Número 23 - Septiembre 2011

Versión PDFArtículo

A posição do ser humano no mundo e a Land Ethic

Fábio Valenti Possamai
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).


Resumo

Este trabalho tem por finalidade demonstrar como a Land Ethic, corrente da ética ambiental surgida com Aldo Leopold, propõe uma mudança no modo como o ser humano se posiciona em relação ao mundo e a tudo que for não-humano. Além disso, visamos discutir a crise ambiental contemporânea, expor suas origens e demonstrar que uma de suas principais causas é justamente a posição que o ser humano ocupa em relação ao mundo (de superioridade ético-ontológica). Veremos que suas raízes estão profundamente conectadas ao pensamento ocidental, especialmente às ideias de Francis Bacon, René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton. Parte-se, para a consecução deste projeto, do pressuposto que a ética seria o ponto de partida para a resolução da crise ambiental. O ser humano conseguiu, especialmente a partir do século XVI, interferir e transformar a natureza em uma escala nunca antes vista, e tal ação causou um importante desequilíbrio no ecossistema terrestre. O atual paradigma que vivemos é extremamente antropocentrista e trouxe como consequência um projeto de dominação da natureza por parte do ser humano e que foi realizado por meio da técnica. Por meio das ideias de David Hume e Charles Darwin, Aldo Leopold postulou, com a Land Ethic, uma mudança de ênfase ética, do indivíduo à comunidade – o ser humano passaria a ser um membro, dentre tantos outros, da comunidade biótica. Portanto, a mudança na posição do ser humano no mundo, proposta pela Land Ethic, seria uma “virada ética” necessária no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: land ethic; ser humano; ambiente; antropocentrismo.


Abstract

This work aims to demonstrate how the Land Ethic, a ramification of the environmental ethics conceived by Aldo Leopold, proposes a change in the way human beings position themselves in relation to the world and everything that is non-human. Furthermore, we want to discuss the contemporary environmental crisis, expose its origins and demonstrate that one of its main causes is the position that human beings have occupied toward the world (a position of ethical and ontological superiority). We will see that its roots are profoundly connected to the western thought, especially to Francis Bacon, René Descartes, Galileu Galilei and Isaac Newton ideas. To achieve our goal we consider that ethics are the starting point to the environmental crisis resolution. Human beings have achieved, especially after the XVI century, an incredible level of interference and transformation over nature, and that action has caused an important instability in the global ecosystem. The paradigm upon which we live in today is extremely anthropocentric and brought with it a project of domination by the human being over the environment realized through technic. Using the ideas of David Hume and Charles Darwin, Aldo Leopold postulated, with the Land Ethic, a change in our ethical emphasis, from the individual to the community – human beings would be, then, a plain member, one among many others, of the biotic community. Therefore, a change in the human being position in the world, proposed by the Land Ethic, would be a necessary “ethical turning point” in the contemporary world.

Key words: land ethic; human being; environment; anthropocentrism.


A posição do ser humano no mundo e a Land Ethic

Atualmente, existem uma série de debates envolvendo a ética ambiental, e um de nossos principais objetivos é o de evitar a extrema polarização que vem acontecendo quando se trata desse assunto. Nos dias de hoje, ela se configura da seguinte forma: de um lado, temos os antropocentristas (os “humanistas morais”[1]); de outro, os abolicionistas animais (os “moralistas humanos[2]”). Mas gostaríamos de chamar a atenção para uma alternativa a essa dicotomia, uma espécie de “terceira via” – a de uma visão de mundo mais ecocêntrica.

Aldo Leopold foi um dos precursores de uma nova forma de perceber e organizar cognitivamente o mundo natural, baseado em sua extensiva experiência de campo – ele foi guarda florestal durante muitos anos. Além disso, Leopold percebeu que seus valores foram mudando à medida que seu entendimento ecológico ia se aprofundando e, com isso, sugeria que a ecologia possuía também preceitos éticos. Tal corrente de pensamento foi chamada de land ethic[3]. As duas características mais revolucionárias presentes nela eram: 1) a mudança de ênfase da parte para o todo, do indivíduo para a comunidade; 2) a mudança de ênfase do ser humano para a natureza, do antropocentrismo para o ecocentrismo[4]. Por causa dessa proposta, esse é um dos grandes problemas que este tipo de visão enfrenta, qual seja, o da tradição extremamente arraigada do pensamento moral ocidental – antropocêntrico e reducionista. Tanto é assim que a ética ambiental ainda não possui uma definição convencional e largamente aceita em glossários de terminologia filosófica.

Ao analisarmos a filosofia moral moderna, podemos encontrar nos pensamentos de Kant e Bentham verdadeiros “mananciais teóricos”. Bentham, o fundador do utilitarismo, é a inspiração (e fonte básica) tanto para as éticas ambientais antropocêntricas quanto para as éticas ambientais extensionistas[5]. Por sua vez, a land ethic de Aldo Leopold é fortemente baseada na história natural, na evolução biológica e na ecologia. Seu antecedente mais visível é a construção da moralidade que Charles Darwin realizou no livro The Descent of Man. Tal sistema moral é bastante pertinente para uma orientação biologicamente mais ampla, ou seja, em direção a uma ética ecocêntrica. Isso é uma consequência imediata, já que esse sistema possui fortes bases biológicas e está sustentado por um entendimento ecológico e evolutivo da posição do ser humano em relação ao mundo.

A tradição ocidental concernente aos sistemas éticos ainda não chegou ao ponto de atribuir um valor moral aos seres não-humanos. Animais, plantas, os solos e as águas, os quais Aldo Leopold inclui em sua comunidade ética, tradicionalmente não são considerados como possuidores de valor moral, da mesma forma que não possuem direitos e não são respeitados, em um gritante contraste com os seres humanos – cujos direitos e interesses devem ser igualmente levados em conta para que nossas ações possam ser consideradas como moralmente válidas.

Uma característica inovadora e fundamental na ética de Aldo Leopold é justamente a extensão da consideração ética, fazendo uma passagem direta das pessoas às entidades naturais não-humanas. Segundo Leopold, sua land ethic “muda o papel do Homo sapiens de conquistador da comunidade terrestre para um simples membro e cidadão desta comunidade”[6]. Ela deve ser encarada como uma possibilidade evolucionária cultural, o próximo estágio em nosso desenvolvimento ético. Entretanto, para Leopold, esse avanço deve ser muito mais ousado do que apenas uma extensão, inclusive daquela apregoada pelos abolicionistas animais, pois a land ethic expande os limites da comunidade moral para incluir os solos, as águas, e as plantas, da mesma forma que os animais. O movimento que pretende que os animais assumam o mesmo status moral que os seres humanos seria, portanto, apenas um degrau na escala da “evolução moral” pela qual devemos passar. Hoje, os animais, amanhã, tudo o que for não-humano.

A resposta ortodoxa do “humanismo ético” à sugestão de que os animais não-humanos devem ser moralmente considerados versa que somente os humanos são racionais e capazes de possuir interesses, ou autoconsciência, ou capacidades linguísticas, ou de representar o futuro. Isso, segundo Peter Singer, é o que chamamos de especismo, um preconceito filosófico contra tudo o que for não-humano – e é justamente isso que os moralistas humanos rebatem. Eles insistem em um critério para consideração moral baseado na senciência. Se determinados animais são capazes de sofrer, logo, eles devem ser considerados como sujeitos morais – exatamente como nós seres humanos. Seja como for, tal escolha é extremamente arbitrária. Por que somente seres racionais, ou que possuem linguagem, ou que sofrem (e assim por diante) são considerados aptos moralmente? Não é o mesmo que considerar somente os brancos, ou os arianos, ou quaisquer outros povos, como “legítimos seres humanos possuidores de alma”? A questão aqui é que, segundo Callicott, tanto os moralistas humanos, quanto os humanistas morais, fazem uma nítida distinção entre os seres que merecem consideração moral e os que não a merecem. Seja como for, ambos incorrem no mesmo erro – os humanistas morais apenas erram “um pouco menos”, mas o princípio antropocêntrico é o mesmo. Eles se equivocam ao “humanizar os animais”, e desconsiderar o restante da comunidade biótica.

Afinal, que tipo de teoria moral poderia afirmar que tanto animais, quanto plantas, solos e águas, são passíveis de estarem na mesma classe que os seres humanos em relação à consideração ética? Aldo Leopold oferece uma declaração concisa, que pode ser considerada como uma espécie de “pedra de toque” da land ethic: “Uma coisa é correta quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. É errada quando tende ao contrário”[7]. O que está por trás dessa afirmação é que o bem da comunidade biótica é a medida última do valor moral, e o que torna nossas ações boas ou ruins.

Seja como for, o espectro da falácia naturalista ronda qualquer tentativa de descobrirmos valores em fatos, entretanto, não obstante sua existência, a qual é essencialmente um problema para a ética formal, parece haver uma forte tendência a uma conexão psicológica entre a maneira como o mundo é imaginado ou concebido e que estado de coisas é tido como bom ou ruim, que tipos de comportamentos são corretos ou incorretos, e que responsabilidades e obrigações nós, como agentes morais, conhecemos. A Ecologia permitiu apreendermos um ecossistema como uma unidade articulada. Corpos orgânicos possuem partes articuladas e discerníveis (membros, órgãos, células), entretanto, graças ao caráter de relações em rede entre essas partes, elas formam uma espécie de “todo de segunda ordem”. A terra (ambiente) é vista, então, como um sistema unificado de partes relacionadas. Poderíamos inclusive afirmar que, muitas vezes, uma certa dose de sacrifício e disciplina são necessárias à manutenção da integridade social.

A sociedade, da mesma forma, é particularmente vulnerável à desintegração quando seus membros se preocupam mais com seus próprios interesses e ignoram os da comunidade como um todo. Tal é o caso de uma ética ambiental holística versus uma reducionista. Não pode haver uma simples redução, já que uma sociedade é constituída por seus membros, um corpo orgânico por suas células, e um ecossistema pelas plantas, animais, minerais, fluidos e gases que o compõem.

Em relação à land ethic podem surgir algumas objeções que postulem que ela, em última instância, é baseada em interesses humanos, e não naqueles de entidades não-humanas. Este é um assunto extremamente controverso e, parece-nos, talvez não exista valor independente de um avaliador. Portanto, o valor que é atribuído a um ecossistema é humanamente dependente ou, pelo menos, dependente de uma consciência esteticamente e moralmente sensível. É particularmente difícil de separar esses dois tipos de valores, quais sejam, um de significância moral, o outro meramente egoísta. Aldo Leopold insiste em um valor não-instrumental para a comunidade biótica e, como consequência, para seus constituintes. Em sua visão, a land ethic “cria obrigações acima e além do interesse próprio, às quais não têm sentido sem uma consciência, e que o problema que enfrentamos é justamente o da extensão de nossa consciência social das pessoas para a terra”.[8]

A ética ambiental de Leopold está baseada, em sua quase totalidade, nas seguintes afirmações: 1) Toda a ética baseia-se em uma única premissa, a saber, que o indivíduo é membro de uma comunidade formada por partes interdependentes; 2) Uma ética, do ponto de vista ecológico, é uma limitação da liberdade de ação na luta pela sobrevivência. Logo, uma ética, do ponto de vista filosófico, é uma diferenciação entre uma conduta social e uma conduta antissocial. Estas são duas definições de uma mesma coisa. A questão tem sua origem na tendência que indivíduos interdependentes, ou grupos, possuem de desenvolver modos mútuos de cooperação. O que Leopold quer dizer é que há uma conexão muito íntima entre a cooperação entre indivíduos dentro dos grupos e a ética – onde o termo designa a existência de sistemas voluntários de controle ou inibição comportamental. Em outras palavras, se um indivíduo é membro de um grupo cooperativo, comunidade ou sociedade, então ele está sujeito a limitações ético-morais na sua liberdade de ação.

Este princípio encontra fundamento nos argumentos de Charles Darwin expressos em seu livro The Descent of Man. Segundo o naturalista inglês, a ética e outros sistemas de restrição moral evoluíram através do processo de seleção natural. Em resumo, a vantagem adaptativa ganha ao ser membro de uma comunidade é maior do que a perda que tal associação traz por meio desse controle moral. Um animal social está, na maioria dos casos, melhor adaptado do que um animal solitário – e se tal animal for um mamífero, particularmente da espécie Homo sapiens, então estar sujeito a limitações morais é o preço que se paga por ser parte de uma sociedade – sem a qual ele não sobreviveria.

Para Leopold, “a land ethic expande os limites da comunidade para incluir os solos, as águas, as plantas e os animais, ou coletivamente, a terra”[9]. Como podemos perceber, a land ethic engloba em nossa comunidade as entidades não-humanas que fazem parte da biosfera – o centro, antes apenas no homem, passa agora a estar em toda a comunidade biótica. Portanto, se um indivíduo é membro de uma comunidade ambiental, ele estará sujeito, da mesma forma, a uma ética ambiental. A principal questão levantada por Leopold aqui reside nos seguintes pontos: 1) somos membros de uma comunidade humana; 2) somos também membros de uma comunidade biótica, terrestre e ecológica; 3) logo, devemos assumir limitações ambientais éticas em relação à nossa conduta. Para que tal ética pudesse ser efetivada, necessitaríamos de uma “cláusula moral restritiva”.

Vemos atualmente que o uso da terra ainda é, quase em sua totalidade, governado pelo interesse econômico individual – entretanto, obrigações sem consciência não têm sentido, e o problema que enfrentamos é a expansão dessa consciência, partindo das pessoas e indo em direção a tudo que for não-humano. Nenhuma mudança significativa até hoje se deu sem uma mudança em nossa ênfase intelectual, em nossos afetos e convicções. Para Leopold “é inconcebível para mim que uma relação ética com a terra possa existir sem amor, respeito, e admiração pela terra, e claro, tudo isso estimado com muito valor. Por valor, obviamente me refiro... ao valor em um sentido filosófico”[10]. Esta seria uma maneira eficiente de restaurar a harmonia entre o ser humano e a comunidade biótica, a qual, ao fim e ao cabo, aquele pertence. Contudo, com poucas exceções, a land ethic não tem sido muito bem recebida no meio filosófico contemporâneo. Ela tem sido muitas vezes apenas mencionada en passant, como se fosse uma nobre súplica moral, porém um tanto quanto ingênua – como se não possuísse um suporte teórico adequado, ou seja, como se prescindisse de princípios fundacionais e premissas que levariam, com segurança e “certeza”, a preceitos éticos.

A land ethic, portanto, não é apenas uma necessidade ecológica, mas uma possibilidade evolutiva, pois uma resposta moral ao ambiente natural seria automaticamente desencadeada nos seres humanos pela representação ecológica e social da natureza[11]. A land ethic apoia-se em três pilares fundamentais: (1) biologia evolutiva; (2) ecologia evolutiva; (3) ambos fazendo o papel de uma revolução copernicana e o que ela representou para a astronomia. A teoria da evolução nos oferece um elo conceitual entre a ética e entre o desenvolvimento e organização sociais. Ela cria em nós um senso de parentesco com os outros seres, um companheirismo nessa odisséia da evolução – estabelece uma ligação entre seres humanos e não-humanos. Já a teoria ecológica fornece uma noção de integração social entre a natureza humana e a não-humana – todos seríamos membros desse grande “clube” chamado comunidade biótica.

Poderíamos nos perguntar agora se a land ethic seria uma ética deontológica ou se ela seria baseada em princípios prudenciais. Leopold diria que ambas as respostas estariam corretas. De um ponto de vista interno, de um membro de uma comunidade com sentimentos morais, ela seria deontológica – envolve amor, respeito, admiração, obrigação, autossacrifício, consciência, dever e a aceitação de valores bióticos intrínsecos. De um ponto de vista externo, mais analítico e científico, ela seria prudencial – pois não haveria outra maneira da terra manter seu equilíbrio frente ao impacto produzido pelo homem mecanizado, nem, consequentemente, do próprio homem mecanizado sobreviver ao seu impacto sobre a superfície terrestre.

A concepção de ética de Aldo Leopold deve muito à teoria biológica desenvolvida por Darwin, mas o que aparentemente passa despercebido é que o próprio Darwin deve algum crédito a David Hume, o qual postulava que o comportamento ético depende de – e é motivado por – “sentimentos morais”. Tais sentimentos (simpatia, benevolência, afeto, generosidade), segundo Darwin, coevoluíram com o desenvolvimento das sociedades proto-humanas. Logo, ao passo que Leopold segue o caminho trilhado por Darwin na explicação da origem de nosso comportamento ético, ele segue, indiretamente, os passos que primeiramente foram dados por David Hume em sua teoria dos fundamentos da moral.

Ainda de acordo com Hume, a razão – de um ponto de vista estritamente filosófico – influencia nossa conduta de duas maneiras: ou estimula em nós uma paixão, ao informar da existência de algo que pode ser um objeto dela; ou quando descobre a conexão entre causa e efeito, fornecendo os meios para que nós exerçamos uma paixão. Ambas as influências são muito importantes para nossa discussão, pois nos ajudarão na defesa metaética da relação entre ciência ambiental e ecologia para com a ética ambiental. Poderíamos construir o seguinte argumento envolvendo a relação entre essas duas ciências: (1) As ciências biológicas, incluindo a ecologia, revelaram (a) que a natureza orgânica é sistemicamente integrada, (b) que a humanidade é um membro não-privilegiado de um continuum orgânico, e (c) que os abusos ambientais ameaçam a vida, a saúde, e a felicidade humanas; (2) nós seres humanos compartilhamos um interesse comum pela vida, saúde, e felicidade; (3) portanto, nós não devemos violar a integridade e a estabilidade do ambiente natural através do acúmulo de dejetos tóxicos, da destruição da natureza, ou pela extinção de espécies (ou qualquer outro tipo de “abuso”), cuja existência é fundamental para a manutenção de tal equilíbrio.

Contudo, se Hume estiver correto, a ecologia e as ciências ambientais – e consequentemente, a ética ambiental – podem mudar diretamente nossos valores, o que nós valoramos e como o fazemos. Elas não alterarão nossas capacidades morais de discriminação e resposta, da mesma forma que nossos sentimentos humanos e paixões (essas mudanças, se ocorrerem, dar-se-ão ao longo do tempo, via processos evolutivos, quais sejam, variação randômica, seleção natural e assim por diante). A ecologia, por sua vez, altera nossos valores através de uma mudança em nossa concepção de mundo e de nossa relação com ele. Ela revela novas relações entre objetos que, uma vez ocorridas, alterarão nossos defasados centros de sentimentos morais.

A descrição que Aldo Leopold faz da ética como uma limitação na liberdade de ação na luta pela sobrevivência coloca de imediato a ética em um contexto darwiniano. Uma ética, segundo Leopold, tem sua origem na tendência de grupos ou indivíduos interdependentes desenvolverem (e evoluírem) diferentes modos de cooperação. Assim como Darwin, Leopold acredita que crescimentos na extensão e na complexidade da ética acabaram facilitando um crescimento em extensão e complexidade na própria sociedade humana – e a land ethic seria o “próximo passo” nesse padrão de expansão ético-social. A ecologia seria justamente a representante da relação entre organismos humanos e não-humanos no ambiente natural, e isso por meio de um “conceito de comunidade” – a comunidade biótica. Onde esse conceito conseguiu emergir, Leopold prevê que o próximo passo seria justamente a land ethic ou a consciência ecológica plena.

A questão humeana sobre fato e valor pode, então, ser decidida em favor de um “valor intrínseco” para os seres não-humanos, que embora não possam ver valorados em si mesmos, devem ser valorados por si mesmos. Nesse contexto humeano, o valor, embora sendo conferido pelos seres humanos, não é necessariamente antropocêntrico. O valor que atribuímos a todos os seres humanos, e que deve ser estendido também aos seres não-humanos, deriva de nosso “sentimento de humanidade”. A metafísica moral derivada do pensamento humeano-darwiniano fornece a conclusão na qual as espécies possuem um valor intrínseco por si mesmas – e mesmo que sejam por nós valoradas, isso não significa que o centro moral-valorativo esteja localizado no ser humano. O valor intrínseco que atribuímos aos seres humanos e à humanidade expressa apenas nossos sentimentos em relação aos membros de nossa comunidade. Portanto, uma metafísica moral baseada em Hume e Darwin parece ser a mais coerente e mais convincente base para uma ética ambiental que inclua um valor intrínseco para as espécies não-humanas. Hume forneceu uma clara distinção entre valor instrumental e valor inerente, ao passo que Darwin acrescentou a isso uma explicação evolucionária e um tipo de fixidade genotípica. Mais tarde, já no século XX, Aldo Leopold se utilizou de ambos para estabelecer um valor intrínseco para a natureza.

O conceito de natureza, derivado dessa nova concepção de ética ambiental, segue o exemplo oriundo da Nova Física – ou seja, é holístico. Torna-se impossível conceber organismos como sendo isolados e segmentados, fragmentados em si mesmos. Eles seriam como nós, fariam parte de uma “teia da vida”, extremamente complexa. Ao contrário da concepção clássica da biologia e da física, cujas ontologias eram baseadas na separação sujeito-objeto, onde os indivíduos eram concebidos como isolados de seu meio, a ideia presente na Nova Física e na Nova Ecologia necessariamente envolve a concepção de outros seres e assim por diante, até que todo o sistema seja, em princípio, implicado. Sob esse ponto de vista, a ecologia revisita a doutrina metafísica das relações internas. Tal doutrina, associada com filósofos do século XIX e início do XX como Hegel, Fichte, Bradley e Royce, postula que a essência de algo é determinada pelas suas relações, e não pode ser considerada separadamente de suas relações com as outras coisas.

Na perspectiva da biologia moderna, as espécies se adaptam conforme seus nichos dentro de um ecossistema. Suas relações com os outros organismos e com as condições químicas e físicas moldam suas formas e seus processos metabólicos e fisiológicos. Um espécime é, de fato, a junção de todas suas relações históricas e adaptativas que mantém com o ambiente. Poderíamos dizer, inclusive, que as relações seriam tão verdadeiras quanto as próprias coisas. Tanto na ecologia contemporânea quanto na teoria quântica a natureza é sistêmica e relacional – e claro, também no que diz respeito ao ser humano. A multiplicidade das partículas de um organismo vivo, em qualquer nível de organização, retém, em última instância, suas características e identidades peculiares. Com isso – e acreditamos que o ponto em questão tenha ficado bastante claro – se tanto a teoria quântica quanto a ecologia indicam, de maneira estrutural, que há, seja no domínio físico seja no orgânico, uma continuidade entre o eu e a natureza, e se o eu for possuidor de um valor intrínseco, a natureza, portanto, também o possuirá.


Referências bibliográficas

- ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2a Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

- ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10a Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

- ATFIELD, Robin. The Ethics of Environmental Concern. 2a Ed. Athens: University of Georgia Press, 1991.

- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

- BACON, Francis. Nova Atlântida. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

- BOTKIN, Daniel. Discordant Harmonies: A New Ecology for the Twenty-First Century. New York: Oxford University Press, 1992.

- CALLICOTT, J. Baird. Companion to A Sand County Almanac: Interpretative and Critical Essays. Madison: The University of Wisconsin Press, 1987.

- CALLICOTT, J. Baird; ROCHA. Fernando J. Rodrigues da (Ed.). Earth Summit Ethics: toward a reconstructive postmodern philosophy of environmental education. Albany: State University of New York, 1984.

- CALLICOTT, J. Baird. In Defense of Land Ethic: Essays in Environmental Philosophy. New York: State University of New York Press, 1989.

- CALLICOTT, J. Baird. Beyond The Land Ethic: More Essays in Environmental Philosophy. New York: State University of New York Press, 1999.

- CAPRA, Fritjof. The Tao of Physics. Boulder: Shambala Publications, 1975.

- COMMONER, Barry. The Closing Circle: Nature, Man, and Technology. New York: Knopf, 1971.

- DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo: Hemus, 1991.

- DARWIN, Charles. The Descent of Man. London: Penguin Books, 2004.

- DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

- ELLIOT, Robert. Environmental Ethics. New York: Oxford University Press, 1995.

- FEYERABEND, Paul Karl. Contra o Método. Rio de Janeiro: UNESP, 2007.

- GALILEI, Galileu. O Ensaiador. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

- GARVEY, James. The Ethics of Climate Change: Right and Wrong in a Warming World. London: Continuum, 2008.

- GOULD, Stephen J. The Golden Rule: a proper scale for our environmental crisis. Natural History 99. New York, 1990.

- HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.

- HEISENBERG, Werner. A ordenação da realidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

- HEISENBERG, Werner. Physics and philosophy. New York: Harper and Row, 1962.

- HUME, David. Investigação Sobre o Entendimento Humano. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A., 1973.

- HUXLEY, Thomas H. Man’s Place in Nature. New York: Dover Publications, Inc., 2003.

- JAMIESON, Dale. Ethics and the Environment: An introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

- JOHNSON, Lawrence E. A morally deep world: An essay on moral significance and environmental ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

- KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

- KANT, Immanuel. Foundations of the Metaphysics of Morals and What is Enlightenment? New York: The Liberal Arts Press, Inc., 1959.

- LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, With Essays on Conservation from Round River. New York: Ballantine, 1970.

- LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989.

- LOVELOCK, James E. Gaia: A New Look at Life on Earth. New York: Oxford University Press, 1979.

- MITCHAM, Carl. ¿Qué es la Filosofía de la Tecnología? Barcelona: Editorial Anthropos, 1989.

- MOORE, George Edward. Principia Ethica. Lisboa: FCG, 1999.

- MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

- NEWTON, Isaac. Princípíos Matemáticos. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

- NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

- ROUTLEY, Richard. Is There a Need for a New, an Environmental, Ethic? Proceedings of the XVth World Congress of Philosophy. Varna: Bulgaria, 1973.

- SANTMIRE, Paul H. Historical Dimensions of the American Crisis. Western Man and Environmental Ethics. Menlo Park: Addison-Wesley Publishing Co, 1973.


[1] Aqueles que defendem um status superior para os seres humanos.

[2] Que rejeitam a noção de espécie superior que o ser humano se atribuiu, mas somente em relação aos animais não-humanos sencientes.

[3] Ou “ética da terra”. Embora essa seja a tradução, optamos por manter o termo original em inglês, dada a importância para o pensamento de Aldo Leopold, seu contexto e originalidade.

[4] Afinal de contas, nós é que somos parte de um grande ecossistema, e não o contrário.

[5] Os extensionistas que defendem o abolicionismo animal, por exemplo, Peter Singer.

[6] LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989, p. 204.

[7] LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989, p. 224-225.

[8] LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989.

[9] LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989.

[10] LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac, and Sketches Here and There. New York: Oxford University Press, 1989.

[11] Aqui poderíamos citar as compaixões sociais, sentimentos e instintos de que falava Darwin, e que seriam traduzidos e codificados em um corpus de princípios e preceitos éticos.