitarista e embelezador e na regulação, estabelecendo regras edilícias para as moradias coletivas e para a construção de casas de aluguel.
Na década de 1930, no auge do Estado Novo, a urbanização acelerada leva a que o Estado tome medidas mais efetivas, habilitando os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) das diferentes classes trabalhistas a criarem suas carteiras prediais, reduzindo taxas de juros, ampliando prazos de pagamento. Além disso, a decretação da lei do inquilinato, congelando os aluguéis entre os anos de 1942 e 1964, viria a esfriar o mercado da construção para locação, trazendo como efeito o crescimento das cidades através loteamentos periféricos sem infra-estrutura onde a auto-construção e o pequeno empreiteiro predominaram.
Como aponta Bonduki(1998) [2], desde os anos 1930 até meados dos anos 1960, a produção da habitação social brasileira apresentou uma fase áurea em que a mesma não contava com padronizações, contando com fortes influências do movimento moderno, atendendo de forma diversificada às demandas organizadas a partir dos diferentes institutos de assistência e previdência. Na época a produção mostrava-se concentrada nas metrópoles do centro-sul, com ações diminutas nas demais regiões, onde ainda predominavam formas arcaicas de relações de trabalho associadas a atividades econômicas tradicionais.
Pasternak (1997) destaca a criação da Fundação da Casa Popular (FCP) em 1946, como primeiro órgão de âmbito nacional, voltado exclusivamente para a provisão, mediante venda, de casas para a população de baixa renda. Inicialmente com recursos derivados de impostos associados à redistribuição de riqueza, a FCP não consegue se firmar, seja pela força dos Institutos, seja pela resistência ao pagamento de impostos, tendo como resultado uma produção diminuta e como efeito perverso, o repasse da busca pela solução habitacional ao trabalhador de baixa renda recém chegado do campo para a cidade.
Todo este período coincide com a fase da história brasileira em que a industrialização passou a despontar como atividade econômica diretamente associada ao desenvolvimento. Grandes contingentes populacionais foram atraídos para os grandes centros urbanos, dinamizando o setor terciário, revertendo na provisão de infra-estruturas demandadas, gerando uma atmosfera de progresso, ainda que territorialmente concentrado.
Para parcela considerável da população que não possuía vínculos com organizações trabalhistas, restou como opção, contribuir com a expansão das cidades, a partir da aquisição de lotes em assentamentos periféricos, fazendo-se difundir a lógica da propriedade privada em substituição à moradia de aluguel, através da auto-construção nas periferias urbanas. Vale ressaltar que esta alternativa remanesce simultânea às diversas transformações verificadas nas políticas habitacionais.
A partir dos governos militares, iniciados em 1964, a questão da moradia passará a ser tratada de forma centralizada com a formação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), para onde convergiriam os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), e do Banco Nacional da Habitação (BNH), responsável pela formulação, gestão e execução da política nacional, contando com as Companhias de Habitação (COHABs) na execução de programas para as camadas de baixa renda. Outros segmentos vieram a ser atendidos por cooperativas e mesmo pelo mercado, com financiamento junto ao BNH.
Alguns aspectos marcaram este período da história da política habitacional brasileira, dentre os quais: a situação de permanente re-estruturação institucional associada à instabilidade da política econômica posterior à fase do milagre brasileiro; a utilização dos recursos para financiamento de moradia para grupos sociais diferenciados pela faixa salarial; peri-urbanização de grandes conjuntos habitacionais induzindo o crescimento das cidades; utilização dos recursos para obras de abastecimento, saneamento e sistema viário; demora no reconhecimento oficial da favela como forma de moradia, adotando-se a remoção e o re-assentamento como única alternativa. Só em meados da década de 1970, foram criados programas sociais para implantação massiva de infra-estrutura urbana, avistando-se possíveis investimentos para os setores mais carentes e excluídos.
Entretanto, em meados da década de 1980, como parte das medidas de um dos planos econômicos de controle da inflação, o BNH foi extinto, sendo suas atribuições incorporadas pela Caixa Econômica Federal (CEF), definindo-se novas diretrizes para a condução dos programas. A política federal passou a ser conduzida de forma fragmentada, mediante a criação de programas alternativos marcados pela descontinuidade, pela mudança de endereço institucional alocada em diferentes ministérios. Além disso, várias das ações que vinham sendo implementadas, foram desaceleradas por conta de reduções orçamentárias, o que induziu a progressiva retirada dos governos estaduais deste setor com a extinção das COHABs, não mais condizentes com os princípios do neoliberalismo que passam a predominar nos governos estaduais. [3]
Tem-se assim o inicio de um processo denominado por Cardoso (2002) como a descentralização perversa, quando foi repassada às municipalidades a condução das políticas habitacionais. Desprovidas de um aparato institucional e de um marco legal que regulamentasse a realização de uma política municipal de habitação, orientadas por planos diretores que não retratavam a realidade dos conflitos que as mesmas tinham que enfrentar, carentes de recursos financeiros próprios e sem possibilidades de acesso às linhas de financiamento, resta aos municípios passar a enfrentar desafios no campo da habitação.
Numa tentativa de periodização, com o sentido de visualizar as mudanças na forma como as políticas habitacionais de interesse social passaram a delinear as ações junto às áreas de favela, a forma e o conteúdo destas intervenções, bem como os atores que as protagonizam, são variáveis fundamentais. Para tanto, a mudança de olhar do poder público e da sociedade em relação ao favelado, como propõe Pasternak (1997), é nossa maior referência.
Três grandes períodos podem ser apontados: um que antecede o reconhecimento da favela e de seu conteúdo social como parte da cidade, marcado pela remoção e pelo re-assentamento distante; um intermediário, em que a favela como lócus da miséria torna-se alvo de intervenção parcial e fragmentada, sem que questões estruturais viessem a ser mencionadas; e por fim, a fase atual que avança na formulação de intervenções integradas, abrangendo regularização fundiária, desenvolvimento sócio-ambiental, fortalecimento comunitário e direito à cidade e à moradia.
Favelas e remoção – re-assentamentos em conjuntos distantes
Presente na paisagem urbana brasileira sob diversas denominações, a favela se constitui numa das históricas formas de moradia precária, associada ao rápido processo de urbanização que marca o século XX nas diferentes regiões. Progressivamente, as cidades, onde a oferta de oportunidades e de serviços era o diferencial, passaram a alojar pequenos núcleos residenciais, ilegalmente ocupados, compostos por construções precárias e improvisadas, cujas localizações se vinculam à proximidade do trabalho e às facilidades de mobilidade.
A medida que cresceram e se consolidaram, estes assentamentos, ditos subnormais, passaram a se constituir em verdadeiros incômodos urbanos: como barreira física, impedindo a expansão do sistema viário; como agentes da degradação ambiental, dada a falta de saneamento; como focos de insalubridade, devido às precárias condições de moradia; como antros de marginais, fazendo da favela o lócus da exclusão social.
Longe de serem consideradas políticas públicas habitacionais de interesse social, as ações dos governos ante o processo de favelização foram marcadas pelo princípio da remoção seletiva, dando-se preferência para aquelas que ocupavam territórios privados, que viriam a ser alvo de futuros investimentos, assim como outras, marginais às vias arteriais estruturantes do crescimento das cidades. Por vezes, o discurso sanitarista e de combate ao risco ambiental foi utilizado, no sentido de promover remoções em larga escala. Nesta fase, as práticas de remoção associadas ao re-assentamento em conjuntos distantes, findavam por promover a periferização da favela, visto que a infra-estrutura nem sempre chegava e a propriedade do imóvel nem sempre se concretizava.
Favelas e urbanização – assistencialismo e engenharia – aprendizado
O crescimento da favelização como advento na cidade leva à quebra de paradigmas, fazendo com que a favela passe a ser reconhecida como lugar da pobreza (Pasternak,1997). Observa-se que aos poucos, os programas de urbanização de favelas foram assumindo destaque nas intervenções urbanas promovidas pelo Estado, considerando-se a alternativa de permanência na área ocupada, reduzindo-se o custo das obras ao evitar a remoção e re-assentamento de todas as famílias em novas unidades habitacionais, e buscando garantir aos moradores das áreas urbanizadas o acesso à cidade.
Diferente do passado recente, em que predominava a implantação de grandes conjuntos, inaugura-se uma fase em que áreas de ocupação irregular começam a ser urbanizadas, marcada pelos interesses políticos dos gestores responsáveis, dado que a favela ainda permanece com o estigma da contravenção e da marginalidade, em função da apropriação do solo de forma irregular. Além disso, em sua maioria, as favelas mais antigas e melhor localizadas, com maior resistência às pressões dos setores imobiliários, tornam-se alvo destas ações. Entretanto, estas características coincidem com a maior intensidade da ocupação do solo, a maior densidade, a presença de famílias conviventes num mesmo lote e a auto-verticalização, trazendo maior grau de dificuldade para a execução de projetos.
Esta fase intermediária é marcada pela forma pontual e pela presença de projetos piloto. Todavia, as intervenções vão se acumulando, fazendo da urbanização de favelas, um programa especial associado às questões ambientais urbanas, garantindo a possibilidade de experimentação, em paralelo às tentativas de permanecer com programas de provisão habitacional para grupos organizados.
Entendida como objeto de intervenção de práticas assistencialistas, as instituições públicas que lidavam com as áreas de favela tinham no técnico de serviço social a maioria de seu corpo funcional, responsáveis pela mobilização dos moradores e mediação de conflitos, restando aos técnicos de engenharia e da arquitetura a elaboração de projetos e execução de obras de melhorias.
Com isso, esta fase intermediária ficou marcada pela contraposição entre as ações de caráter físico e as de cunho social, cujos técnicos responsáveis ainda remanesciam com a lógica da atuação dissociada entre o trabalho físico e o social, em detrimento da necessária complementaridade. Sem entendimento entre os responsáveis técnicos, a inserção dos moradores ficava inviabilizada, sobrando espaço para práticas de coronelismo urbano que até hoje perduram. Da mesma forma, a reação tecnocrática das concessionárias de serviços urbanos aos padrões urbanísticos da favela, recusando-se a intervir em áreas com padrões inferiores àqueles presentes na cidade formal.
Sem dispor de elementos jurídicos, poucos avanços foram obtidos no que se refere à regularização fundiária. Entretanto, as primeiras intervenções passaram a despertar a formulação de instrumentos que garantissem a permanência das famílias nas áreas ocupadas, vindo a contribuir com a discussão interdisciplinar a respeito da temática aproximando-se dos movimentos de moradia, vindo a se constituir em mobilização nacional em defesa da reforma urbana.
Favelas e intervenção integrada - regularização, cidadania e cidade
O derradeiro período tem início, em meio a um cenário econômico nacional dos mais problemáticos. A caótica expansão das cidades, carentes de infra-estrutura e ambientalmente degradadas, a insuficiente produção habitacional de interesse social, num ambiente de incertezas e de desaceleração do crescimento econômico, decorre na geração de um crescente déficit habitacional assim como num progressivo aumento do percentual de famílias morando em condições precárias. Com isso, a favelização passa à condição de dinâmica característica da produção do espaço intra-urbano, deixando de ser invisível na paisagem urbana brasileira. Disto decorre a criação de programas de urbanização no âmbito nacional, ensaiados desde os últimos anos do BNH, desfazendo-se uma série de mitos a respeito do morador da favela, como nos mostra Pasternak (1997), ao realizar uma retrospectiva sobre a política habitacional brasileira.
Neste sentido, alguns municípios metropolitanos tomarão a frente, buscando criar programas multi-orientados, adequados às diferentes dimensões em que se classificam as áreas de favelas: ambiental, da localização, situação fundiária, demográfica, dentre outras. Aos poucos as tentativas bem sucedidas e inovadoras, assumem o papel de “best-practice” vindo a se disseminar para outras municipalidades numa troca de saberes e experiências das mais salutares, inclusive ao nível internacional.
Sem desmerecer experiências anteriores de menor impacto, vale destacar a experiência da Prefeitura Municipal de São Paulo, entre os anos de 1989 e 1992, quando a questão da moradia tornou-se prioridade, contribuindo de modo irreversível para a formulação de políticas públicas e para o arrefecimento do debate em torno das áreas de ocupação e do acesso á terra urbana.
Apesar das restrições financeiras da época resultantes da política econômica federal, a disponibilidade orçamentária do município de São Paulo garantiu a possibilidade de avançar na criação e execução de programas integrados, reunindo a provisão habitacional à urbanização de favelas, viabilizando o mutirão e as práticas de auto-gestão, abrindo espaços ás práticas participativas e trazendo à tona questões ainda não respondidas.
Com isso, novos programas são criados em todo o Brasil, quase sempre repercutindo positivamente dada a representatividade do contingente favelado no conjunto da população urbana brasileira, como mostram alguns quadros a seguir, referentes ao déficit habitacional e aos assentamentos precários. Na esfera estadual, alguns programas também são criados, mas apenas as ações do Estado de São Paulo conseguem vingar, em função de dotação orçamentária legalmente vinculada, ainda que orientados para a construção de unidades habitacionais em padrões tipológicos arquitetônicos multi-familiares de baixa altura e alta densidade.
Favela Bairro no Rio de Janeiro, Programa de Urbanização de Favelas de Belo Horizonte, Guarapiranga em São Paulo são algumas iniciativas de grande porte realizadas nas grandes metrópoles, posteriores ao processo desenvolvido em São Paulo através da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (SEHAB) e da Superintendência de Habitação Popular de São Paulo (HABI), além de muitos outros programas de menor porte. Ressalta-se aqui que alguns desses programas, dado o seu porte, buscaram recursos externos junto aos organismos internacionais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), avistando-se nova fase na política habitacional onde a urbanização de favelas se torna foco principal.
Mesmo as gestões seguinte da Prefeitura de São Paulo (1993-1996 e 1997-2000), apesar de sua orientação política contrária, toma a decisão de prosseguir na realização de ações, dada a disponibilidade de recursos e a impossibilidade de reverter a situação. Optando por uma política uni-orientada e pautado numa estratégia que selecionava as favelas mais visíveis situadas nas principais vias municipais, o Projeto Cingapura privilegiou a verticalização e a empreiteira. Reduziu-se o tempo, aumentaram-se os custos, retirou-se o projeto social e subdividiu-se a área da intervenção, fragmentando-se as comunidades, favorecendo aqueles que estavam frontais às avenidas, criando um cenário de investimentos no setor habitacional de acordo com a velocidade da metrópole.[4]
No caso de São Paulo, o retrocesso foi visto de modo mais explícito nas ações voltadas para a urbanização de fundos de vale e para a expansão do sistema viário, quando retomou-se a remoção das áreas de ocupação localizadas nas frentes de expansão do mercado imobiliário, a partir de parcerias público-privadas. O caso do Complexo do Córrego das Águas Espraiadas no setor sudoeste de São Paulo investigado pela pesquisadora Mariana Fix em meados dos anos 1990, é exemplar.[5]
Os aspectos até aqui apresentados buscam encaminhar a discussão no sentido de apontar elementos que justifiquem a inserção privilegiada da urbanização de favelas no conteúdo programático das políticas públicos de desenvolvimento urbano e habitacional.
Diversos seriam os motivos que levaram às novas tentativas de recriar uma política nacional de habitação ampla o suficiente para atender ás diferentes demandas, como a estabilidade econômica obtida desde meados dos anos 1990, a oferta de recursos das agências mundiais de financiamento, o setor privado da construção civil, sem contar nas ações dos movimentos sociais, melhores organizados e apoiados em novos instrumentos legais paulatinamente desenvolvidos. Mesmo a visão tecnocrática do governo federal colaborou a partir da contratação de estudos sobre o déficit habitacional, assim como trabalhos técnicos que simulam e comprovam a possibilidade de investimentos no setor habitacional de interesse social e para faixas econômicas imediatamente superiores.
Dentre as oportunidades criadas, o Programa Habitar Brasil - BID, (HBB) numa parceria da Caixa Econômica Federal (CEF) junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) merece ser destacado. Neste cenário de municipalização das políticas e descentralização das ações, o diagnóstico institucional das prefeituras induziu a criação de programas que garantissem os meios para que as mesmas pudessem assumir tais responsabilidades. Diante da necessidade de recursos para a realização de projetos e obras, fazia-se necessário a formulação de políticas e planos de intervenção, condizentes com os problemas diagnosticados. Ou seja, o processo de planejamento que oportunizaria a formação de quadro institucional para as municipalidades, tornar-se-ia pré-requisito para a vinda de recursos e permitiria a definição de investimentos próprios do município no setor, em especial para aqueles municípios que se encontravam desestruturados.
Subdividido em duas partes: desenvolvimento institucional e urbanização de assentamentos subnormais, vários municípios foram contemplados com recursos do Programa HBB, garantindo a elaboração de instrumentos técnicos e normativos, assim como a aquisição de equipamentos e a contratação de recursos humanos, fortalecendo os municípios para atuarem na linha de frente da urbanização de favelas.
Presentes na paisagem urbana brasileira, a favela ganha novos contornos, permitindo novas classificações, diferenciando-se umas das outras e desfazendo-se preconceitos que homogeneizavam seus moradores. Os novos diagnósticos associados às especificidades locais contribuem para enriquecer a compreensão do problema e diversificar a visão que se possa ter do mesmo.
A aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001, e a criação do Ministério das Cidades, em 2003 trazem novos elementos para o debate. Instrumentos de regularização fundiária, mecanismos de combate à especulação imobiliária, procedimentos participativos no planejamento e na gestão da cidade legalmente constituídos passam a ser difundidos. Simultaneamente as cidades são presenteadas com um ministério específico, responsável pela formulação de uma política nacional de desenvolvimento urbano, o qual teve a compreensão de que as necessidades de desenvolvimento institucional eram pertinentes não apenas às diferentes esferas de governo, como aos demais setores envolvidos.
Campanhas de âmbito nacional são formuladas e postas em prática, trazendo novos atores para a discussão, inserindo novos palcos na cena urbana brasileira e principalmente formando um novo público. Conferências municipais de desenvolvimento urbano, processos de elaboração de planos diretores participativos, programas de regularização fundiária, tudo isso é realizado, dando-se oportunidade para que o debate seja posto. Como afirma Arlete Moisés (2004), geógrafa ativista do planejamento urbano, explicitar que somos um país desigual, que nossas cidades são fragmentadas e socialmente injustas, foi o principal ganho trazido com o Estatuto da Cidade, o qual ao ditar as regras do debate, permitiu que a favela se tornasse um problema central nos debates urbanos.
Investimentos produtivos concentrados nas cidades, induzindo a migração campo-cidade e o empobrecimento das cidades. Favelas decorrentes da pobreza urbana e da inacessibilidade à terra urbana. Depredação da natureza da cidade devido à expansão de áreas de risco. Vazios urbanos mantidos por especuladores imobiliários, velhos conhecidos. Re-investimentos públicos nas mesmas áreas beneficiando os mesmos grupos ancorados no poder Planejamento em crise, não por falta de planos, mas devido ao impedimento de processos que promovam leituras reais da cidade. Estas foram algumas repetições ouvidas pelos quatro cantos do país, acrescidas de aspectos regionais e locais.
Não mais restrita às regiões metropolitanas, o surgimento de favelas se dissemina de modo fragmentado nos espaços intra-urbanos nos espaços não metropolitanos. Com isso, caracteriza-se a interiorização do crescimento da urbanização sem desenvolvimento, definindo novas escalas e formas das desigualdades sócio-espaciais brasileiras, ás quais se exacerbam em função das históricas disparidades regionais.
Assim a urbanização, na forma como se processa, vem indicando novos rumos para o contexto brasileiro, os quais se delineiam há algumas décadas, porém ganhando novas roupagens. Milton Santos (1993), na sua obra intitulada A Urbanização Brasileira, trazia a tona questões como a dissolução da metrópole, paralelamente ao incremento maior nas franjas periféricas, se comparado aos setores mais centrais. Da mesma forma, reconhece a tendência ao crescimento de espaços não metropolitanos sob influência de cidades médias, o qual somado ao quadro de involução metropolitana, nos leva à percepção de que a urbanização passa a se disseminar, encorpando e diversificando a rede urbana, ainda que mantidas as disparidades regionais na ocupação do território.
Precariedade das condições de moradia e déficit habitacional nas metrópoles brasileiras
As realidades das grandes aglomerações urbanas, em especial as metropolitanas, têm sido abordadas, no sentido de estabelecer classificações e hierarquias atreladas às tentativas de compreender a diversidade sócio-espacial e as dinâmicas urbanas contemporâneas. O cenário dos espaços não metropolitanos, todavia, permanece sob a ótica particularizada de cada lugar, porém nutrido por estudos pormenorizados, cujo grau de detalhamento nos faz compreender a necessidade e a importância da realização de estudos paralelos, no sentido de melhor compreender a lógica destes processos, nestas diferentes escalas, antes de realizar possíveis comparações.
Merece aqui ser ressaltada a importância de estudos técnicos voltados para fornecer elementos necessários à formulação das políticas públicas, os quais vêm sendo contratados pelo Ministério das Cidades. Independente dos procedimentos metodológicos que buscam garantir resultados no tempo mínimo disponível, estas caracterizações, ainda que quantitativas, têm apontado para novas tipologias de cidades e regiões, tornando-as merecedoras do olhar acadêmico mais acurado.
Pasternak (1997) chama atenção para as mudanças de variáveis coletadas ao longo dos tempos nos Censos Demográficos, quando se trata das condições de moradia da população brasileira. Com isso, muito se perdeu da riqueza dos dados censitários obtidos de forma seqüencial, os quais permitiriam a melhor compreensão das transformações no território brasileiro, a quantificação das demandas sociais e em especial, garantiriam maior eficiência na formulação das políticas públicas.
Ainda que remontem aos dados censitários de 1991, cumpre destacar a importância dos trabalhos realizados pela Fundação João Pinheiro (FJP), voltados para a quantificação do déficit habitacional e das condições de inadequação domiciliar. Utilizando-se dados censitários demográficos, tanto para o universo, como para a amostra, esta pesquisa além de apontar a ordem de grandeza destes problemas nas diferentes realidades regionais e escalares, permite a compreensão da evolução do problema desde o final do século XX.
Mudanças no quadro de variáveis que compõem o déficit habitacional, como a depreciação dos imóveis com mais de cinqüenta anos habitados por famílias com renda inferior a três salários mínimos, levaram a que houvesse a falsa compreensão de que o mesmo tivesse diminuído. Todavia, quando se observa o déficit para as regiões metropolitanas obtido para os anos 2000 e 2005, verifica-se o crescimento tanto em números absolutos como em percentuais para a grande maioria das regiões metropolitanas, justamente onde se concentra a maioria das áreas de ocupação irregular. A redução é maior nas metrópoles que apresentavam os mais altos índices em 2000, como Belém e Fortaleza. Por sua vez, exceção feita à Belo Horizonte, cresce o déficit nas metrópoles das regiões mais desenvolvidas - Sudeste e Sul - em todas elas passando a atingir dois dígitos percentuais, aproximando-se do déficit nacional que é de quase 15% do total de domicílios.
Dentre as regiões metropolitanas que compõem o quadro seguinte, observa-se que em 2005, o déficit se apresenta maior nas metrópoles das regiões Norte e Nordeste, superando a média metropolitana e a brasileira. Destaque para Belém onde mais de um quarto das famílias se encontra em situação de déficit, assim como Recife onde pelo menos uma em cada cinco famílias integra este mesmo indicador. Chama atenção que o déficit da Região Metropolitana de São Paulo supera o total de domicílios particulares permanentes de Belém.
Tabela 1
Evolução do deficit habitacional
ESPECIFICAÇÃO |
Total de domicílios |
Déficit em 2000 |
Total de domicílios |
Déficit em 2005 |
||
total |
% |
total |
% |
|||
RM Belém |
409.187 |
115.172 |
27,7 |
519.193 |
130.459 |
25,1 |
RM Fortaleza |
700.804 |
162.243 |
22,4 |
902.098 |
156.335 |
17,3 |
RM Recife |
839.243 |
182.200 |
21,2 |
1.013.593 |
214.739 |
21,2 |
RM Salvador |
785.294 |
139.511 |
17,5 |
952.368 |
170.102 |
17,9 |
RM B.Horizonte |
1.260.944 |
155.894 |
13,3 |
1.448.864 |
174.400 |
12,0 |
RM Rio de Janeiro |
3.210.483 |
375.314 |
11,5 |
3.761.607 |
442.153 |
11,8 |
RM São Paulo |
4.931.276 |
529.202 |
10,6 |
5.803.825 |
738.334 |
12,7 |
RM Curitiba |
720.863 |
74.721 |
9,6 |
952.592 |
114.638 |
12,0 |
RM Porto Alegre |
1.073.941 |
102.025 |
9,2 |
1.315.487 |
148.721 |
11,3 |
Total das RMs |
13.932.035 |
1.836.282 |
13,0 |
16.669.627 |
2.285.462 |
13,7 |
Brasil |
44.776.750 |
7.222.645 |
16,1 |
53.052.621 |
7.902.699 |
14,9 |
Fonte: adaptado de Estudos da Fundação João Pinheiro, realizado a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para dimensionamento do déficit habitacional |
Concentrado no espaço intra-urbano, o déficit habitacional das metrópoles brasileiras contribui com a compreensão do problema habitacional, reforçando a comprovação de uma grande demanda reprimida, não atendida pela provisão habitacional, que tem partido para definir por conta própria, a solução do mesmo. Tendo como componentes, a condição precária dos materiais improvisados, a co-habitação de famílias num só imóvel e o ônus excessivo do aluguel, verifica-se que o alto percentual de famílias conviventes indica o compartilhamento da casa pelos mais pobres, como a alternativa para morar na cidade, associado à solidariedade, assim como aos vínculos familiares mais fortes que levam a que três ou mais gerações se encontrem abrigadas sob o mesmo teto.
Tabela 2
Componentes do déficit habitacional - percentuais – rms – 2005
ESPECIFICAÇÃO |
Total domicílios urbanos |
Déficit urbano absoluto |
% déficit urbano |
componentes do déficit habitacional |
||
habitação precária |
Co-habitação |
Ônus excessivo do aluguel |
||||
RM Belém |
507.500 |
129.019 |
25,4 |
3,2 |
86,3 |
10,5 |
RM Fortaleza |
876.322 |
149.728 |
17,1 |
9,8 |
66,4 |
23,8 |
RM Recife |
992.450 |
206.630 |
20,8 |
10,9 |
61,2 |
27,9 |
RM Salvador |
936.733 |
167.298 |
17,9 |
7,9 |
63,4 |
28,7 |
RM Belo Horizonte |
1.428.810 |
172.625 |
12,1 |
3,5 |
58,1 |
38,4 |
RM Rio de Janeiro |
3.735.230 |
440.801 |
11,8 |
4,7 |
59,4 |
35,9 |
RM São Paulo |
5.599.624 |
715.400 |
12,8 |
9,0 |
51,6 |
39,4 |
RM Curitiba |
870.504 |
106.439 |
12,2 |
15,1 |
60,4 |
24,5 |
RM Porto Alegre |
1.251.150 |
143.209 |
11,4 |
18,4 |
55,7 |
25,9 |
Brasil |
44.860.739 |
6.414.143 |
14,3 |
11,0 |
60,0 |
29,0 |
Total das RMs |
16.198.323 |
2.226.730 |
13,7 |
8,4 |
59,1 |
32,5 |
Fonte: adaptado de Estudos da Fundação João Pinheiro, realizado a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para dimensionamento do déficit habitacional |
Diferenças regionais também podem ser constatadas, quando se verifica que os maiores percentuais de moradias improvisadas feitas com materiais rústicos se encontram no Norte e Nordeste metropolitano, ao passo que o peso excessivo do aluguel no orçamento doméstico, torna-se mais representativo nas metrópoles do Sudeste. Destaque também para as metrópoles do Sul, onde valores culturais e práticas tradicionais fazem do uso da madeira o motivo para que tantos domicílios sejam enquadrados como precários.
Todavia, observa-se que a classificação de 11% das moradias brasileiras como improvisadas, denota a condição de sub-normalidade e insalubridade nas quais vive boa parte da população. Mais ainda a co-habitação demonstra que para muitos empobrecidos, a próxima parada na trajetória urbana poderá vir a ser a favela, visto que as despesas com o aluguel poderão representar perdas ainda maiores na qualidade de vida da família.
O quadro de inadequação da moradia também nos permite estabelecer relações entre o processo de urbanização desordenado e as condições precárias de moradia. Ainda que não se trate de um censo específico, os resultados permitem algumas constatações, convergindo o olhar para as favelas. Tendo como critérios a inadequação fundiária, a falta de instalações sanitárias no domicílio, a carência de infra-estrutura e o adensamento excessivo, verifica-se que a presença parcial de infra-estrutura, como ocorre na maioria das favelas, compromete a qualidade de vida de um em cada quatro brasileiros, sendo que metrópoles como Recife (54,7%), Belém (47,1%) e Fortaleza (37,0%) superam a média nacional. A inadequação fundiária, situação em que se dissocia a propriedade da casa da posse do terreno, característica da favela por definição, mostra-se maior em São Paulo, tanto em números absolutos, como em percentual, com quase 500 mil casas dispersas pelas franjas periféricas, margeando córregos e avançando morro acima.
As reduzidas dimensões da moradia na favela, dada a exigüidade dos terrenos, contribuem para que as ocupações apresentem altas densidades, como no caso de Belém, onde 10% dos domicílios possuem três ou mais pessoas por cômodo. Pior ainda é a situação de casas sem banheiro, característica de pequenos barracos com um só cômodo, ou mesmo da moradia precária com características rurais presentes nas metrópoles nordestinas, onde a cidade avança sobre o campo, absorvendo núcleos e localidades rurais, cujos padrões de habitabilidade remontam ao passado.
Tabela 3
Critérios de inadequação domicílios urbanos duráveis - rms – 2005
Total de Domicílios Urbanos |
Inadequação |
Domicílios |
Carência |
Adensamento |
|||||
total |
% |
total |
% |
total |
% |
total |
% |
||
RMBelém |
507.500 |
14.054 |
2,8% |
53.340 |
10,5% |
239.269 |
47,1% |
50.658 |
10,0% |
RMFortaleza |
876.322 |
67.054 |
7,7% |
25.343 |
2,9% |
324.550 |
37,0% |
45.652 |
5,2% |
RMRecife |
992.450 |
49.938 |
5,0% |
32.112 |
3,2% |
542.764 |
54,7% |
44.759 |
4,5% |
RMSalvador |
936.733 |
45.005 |
4,8% |
29.174 |
3,1% |
134.617 |
14,4% |
47.936 |
5,1% |
RMB.Horizonte |
1.428.810 |
47.442 |
3,3% |
11.960 |
0,8% |
208.324 |
14,6% |
55.549 |
3,9% |
RMRio Janeiro |
3.735.230 |
150.741 |
4,0% |
16.331 |
0,4% |
530.104 |
14,2% |
184.035 |
4,9% |
RMSão Paulo |
5.599.624 |
497.988 |
8,9% |
29.558 |
0,5% |
454.983 |
8,1% |
388.713 |
6,9% |
RMCuritiba |
870.504 |
39.645 |
4,6% |
10.416 |
1,2% |
50.452 |
5,8% |
16.024 |
1,8% |
RMPto.Alegre |
1.251.150 |
110.109 |
8,8% |
26.582 |
2,1% |
149.142 |
11,9% |
31.215 |
2,5% |
Brasil |
44.860.739 |
1.739.231 |
3,9% |
1.027.487 |
2,3% |
11.319.673 |
25,2% |
1.885.785 |
4,2% |
Total das RMs |
16.198.323 |
1.021.976 |
6,3% |
234.816 |
1,4% |
2.634.205 |
16,3% |
864.541 |
5,3% |
Fonte: adaptado de Estudos da Fundação João Pinheiro, realizado a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para dimensionamento do déficit habitacional |
Recente investigação realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), contratado pelo Ministério das Cidades, revela dificuldades na elaboração de análises sobre a temática na escala nacional referentes ao processo de favelização dada a ausência de investigações específicas sobre a temática. O grupo de autores responsáveis por esta investigação ressalta a necessidade de trabalhos de campo, a serem realizados pelas próprias prefeituras, comprovando as informações geradas. Além disso, chama-se atenção para possíveis imprecisões, devido ao fato de que o setor subnormal, com no mínimo cinqüenta domicílios, possa contribuir com a sub-estimação dos resultados, dado que as favelas menores podem estar abrigadas em setores comuns.
Tabela 4
Domicílios particulares permanentes por tipo de setor censitário – rm
Região |
Total de domicílios |
Tipo de Setor Censitário |
|||||||
Subnormal |
% |
Precário |
% |
Comum |
% |
Sem inform. |
% |
||
RM Belém |
409.187 |
130.951 |
32,0% |
73.551 |
18,0% |
203.953 |
49,8% |
732 |
0,2% |
RM Fortaleza |
700.804 |
84.609 |
12,1% |
85.796 |
12,2% |
529.655 |
75,6% |
744 |
0,1% |
RM Recife |
839.243 |
57.723 |
6,9% |
79.246 |
9,4% |
701.943 |
83,6% |
331 |
0,0% |
RM Salvador |
785.294 |
65.443 |
8,3% |
115.795 |
14,7% |
603.948 |
76,9% |
108 |
0,0% |
RM B.Horizonte |
1.260.944 |
107.212 |
8,5% |
106.879 |
8,5% |
1.046.832 |
83,0% |
21 |
0,0% |
RM Rio Janeiro |
3.210.483 |
348.716 |
10,9% |
281.814 |
8,8% |
2.577.568 |
80,3% |
2.385 |
0,1% |
RM São Paulo |
4.931.276 |
416.143 |
8,4% |
245.994 |
5,0% |
4.267.222 |
86,5% |
1.917 |
0,0% |
RM Curitiba |
720.863 |
42.854 |
5,9% |
40.322 |
5,6% |
637.681 |
88,5% |
6 |
0,0% |
RM Porto Alegre |
1.073.941 |
53.447 |
5,0% |
56.779 |
5,3% |
963.076 |
89,7% |
639 |
0,1% |
Total das RMs |
13.932.035 |
1.307.098 |
9,4% |
1.086.176 |
7,8% |
11.531.878 |
82,8% |
6883 |
0,0% |
Demais áreas |
10.432.340 |
311.738 |
3,0% |
460.074 |
4,4% |
9.652.256 |
92,5% |
8.272 |
0,1% |
Universo pesq. |
24.364.375 |
1.618.836 |
6,6% |
1.546.250 |
6,3% |
21.184.134 |
86,9% |
15.155 |
0,1% |
Fonte: adaptado de tabela elaborada por CEM/Cebrap a partir do Censo Demográfico IBGE (2000). |
Partindo do Censo Demográfico realizado pelo IBGE e fazendo uso do setor censitário especial considerado aglomerado subnormal, esta pesquisa, em seus rigorosos procedimentos metodológicos, estabelece um padrão típico de condições de vida para estes setores agrupando vinte e quatro variáveis. Por análise discriminante, este padrão contribui com a detecção de setores censitários comuns, porém com índices sócio-habitacionais e demográficos da mesma precariedade, indicando possível condição de sub-normalidade. Com isso, obtém-se uma nova dimensão da moradia precária na escala nacional, associada à irregularidade fundiária e urbanística, a qual não apenas amplia a dimensão do problema, como se aproxima da real quantificação do fenômeno.
Além de demonstrar a maior concentração do problema na metrópole, observa-se um aumento expressivo dos números da pobreza urbana atrelada à condição de moradia para os casos analisados. Destaque negativo para as metrópoles do Norte e do Nordeste, em especial para Belém que ao reunir a sub-normalidade à precariedade, resulta na metade do total de domicílios. Nos casos de Salvador e Fortaleza tem-se que uma em cada quatro moradias sobrevive na situação de pobreza urbana, diferente das metrópoles do Sul, Curitiba e Porto Alegre, com menos de 10% do total de domicílios em condições similares. Ainda para o caso de Salvador, em termos relativos, quando somados precários e subnormais, chega-se quase a triplicar os números da pobreza habitacional. Por sua vez, o Rio de Janeiro quase atinge 20% das famílias, superando Recife, Belo Horizonte e São Paulo.
Ainda que esses números sejam específicos para as regiões metropolitanos, percebe-se na análise para cada município incluído no universo desta pesquisa, que aqueles que não apresentavam setores especiais subnormais, passam a apresentar setores precários, o que faz da precariedade habitacional um problema das cidades brasileiras nas suas diferentes dimensões, configurando-se um quadro de empobrecimento que se generaliza, à medida que os deslocamentos demográficos, nas suas diferentes escalas e origens, findam por ter na cidade o seu destino.
Particularidades da Questão Habitacional na Região Metropolitana de Fortaleza
Longe de pretender esgotar o tema, mas no sentido de ilustrar as transformações institucionais e programáticas no âmbito da habitação de interesse social, pretende-se aqui apresentar e discutir alguns processos que fazem da cidade de Fortaleza e sua região metropolitana, um caso representativo da realidade brasileira associada à temática habitacional.
Fortaleza, quarto município em população no Brasil, com 2,5 milhões de habitantes faz parte de região metropolitana que se destaca como uma das mais desiguais nos estudos que tratam de pobreza e vulnerabilidades sociais. Seu processo de crescimento, notadamente macrocefálico, associa-se principalmente à vastidão de sua área de influência, onde as condições climáticas e fundiárias favorecem os permanentes fluxos migratórios. Além disso, a concentração de investimentos na capital do Estado do Ceará e sua condição de ponto de convergência do sistema viário regional contribuem para que a região metropolitana cresça de modo mais acelerado em relação ao restante do Estado.
Seu processo de favelização é histórico, remanescendo na malha urbana da cidade, mesmo em bairros próximos ao centro e à beira mar, lugar turístico e de alto valor imobiliário. Como fragmentos de tecido urbano caracterizam-se pela pequena dimensão dos lotes, pelos caminhos tortuosos e pela intensa ocupação do solo. Na segunda metade do século XX, o crescimento é dos mais intensos, comprometendo de forma predatória os recursos naturais, cuja fragilidade como de rios temporários, riachos, lagoas, dunas e mangues, leva à irreversibilidade dos processos de degradação ambiental.
Dentre os agentes desta ocupação perversa, os grupos mais pobres na busca de um lugar para morar, excluídos do mercado imobiliário e pouco atendidos pelas políticas públicas, se colocam como expoentes. Somam-se aos grupos excluídos, os proprietários de terra, verdadeiros latifundiários urbanos, e ao próprio estado, nas suas diferentes esferas, que tem se mostrado ausente, na efetivação de processos de planejamento e no controle urbano, e insuficiente na provisão de infra-estrutura e de habitações de interesse social.
Tratando-se especificamente da questão habitacional, Fortaleza apresenta situação exemplar da realidade brasileira em termos institucionais. Por décadas, a questão da moradia permanece alocada em departamento de serviço social funcionando de modo assistencialista, desvinculado do setor de obras, infra-estrutura e planejamento urbano. Ao mesmo tempo, o governo estadual, instância superior, conduzia através da COHAB-CE, ações associadas ao BNH, principalmente conjuntos habitacionais periféricos que vieram a induzir o crescimento desordenado da cidade, favorecendo a conurbação e a conformação de bairros dormitório. Observa-se que a população atendida por estes programas não representava os grupos menos favorecidos, havendo setor específico para o atendimento às favelas no próprio governo do Estado, onde as relações clientelistas se mantinham, porém com escassos resultados.
Simultaneamente, a pobreza prossegue num ritmo de crescimento acelerado. Se a década de 1970 foi marcada pela disseminação das ocupações, a década de 1980, representa o período da expansão horizontal, atingindo-se os limites do consentido, preparando-se as bases para o inicio de sua auto-verticalização. Distribuídas pelos quatro cantos, desde a década de 1990, as áreas de ocupação avançam em direção às áreas mais frágeis, inclusive transpondo os limites político-administrativos, no contra-fluxo dos rios urbanos, seguindo os cordões de dunas, aterrando lagoas.
Tomada como bandeira por lideranças de bairro e políticos de esquerda, a questão da moradia, serviu de elemento catalisador dos movimentos sociais de forma diferenciada, na luta pelo direito à moradia e à cidade. A extinção do BNH e posteriormente da COHAB, bem como a incipiente situação institucional do município neste setor, contribuem para que os movimentos se fortaleçam, elegendo representantes no legislativo em suas diferentes esferas, fazendo também emergir organizações não governamentais especializadas na questão da moradia e do planejamento urbano.
Desde o inicio da década de 1990, a COHAB-CE já vinha desenvolvendo programa de urbanização de favelas com recursos da CEF, porém de forma pontual, concentrado em setores estratégicos da cidade, que se preparava para assumir sua condição de destino turístico.[6] Dentre as contribuições da COHAB para a questão da áreas de ocupação, merece destaque o ainda vigente Cadastro de Favelas de Fortaleza, feito em 1991, quando foram pesquisados e mapeados os 314 assentamentos favelados de Fortaleza, onde viviam mais de 108 mil famílias. Percebendo-se que uma em cada três famílias de Fortaleza estaria vivendo em ocupações irregulares, ao invés de reunir esforços para ações conjuntas, houve o afastamento entre as instâncias de governo que lidavam com este setor, caindo no esquecimento os resultados desta investigação, a qual permanece como única fonte de dados oficiais em uso somente na academia.
Extinta em 1999, a COHAB em sua missão transferida para pequeno departamento ligado ao setor de infra-estrutura, não mais voltando à atuação na provisão de moradia, mantendo-se timidamente à frente de projetos de urbanização de favelas vinculadas às grandes intervenções urbanas que o estado vinha fazendo na cidade.
Em Fortaleza, a situação institucional se mantinha precária e desgovernada. Com ações em diversas secretarias, a questão da moradia era tratada de forma incipiente, fragmentada e acéfala, como o próprio planejamento urbano, ficando estas temáticas sempre a mercê de consultorias e terceirizações que em nada contribuíam para o desenvolvimento institucional.
Por outro lado, a oportunidade trazida com o Programa HBB, o qual escolhe Fortaleza como um dos municípios a ser contemplado, faz com que a prefeitura busque se aprimorar, ainda que visando claramente os recursos para obras. Fato é que os recursos destinados para desenvolvimento institucional remanesceram sem utilização por cinco anos, demonstrando que a vontade política de enfrentamento do problema habitacional não existia da parte do grupo a frente do poder municipal por quatro mandatos (1988-2004).
Destinado à busca de soluções para as diferentes formas de moradia precária, bem como para suprir a demanda apontada pelo déficit habitacional, no caso de Fortaleza, o programa teve orientação específica para a questão das áreas de risco, alvo maior das pressões dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada. Destaca-se aqui uma intervenção em área de risco realizada por um grupo de Organizações não Governamentais (ONGs), com recursos da igreja, a qual visava apresentar o problema e propor soluções, culminando com a construção de mais de 200 unidades habitacionais, equipamentos sociais, além de ações de fortalecimento comunitário.
Como um verdadeiro golpe de mestre, o poder local ao priorizar as áreas de risco, reduzia seu alvo de intervenção, diminuindo o problema e afastando-se da necessidade imediata de elaborar cadastro de áreas de ocupação irregular, conforme solicitava o programa HBB.
Aproveitando-se de dossiê elaborado por ONGs referente à omissão do poder público na questão das áreas de risco, assim como de pesquisa de campo para conhecimento da realidade sócio-econômica, a Comissão Municipal de Habitação (COMHAB), através de seu diminuto corpo técnico, realiza ações que conseguem manter em andamento o convênio celebrado entre a Prefeitura e a CEF, viabilizando inclusive a vinda de recursos para realização de projetos e obras de urbanização de assentamentos subnormais. Quando dados extra-oficiais indicavam mais de 600 áreas de favela em Fortaleza, abrigando mais de 150 mil famílias em 2002, a prefeitura diminui a magnitude do problema para 79 áreas e um total de 9.500 famílias vivendo em áreas de risco.[7] Para que se tenha uma compreensão da velocidade com que a favelização vem se expandindo, passados cinco anos, já são mais de 120 áreas de risco, habitadas por mais de 20 mil famílias.[8]
Apesar de plano de intervenção elaborado como parte do programa, onde as 79 áreas foram hierarquizadas segundo diversos critérios, optou-se por área classificada em nona posição, situada às margens de lagoa próxima ao aeroporto. Reproduzindo modelo de re-assentamento de toda a comunidade em situação de risco, mais de 500 unidades são construídas, oferecendo-se a opção da indenização, sendo outras centenas de famílias beneficiadas com infra-estrutura e urbanização. Entretanto, parte das unidades, acaba cedida às demandas de áreas diversas, associadas às indicações de políticos e coronéis urbanos.
Além do re-assentamento nas proximidades, o projeto traz como novidades a definição de cômodo para uso comercial na tipologia, a diferenciação de casas pelo número de dormitórios, a exigüidade dos espaços comuns, evitando-se gastos condominiais. Todavia, algumas referências de projetos habitacionais de baixa qualidade são mantidas, como as dimensões reduzidas dos compartimentos, a precariedade dos acabamentos, a densidade excessiva, a indefinição de desenho e tratamento dos espaços livres, a forma segregada do assentamento em relação ao entorno, dentre outros, que associados à morosidade no início do trabalho social junto à comunidade, levam a que seja rápida a deterioração das unidades.
A situação de descaso institucional tornou-se pouco a pouco insustentável, não pelo crescimento do problema, mas pelas pressões realizadas pela sociedade civil organizada, as quais se apoiaram nos ditames do Estatuto da Cidade, tirando partido do debate urbano recente. Ainda que tenha havido em 2004 a criação da Fundação da Habitação Social de Fortaleza – HABITAFOR, a abertura de diversos programas habitacionais pelo governo federal não foi suficiente para atrair a prefeitura de Fortaleza, que se manteve resistente às ações iniciais, principalmente por incluir processos participativos e por inserir na pauta os processos de regularização fundiária.
Entretanto, novas eleições trouxeram mudanças na orientação política municipal, convertidas em esperança de melhores tempos para a política habitacional de interesse social. Ampliação e renovação dos quadros funcionais, melhorias das condições de trabalho, estratégias de captação de recursos de fontes diversas, oportunidade para experimentação de projetos alternativos, abertura para discussão junto aos movimentos e às comunidades atendidas sobre a política e a definição de novas demandas, formulação de programa específico de regularização fundiária, construção de banco de dados com cadastros de áreas precárias e famílias atendidas, elaboração de normas específicas, todas essas medidas são postas como intenções, sendo aos poucos deixadas de lado em função de dificuldades diversas, sejam elas burocráticas, técnicas e em especial políticas.
Resgate de recursos para o desenvolvimento institucional, reabilitação do centro para fins residenciais, regularização fundiária de conjuntos habitacionais foram ações positivas postas em andamento. Todavia, alguns problemas são rapidamente detectados. A ausência de processo de planejamento associada à dispersão das ações por diversas secretarias e à corrida desenfreada pela captação de recursos, os quais eram confirmados ainda que para projetos deficientes; a construção da governabilidade através de coalizões políticas impedindo avanços na gestão participativa; lentidão nos processos e retrocessos técnicos; falta de diálogos inter-setoriais e dissociação da política habitacional junto à política urbana, fazem com que a favelização aumente a sua intensidade, levando vantagem em relação às respostas oferecidas pelas políticas públicas.
Ampliam-se as frentes de projeto e obra na cidade através da HABITAFOR, porém mantém-se o atendimento majoritário e específico às áreas de risco, fazendo-se uso de poucas tipologias, permanecendo também a falta de diálogo entre os trabalhos físico e social. Com ênfase em áreas de risco, os programas de urbanização de favelas orientados na redução dos casos de remoção, no ordenamento viário e no saneamento ambiental são pouco utilizados, ainda que os custos sejam menores. Oportunidades de produção de casas com recursos dos programas governamentais findam por ser apropriadas para grupos com faixas salariais superiores à demanda de interesse social, os quais encontram-se em condições de pagamento via programa de arrendamento residencial da CEF.
Sem a construção dos bancos de dados e cadastros, permanece a cidade sem a real compreensão da dimensão do problema das áreas de ocupação, o que também inviabiliza a formulação de planos de intervenção efetivos e sustentáveis. Contribui com essa situação a abertura de oportunidades com os novos programas criados pelo Ministério das Cidades, fazendo da pressa inimiga da perfeição, onde as demandas são sub-estimadas, os orçamentos não são revisados, as propostas são elaboradas sem discussão com os envolvidos.
Reitera-se que o caso referente a Fortaleza, traz consigo especificidades locais, porém aponta para indícios de processos que se repetem em outras cidades brasileiras, onde a questão da moradia remanesce sem a devida atenção em termos de políticas públicas. Carências básicas, como processos de planejamento apoiados em princípios norteadores, procedimentos metodológicos de projeto voltados para acelerar o desenvolvimento e execução de soluções, normativas que estabeleçam limites aos diferentes atores envolvidos, transparência na coleta, sistematização e difusão dos dados obtidos, seriam algumas recomendações de cunho científico que poderiam estar facilitando as práticas e promovendo melhores alternativas de resposta aos problemas aqui apontados.
Considerações finais
Historicamente marcado pela desigualdade exacerbada de seu desenvolvimento, o Brasil apresenta problemas na contemporaneidade, cujas origens se associam fatores diversos, tais como a descontinuidade das políticas públicas, reforçando as intensas disparidades regionais; a desvalorização dos processos de planejamento urbano, decorrendo na fragmentação do espaço intra-urbano, na disseminação de processos de degradação social, bem como trazendo impedimentos a que grupos sociais diversos não encontrem arenas para discutir problemas comuns, onde atuam com diferentes papéis.
Diante da incipiência das políticas públicas habitacionais voltadas para as crescentes áreas de ocupação, o processo de favelização passa a se expandir em situação de risco ambiental nas regiões metropolitanas, avançando em direção às periferias. Rapidamente estes processos também passam a tomar parte do cotidiano de cidades de porte médio, centros regionais e mesmo de pequenas cidades brasileiras, corroborando com Mike Davis (2006) que utiliza o termo favela como adjetivo para o planeta Terra, tamanha a intensidade deste processo, que traz impactos negativos e corrói as condições de vida das populações urbanas nos países mais pobres.
Algumas tendências são apontadas em função da análise dos resultados obtidos: o predomínio das comunidades de áreas de risco como alvo maior das ações do poder público local no âmbito da provisão da moradia; a utilização de instrumentos urbanísticos voltados para flexibilizar os índices urbanísticos, permitindo assim a regularização fundiária; a expansão da cidade espontânea auto-construída, intensificando suas taxas de ocupação; a ampliação da atuação do mercado imobiliário formal na produção habitacional para camadas imediatamente superiores àquelas atendidas pelas políticas públicas; o fortalecimento dos espaços da segregação residencial como elementos estruturantes do espaço intra-urbano, os quais tendem a se apropriar de novos investimentos em infra-estruturas e serviços urbanos.
Notas
[*] Pós-doutorando em sociologia urbana na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) junto ao Núcleo de Pesquisa Observatório das Metrópoles (CNPq)
[1] Dentre estes estudos, destacam-se alguns textos produzidos por Suzana Pasternak, presentes na bibliografia, onde de maneira sintética tem-se a apreensão do processo histórico brasileiro a partir das políticas habitacionais em suas transformações e mudanças.
[2] Resultado de tese de doutoramento de Nabil Bonduki junto à FAUUSP, o livro Origens da Habitação Social Brasileira (1998) representa obra de referência para estudos sobre a produção habitacional no período anterior ao Banco Nacional de Habitação.
[3] O caso da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, CDHU, do Estado de São Paulo é exceção à regra em função da aprovação de projeto de lei estadual em 1990, através do qual, 1% do ICMS no estado de São Paulo estaria voltado para o setor habitacional de interesse social.
[4] Estudo comparativo entre as políticas de urbanização de favela no município de São Paulo no período de 1983 a 1994 realizado por Renato Pequeno, como dissertação de mestrado em Planejamento de Infra-estruturas abordou estudo de caso na favela Jardim Autódromo, uma das áreas atendidas durante quatro gestões municipais, com diretrizes e ações diversas.
[5] O livro Parceiros da Exclusão de Mariana Fix (2001), apresenta de forma detalhada o processo de expulsão branca das famílias de comunidades situadas em áreas alvo de investimentos imobiliários. Esta pesquisa desenvolvida como trabalho de graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, prosseguiu como dissertação de mestrado na FFLCH-USP, com foco na produção do espaço urbano associada ao capital financeiro em São Paulo.
[6] Pesquisa desenvolvida pelo Labhab/FINEP (1998-99), sob a coordenação das professoras Ermínia Maricato e Laura Bueno denominada parâmetros técnicos para urbanização de favelas, abordando diferentes programas de urbanização de favela, dentre os quais o Pro-Moradia da COHAB-CE, tendo estudo de caso a favela do Castelo Encantado, em Fortaleza.
[7] Informações obtidas junto a relatórios técnicos desenvolvidos pela COMHAB - Comissão Municipal de Habitação da Prefeitura Municipal de Fortaleza em 2001, como parte do programa Habitar Brasil BID.
[8] Dados obtidos junto á Defesa Civil da Prefeitura Municipal de Fortaleza.
Referências Bibliográficas
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Referencia bibliográfica:
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